Cemetery of Splendor (Rak ti Khon Kaen), de Apichatpong Weerasethakul (Reino Unido/França/Alemanha/Malásia/Tailândia, 2015); Green Room, de Jeremy Saulnier (EUA, 2015)

maio 19, 2015 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

* Cobertura do Festival de Cannes 2015

Cemetery of Splendor (2015), Apichatpong Weerasethakul

Cemetery of Splendor (2015), Apichatpong Weerasethakul

De sonhos e pesadelos
por Eduardo Valente (colaboração especial)

Desnecessário trazermos à tona palavras e ideias de figuras como Cocteau, Buñuel, Bergman, Tarkovsky, Lynch ou tantos outros, pra não falar no seu cinema, para aproximarmos os processos criativos/espectatoriais do cinema com o onírico. No entanto, se de alguma forma quase todo filme pode ser tratado por esse viés, de alguma maneira, há alguns em que se torna inevitável ir ao ponto dessa aproximação – como parece ser o caso nos dois filmes vistos nesse dia em Cannes.

Sem deixar de ser muito facilmente reconhecível, Cemetery of Splendor, o novo filme de Apichatpong Weerasethakul, tem muito pouco de Tio Boonmee (ou de, num certo sentido, Mal dos Trópicos), ou pelo menos da maneira de encenar um certo realismo mágico que fez daquele filme o grande “popularizador” do seu cinema (se faz algum sentido usar esse termo com um cineasta de público tão restrito). De fato, durante boa parte de sua duração, ele é talvez o filme mais direto do diretor desde a primeira metade de Eternamente Sua. Existe uma dimensão física muito importante no filme, uma carnalidade que faz mesmo pensar na odisseia médica da primeira parte daquele filme. A personagem principal, interpretada por Jenjira Pongpas (a Setsuko Hara de Apichatpong), possui uma considerável deficiência física, e faz companhia a doentes num hospital improvisado numa sala de aula.

No entanto, pouco a pouco o filme vai sendo cada vez mais “encarnado” (a escolha do termo é extremamente importante) pelo espectro do sonho: no hospital só existem soldados que estão tomados por uma “doença do sono”, e uma outra mulher presente no espaço afirma que consegue se comunicar com os soldados, e contar o que eles pensam e veem nessa espécie de coma em que vivem. O soldado que Jen acompanha acorda repentinamente, e a partir daí o filme passa a avançar ainda mais numa mistura de sonambulismo e torpor, propondo improváveis encontros entre estados mentais a princípio inconciliáveis – um dos mais belos momentos é quando as duas personagens femininas passeiam por um parque, sendo que uma delas o tempo todo descreve aquele lugar como se andasse por um palácio que só ela vê, pois seria uma projeção do imaginário/regressão daquele lugar. Talvez como todo cinema de Apichatpong, o grande prazer de Cemetery of Splendor venha dessa afirmação do plano físico (o único que a câmera captura) como a encarnação de vários outras camadas cuja sucessão é muito menos clara do que parece. Sua afirmação é a de que não é preciso nenhum especial surrealismo excessivo para afirmar a realidade como o lugar mesmo da latência do onírico.

Green Room (2015), Jeremy Saulnier

Green Room (2015), Jeremy Saulnier

Se, num certo sentido, o filme de Apichatpong nos diz que “o sonho é aqui mesmo”, sem dúvida é da mesma ordem física o cinema de Jeremy Saulnier, cujo Green Room (exibido na Quinzena dos Realizadores) é uma das melhores tentativas recentes em mostrar como seria filmar um pesadelo. Se a princípio há muito pouco de qualquer noção mais óbvia de “cinema onírico” no filme de Saulnier, que é tão straight forward e físico quanto um filme pode ser, tudo na sua ambiência (que se fecha num espaço que parece mais e mais o próprio inferno) e na sua progressão narrativa (“você acha que não pode piorar?”) é da ordem do pior dos pesadelos, daqueles que os personagens combatem para acordar – pois apenas acordar parece ser a saída possível.

É interessante pensar que, assim como o cinema de Apichatpong sempre esteve bastante ancorado e em relação com a história tailandesa (entendendo o passado e o imaginário como construções combinadas), da mesma forma o filme de Saulnier lida com um dado bastante prático (as comunidades “supremacistas brancas” em pequenas cidades americanas) para ancorar esse seu pesadelo. É como se seu filme fosse um encontro de O Massacre da Serra Elétrica (de fato, as estruturas dramáticas são bem similares) com Quadrilha de Sádicos – só que o horror que gera os monstros aqui não é da ordem da genética nem dos dejetos radioativos, mas sim da ideologia mesmo. Talvez o filme de Saulnier não encontre imagens nem situações que o coloque no mesmo panteão de obra assombrosa por gerações, mas sem nenhuma dúvida ele captura o espírito de um tempo/lugar e o horror do ser humano com uma eficiência capaz de virar estômagos, e assombrar o sono de muita gente.

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