Centro Histórico, de Aki Kaurismaki, Pedro Costa, Victor Erice e Manoel de Oliveira (Portugal, 2013)

novembro 10, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

centro

Sweet Exorcism, Pedro Costa

Esboços urgentes de uma história
por Filipe Furtado

O filme em episódios é sempre uma proposição complicada, uma encomenda cujo principio raramente é estético, mas comercial. É uma grande ironia, portanto, que os filmes em episódios para festivais, nos quais os nomes dos cineastas servem invariavelmente como seu maior atrativo, jamais escapem a posição de serem filmes de produtor. Este preambulo vale em dobro para filmes como Centro Histórico, que nascem de encomendas que envolvem um espaço e/ou comemoração (no caso, Guimarães como capital da cultura na Europa em 2012) que parecem limitar ainda mais o escopo de cada curta-metragem, e seus aspectos negativos podem ser notados no outro filme encomendado por Guimarães, 3x3D (em particular, o grotesco episódio de Peter Greenaway). Centro Histórico é um raro sucesso no gênero, na medida em que há o que se recomendar em cada um dos filmes curtos que lhe compõe. Mas, a despeito de uma opção por unir tematicamente o filme em torno de observações sobre história e memória, ele jamais escapa a impressão de ser menos um longa e mais uma coletânea de impressões e rascunhos ora leves, ora urgentes, de um grupo de cineastas sobre o tema.

Esta é uma impressão reforçada por uma curiosa opção de organização de abrir e encerrar o filme com os dois episódios mais ligeiros (os de Aki Kaurismaki e Manoel de Oliveira), enquanto os muito mais longos e pesados episódios de Pedro Costa e Victor Erice tomam o miolo do filme. É uma decisão que reforça como, a despeito dos pontos de partida em comum da encomenda, cada um dos quatro realizadores levam seus filmes em direções tão próprias que impedem que o filme flua naturalmente de episódio para episódio. Pedro Costa e Manoel de Oliveira podem ambos ser mestres portugueses muito preocupados com a permanência da história do país, mas Sweet Exorcism e O Conquistador Conquistado são filmes que existem a partir de registros tão distantes que não têm como conviver harmoniosamente como parte do mesmo todo, a despeito de ambos lançarem mão de usos expressivos de estátuas para mediar suas relações com história.

Se é impossível pensar Centro Histórico como um todo, podemos notar uma coletânea de anotações das mais relevantes e, para uma encomenda, por vezes surpreendente na sua urgência. A exceção fica por conta do episódio de abertura de Aki Kaurismaki, justamente o que mais se aproxima da típica contribuição para filmes como este. Um interlúdio cômico melancólico sobre um dono de taverna em desajuste com seu tempo, O Tasqueiro regurgita boa parte das preocupações e motivos visuais do cineasta finlandês e as transfere para o centro de Guimarães. Um filme seguro, se bastante eficaz e no seu uso evocativo das suas locações, e aquele que melhor serve o potencial turístico de um filme como este. Numa outra coletânea, a segurança com que Kaurismaki o conduz poderia servir de grande alento, mas aqui se destaca justamente por ser o filme mais morno e desinteressado da coleção.

O mesmo já não pode se dizer da contribuição final de Oliveira, O Conquistador Conquistado, por coincidência o outro episódio que se passa no centro de Guimarães. Temos a estátua do primeiro rei português com os turistas prontos para fotografá-la, e Ricardo Trepâ, ali como um mediador para tudo melhor observar e comentar. Nos últimos anos, sempre que Oliveira se propõe a filmar um curta sobra a mesma impressão de superfície ligeira que aos poucos dá lugar a observação histórica, a leveza termina se revelando uma arma a mais para o comentário político. O conceito geral da história revisitada como turismo não poderia ser mais simples – e deve se dizer que retomar tal ideia não deixa de ser um gesto radical num projeto como este, no qual o risco de se usar a história para justificar um panorama turístico é evidente –, mas Oliveira encontra sempre formas de animá-lo, especialmente na própria figura da estátua, que tão bem resumam o paradoxo entre a posição de frente dos portugueses na expansão europeia e seu presente como quintal esquecido da crise do continente. Se a melancolia de O Tasqueiro é uma questão de grife, a de O Conquistador Conquistado é sentida: Manoel de Oliveira se recusa permitir que Portugal se torne um mero museu.

Tanto Sweet Exorcism e Vidros Partidos são rascunhos de projetos maiores, algo reforçado no filme de Erice pelo subtítulo “Esboços de um filme” (interessante notar que o mesmo pode ser dito do episódio de Jean-Luc Godard para 3x3D, único de interesse daquele filme), no qual o que vemos é justamente um primeiro contato com um material que se espera levar a um trabalho ainda mais ambicioso mais tarde. Talvez por isso mesmo sejam filmes marcados por uma considerável urgência, encenados com um vigor que nunca sugerem o típico curta de encomenda de filmes do gênero. Em ambos, um confronto com o passado se revela uma necessidade, e se sobressai uma atmosfera de peso insuportável. São filmes sobre um presente falido, e não deixa de ser bem curioso notar que Sweet Exorcism foi majoritariamente rodado no elevador da Cinemateca Portuguesa, opção que em retrospecto empresta ao filme um peso político ainda maior.

Vidros Partidos parte de uma série de elementos bem simples – um salão e uma foto – para retraçar a história e o fim de uma fabrica têxtil fundada no século XIX em Guimarães e que cessou a atividades uma década atrás (no seu auge, foi a segunda maior do continente). Destes elementos, Erice constrói um documentário de mise en scène em que o que está em jogo é usar uma série de depoimentos e performances para encenar o fim do estado de bem estar social europeu. É o filme mais ambicioso de Centro Histórico e às vezes se ressente de mais elementos para completar seu quadro (nos seus 37 minutos, é o mais longo dos episódios, mas aparentemente Erice rodou material suficiente para um longa-metragem e esperamos que eventualmente uma versão completa apareça), mas Erice consegue encorpar todo um processo histórico, com sua violência, vitórias e derrotas, e todo um grande vazio presente, uma história desaparecimento de classe trabalhadora europeia. Trata-se de um dos filmes mais fortes sobre a crise europeia.

Se o desaparecimento de Vidros Partidos não esconde um elemento de horror, o mesmo é ainda mais acentuado em Sweet Exorcism, no qual Pedro Costa finalmente realiza seu antigo desejo de refilmar Jacques Tourneur. O ponto de partida é similar de alguns outros curtas recentes de Costa com seus personagens de Fontainhas, com Ventura novamente assombrado com as memórias da mulher. Mas ele logo se vê preso em companhia de uma estátua de soldado da revolução de 25 de Abril e o filme abraça uma encenação frontal e bastante artificial, cujo cerimonial traz um elemento novo ao trabalho de Costa. Rodado em HD, o filme tem uma atmosfera opressiva que aponta um presente envolto em trevas e um coro acusatório que só reforça um mal estar histórico. É um filme de horror de história, dos seus cadáveres e dos seus esquecimentos, do seu presente incompleto. Tudo isso encenado por Costa com sua costumeira precisão de luz e corpos, cada nova imagem sempre pronta a nos pegar de surpresa, pronta a garantir que o filme não vá se aquietar, cada corte e novo posicionamento reinventa a relação de Ventura com a estátua e seu passado.

Aparentemente, trata-se de um primeiro olhar sobre o próximo longa de Costa, o que, assim como em Vidros Partidos, ajuda a explicar seu caráter incompleto, mesmo que vibrante. Cinema, afinal, é uma arte lenta, às vezes inimiga da urgência, e será sempre útil ao cineasta se agarrar as oportunidades de expor suas primeiras impressões e ideias – o que, diante de um olhar como os de Erice e Costa, são por vezes bem mais completas e expressivas do que as versões prontas de muitos outros. Se Centro Histórico é incapaz de somar todos estes olhares, tem o mérito inegável de reuni-los fragmentados para nós; seus esboços valem muito mais que a maioria dos filmes.

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