Carvão Negro (Bairi Yanhuo), de Yinan Diao (China, 2014)

outubro 23, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

carvao

Uma confusão Confuciana
por Filipe Furtado

Quando Carvão Negro venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlim este ano, foi fácil encontrar comentários desapontados. Trata-se, afinal, de um filme policial que caminha por uma série de elementos narrativos bastante conhecidos (um crime brutal investigado por anos; um detetive obcecado; uma mulher fatal, etc.) e o faz sem nenhum sinal da ironia ou maneirismo que esperamos encontrar neste tipo de filme vindo de um cineasta conhecido somente entre os mais interessados no cinema chinês, num festival com péssimo histórico recente de premiados que continham alguns filmes que instigavam a imaginação do cinéfilo (o derradeiro filme do Alain Resnais e o superestimado Boyhood, de Richard Linklater). Carvão Negro é um filme simples, sem qualquer interesse em funcionar como um exercício tal qual espera-se encontrar neste tipo de incursão de gênero. É um filme que acredita no seu drama e no potencial de tocar alguns pontos da vida chinesa contemporânea, mas o faz sem buscar afirmar-se como um grande diagnóstico.

Também por isso, o filme de Yinan Diao sugere um espelho de Um Toque de Pecado (2013), sem a mesma amplitude do painel e excessos barrocos do filme de Jia Zhang-ke. Um Toque de Pecado é o mais subestimado dos grandes filmes de autor do ano passado, um trabalho ambicioso de resgatar uma série de elementos de cultura chinesa e atualizá-los para a era do Weibo (o Twitter local). O que causou a recusa de parte da cinefilia ao filme de Jia Zhang-ke é justamente o que lhe aproxima de Carvão Negro: a crença que a vulgaridade e excesso do exploitation são essenciais para tentar confrontar o cotidiano chinês contemporâneo. Em ambos os filmes, o absurdo da sua violência é jogado contra a sua origem no noticiário local. Na certeza de que a China é mais estranha que a ficção, são dois filmes irmãos de parte da produção de documentário local, como os filmes de Wang Bing e Weikai Huang, nos quais a observação por vezes deságua num imaginário de ficção (Um Toque de Pecado em especial faz muito bom uso da tradição da literatura chinesa na coleção de contos que se desdobra em romance em mosaico para servir seus desejos alegóricos).

Há um contraste muito grande entre a natureza brutal do crime que move Carvão Negro, seu corpo desmembrado, espalhado por toda uma região do país, e seus motivos mundanos, ligados a uma disputa por conta de um casaco numa lavanderia. Diao não foge de algumas cenas mais elaboradas, como toda a sequência alegórica com fogos de artificio que encerra o filme (o seu título chinês traduz literalmente como Fogos de Artificio Diurnos), ou a que marca a passagem de cinco anos dos dois blocos da ação; mas seu filme opera numa chave bem mais simples do que, por exemplo, Let the Bullets Fly (2010), de Jiang Wen. Enquanto outros filmes que exploram o gênero para lidar com a loucura da sociedade chinesa o fazem por vias do grande comentário alegórico, Diao busca o especifico do seu drama. Ele é um ótimo diretor de detalhes, com bom olho para observação, e Carvão Negro está no seu melhor justamente quando lida com a prática da investigação policial, o acúmulo de pistas, o ato de vigilância, etc.

A mesma lógica é aplicada aos momentos de violência, que surgem e desaparecem de forma brusca e rápida, colhendo vitimas e seguindo rapidamente para a ação seguinte, e Diao é especialmente hábil em antecipar estas explosões sem deixar de ancorá-las no mundano. São sequências importantes pela maneira que o filme absorve as convenções e expectativas de gênero para mediar nossa relação com a China que ele constrói, e principalmente pela forma com que estas explosões reforçam como o horror e o inexplicável da confusão chinesa está logo ali, fora do quadro, pronto para adentrar e colher qualquer um a qualquer momento. Diante dela, a única saída possível é tentar manter uma clareza moral e seguir em frente.

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