Cães Errantes (Jiao You), de Tsai Ming-liang (Taiwan/França, 2013)

novembro 9, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

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A outra margem do rio
por Filipe Furtado

Logo após a estreia de Cães Errantes no Festival de Veneza, Tsai Ming-liang declarou que se tratava provavelmente de seu último trabalho, e um pouco mais tarde afirmou que, se retornar a filmar, deve se voltar para instalações. Ambas as afirmações são bastante úteis quando pensamos Cães Errantes, filme carregado de uma qualidade crepuscular que sugere o fim de um processo e cuja relação com o plano-sequência ameaça abandonar por completo o cinema narrativo.

Se Tsai Ming-liang, com raras exceções, passou os últimos vinte anos montando um grande painel a partir de seu ator principal, Lee Kang-sheng, com os mesmos corpos, motivos e situações sendo rearranjados filme após filme, Cães Errantes sugere justamente este cinema num estado de dissolução. Há uma consciência muito grande de como inserir os elementos mais reconhecíveis de seus filmes anteriores, postergando e depois reservando grande impacto para a entrada do único número musical e da primeira sequência de chuva, por exemplo, fazendo com que a recorrência destes elementos tenha seu impacto reforçado aqui. Por outro lado, há uma opção de reduzir o senso de humor que frequentemente servia para quebrar a miséria existencial de seus filmes anteriores, e que aqui se resume às sequências no supermercado, nas quais Tsai parece se divertir buscando os mais improváveis locais para colocar sua câmera, até sugerir que todos os planos naquele espaço são subjetivos de produtos que testemunham as ações dos seus personagens.

Se Visage (2009) se encerrava com Lee Kang-sheng recebendo a notícia da morte da mãe, Cães Errantes lhe dá uma família. O garoto perdido de O Rio (1997) passa ao outro lado e vira a figura de (ir)responsabilidade. Nada poderia deixar mais claro como Cães Errantes alcança um ponto limite na trajetória do diretor, e o sentimento de paralisia que frequentemente domina o filme é mero reconhecimento disso. É uma passagem necessária, assim como é inevitável que, ao finalmente tornar seu protagonista um pai de família, Tsai lhe reserve pouco mais que o fracasso dos pais e mães de seus filmes anteriores. De fato, Lee Kang-sheng raramente foi filmado pelo cineasta de forma tão isolada, e a presença das duas crianças e da série de mulheres com quem contracena pouco faz para reduzir uma impressão constante de homem só contra a paisagem que o filme busca diferentes formas de animar. Em outra chave, o emprego de Lee traz à mente O Homem Sanduíche (1983) de Hou Hsiao-hsien, geralmente visto como filme inaugural do Cinema Novo de Taiwan, o que só reforça a impressão de estarmos diante de um filme muito consciente do seu local na história.

Cães Errantes é o primeiro longa de Tsai a ser rodado totalmente em digital e o formato altera substancialmente a relação da câmera com atores e espaços. Não se trata simplesmente de uma opção por planos longos – apesar de o formato liberar o cineasta para, por exemplo, encerrar o filme com dois planos de mais de dez minutos –, mas de uma relação com corpos e espaços que tende a transformar cada novo plano na filmagem de uma performance que existe por uma presença e ressonância física de figuras e espaços. É um processo que já era muito visível no curta anterior do diretor, Walker (2012), no qual Lee Kang-sheng interpretava um monge a errar pelas ruas de Hong Kong, e que conseguia um efeito semelhante com planos mais breves.

Cães Errantes traz à memória os dois filmes mais recentes de Abbas Kiarostami, Copia Fiel (2010) e Um Alguém Apaixonado (2012), nos quais, após quase uma década de experimentos com a tecnologia digital, o mestre iraniano chegava a efeitos similares num jogo de presenças de atores e ambientes. Assim como Um Alguém Apaixonado, Cães Errantes não parece especialmente preocupado em funcionar como narrativa – Tsai, por exemplo, lança mão de três atrizes Chen Shiang-chyi, Lu Yi-ching e Yang Kuei-mei, e se preocupa mais com uma continuidade emocional da relação delas com Lee e as crianças do que clarear como cada uma se encaixa na trajetória deles –, e isola cada diferente sequência como uma nova oportunidade para evocar ambientes e rostos. É um filme de paisagens violentadas pelo tempo e rostos cansados, e cada lugar e face se revelam muito expressivos.

A cada novo bloco de ação, Cães Errantes recomeça de novo e tem uma nova oportunidade de explorar seus elementos de cena até eles se esgotarem, e o processo pode se iniciar outra vez. O filme se constrói de forma que estes blocos reflitam uns aos outros, de maneira que, por exemplo, a mais convencional sequência do filme, na qual Lee perde os filhos (ela até inclui campo/contracampo), seja adiantada por um plano fixo passado na mesma locação, no qual ele tenta mover o mesmo barco que usará na sequência posterior. Da mesma forma, uma série de três sequências de Lee comendo se revelam progressivamente mais desesperadas. Esta construção em blocos permite a Cães Errantes alguns momentos privilegiados, sobretudo a sequencia musical de Lee, na qual a câmera de Tsai encontra, na presença do seu rosto contra o vento, um foco de resistência em meio ao desespero – com o impressionante momento em que ele, alcoolizado, ataca o boneco de repolho que seus filhos construíram, com o tempo estendido muito bem utilizado para amplificar aquele que é o momento maior de desamparo numa filmografia cheia deles – e ainda os dois longos planos finais com o casal central da filmografia de Tsai (Lee e Chen) sozinhos diante do mural do artista Kao Jun-honn, que o cineasta encontrou durante a pré-produção e incorporou como um dos principais motivos visuais do filme.

Esses dois planos finais são bem instrutivos da força estética do filme: no primeiro, Lee e Chen são filmados olhando algo que não vemos, mas imaginamos, por conta de uma sequência anterior, ser o painel; ela, tocada pelo que vê, chora, enquanto ele, sob um parcial estupor da bebida, busca coragem para abraçá-la; seus dois rostos emocionados são colocados em relevo por cerca de quinze minutos. Quando Cães Errantes finalmente muda a perspectiva, vemos Lee e Chen de costas num plano mais distante que coloca em relevo o mural, e a casa abandonada onde ele se localiza, em relação aos dois atores, e assistimos ao impacto do ambiente sobre eles por cerca de outros dez minutos.

Todo Cães Errantes se apresenta com sequências cuja ênfase se moverá assim, entre corpo/espaço, sem que o filme jamais dilua sua força, e o trabalho com o tempo, com a câmera invariavelmente repousando sobre rostos e lugares com o mínimo de movimentos é essencial neste esforço. Cães Errantes é um filme de diluição, estamos ali diante de um apocalipse de um homem cuja presença o cineasta segue a cerca de vinte anos, seu gesto não é tão distante assim de um filme como O Cavalo de Turim (2011), se numa chave mais modesta, a cada fim de plano reforçasse a ideia de que de Lee já não sobra nada.

Quando Tsai usa o espaço para comentar a figura de Lee, sempre reforçando a impressão de um peso muito grande sobre cada um destes locais desgastados, faz um trabalho de notável permanência. Pensemos no momento em que Lee leva os filhos a caminhar pela praia e, num leve movimento de câmera, o filme os reconfigura como três figuras achatadas contra um espaço que parece chorar; ou, mais tarde, o momento em que a câmera passeia pela parede desgastada da casa, enquanto a mãe relata à família que cada casa carrega consigo uma história. É o momento em que Cães Errantes se revela por completo, pois, se cada lugar carrega sua história, o mesmo vale para os rostos, em especial estes que Tsai filma obsessivamente há duas décadas. Se a matéria prima central do cinema de Tsai Ming-liang sempre foi o corpo de Lee Kang-sheng, e o seu desejo maior sempre foi procurar formas de melhor encená-lo com força, aqui o que o filme procura é dar forma à sua presença cansada, encenar um último adeus. Sua presença de cena, sempre tremendo por conta do álcool, perturba o espectador que construiu ao longo dos anos uma relação afetiva com ele, assim como as linhas do seu rosto, que pronunciam que Lee já não é mais o garoto que o cineasta achou num fliperama em 1989, mas um homem cansado, têm uma ressonância muito forte. O corpo devastado de Lee kang-sheng se revela uma nova versão do cinema abandonado de Adeus Dragon Inn (2003). Ao cinema de Tsai Ming-liang, não poderia haver forma mais dolorosa de encenar seu fim.

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