Boyhood, Richard Linklater (EUA, 2014)

março 16, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

boyhood1

A crônica de um rosto
por Pablo Gonçalo

Um céu límpido com poucas nuvens. Os primeiros acordes de uma guitarra até alcançar as estrofes de “Yellow”, do Coldplay. No contra-plongée: o rosto de Manson (Ellar Coltrane), um menino de oito anos, deitado na grama com o olhar perdido entre nuvens. Estamos na sequência de abertura de Boyhood e ela não salienta um tema, um plot, acontecimentos dramáticos que gerem expectativas ou desdobramentos imediatos. Manson, ali, apenas espera. De forma contemplativa e casual, ele olha para cima, para um azul sobre seus olhos, enquanto aguarda a chegada de sua mãe, que vai buscá-lo na escola. É uma manhã como outra qualquer. Percebe-se, logo nesses planos iniciais, algumas características recorrentes dos filmes de Linklater. São cenas cotidianas, de enredo e diálogo simples, com uma mise en scène dinâmica e precisa, acontecimentos fortuitos, banais, como o dia a dia de um menino, suas pequenas frustrações, suas primeiras conquistas.

A novidade de Boyhood está na forma fluida como ele entrelaça a história de um rosto entre suas elipses. A face de Coltrane interpretando Manson foi filmada buscando diversas aproximações durante onze anos, entre 2002 e 2013, passando por sua infância, o início da adolescência até a sua saída de casa e a chegada à universidade, quando passa a dividir o quarto e experiências com outros jovens. São acontecimentos corriqueiros, a vida normal de um menino e adolescente no Texas, nos Estados Unidos.

boyhood3

Mesmo que essas elipses também acompanhem o envelhecimento – documental e dramático – dos atores que interpretam seus pais (como Ethan Hawke e Patricia Arquette), essas faces não são tão enfatizadas pela câmera de Linklater. O diretor, ao contrário, preferiu dirigir e captar uma forma de olhar para o mundo que, sutilmente, muda e continua a mesma, que se transforma, como se ganhasse um brilho mais definido ao longo dos anos. Aparentemente, a trajetória de Manson aproximaria Boyhood de um romance de formação, na tradição de um Bildungsroman, mas a ênfase de Linklater é menos dramática, menos calcada na consolidação de um cidadão pleno do que no soerguimento de uma sensibilidade, íntima e individual, como se as mudanças de um rosto entre os anos tingisse uma silhueta com tons que, pela imagem, poderíamos chamar de adulto. O filme é sobre o rosto esquivo, da infância e da adolescência, que, ao final, escapa e marca o espectador. Com pinceladas de uma elegia tênue, num ritmo andante, esse rosto fugidio passa, amadurece, muda e vai impregnando-se entre os dias, os anos, os cortes da montagem.

Inevitável, nessa toada, não remeter às relações entre o rosto do menino Jean-Pierre Léaud interpretando Antoine Doinel ao longo de vinte anos, de Os Incompreendidos (1959) até O Amor em Fuga (1979). Embora haja um acento dramático similar, da formação e da juventude, a parceria de Truffaut com Léaud costura elipses que situam-se entre os enquadramentos fechados dos quatro filmes sobre o personagem. Mesmo que em O Amor em Fuga ocorra uma recapitulação dos outros filmes (e rostos), a crônica de Truffaut segue um arco dramático bem definido, quando Doinel chega aos trinta e é convocado, pelo tempo, a resolver suas angústias sentimentais. Em termos de elipses ficcionais, Boyhood tenta apreendê-las no fluxo da narrativa, entre cortes temporais que não possuem legendas, indicações ou traduções. O contraste temporal situa-se entre a lembrança da imagem do rosto deixado para trás e o quadro seguinte, ocorrendo no espectador, em vez de ser permeado por elementos dramáticos. São arquivos dispostos em um fluxo afetivo: mais do que o rosto, é o corpo de Manson que se altera. Do menino travesso ao garoto silencioso; do adolescente que passa a pintar as unhas e a experimentar os primeiros baseados; do sujeito que transita da voz fina para um tom mais calmo e seguro de fala. Astutamente, o corpo, no filme, emerge durante a adolescência, quando tudo pulsa de forma mais intensa – e uma modorra, uma preguiça e um tédio latente se instalam – e que, junto ao cabelo longo, contrasta com a pressão familiar para o guri conseguir o primeiro emprego.

A trajetória de Manson também percorre o dia a dia de pequenas turbulências familiares. Desde o começo, acompanha-se a separação dos seus pais, que possuem altos e baixos, momentos e emoções distintas. No entanto, Linklater consegue conotar um tom dramático bem preciso, sem exageros e sem deixar de captar a delicadeza de brigas de pais vistas por filhos. Manson também vivencia as desventuras amorosas da sua mãe, interpretada por Patrícia Arquette. Ela oscila entre o desejo de viver um novo amor – e de construir uma família com seus parceiros – e as suas decepções, frustrações e a luta solitária contra um torpe machismo texano. Mais sutil, junto ao pai, é uma forma de olhar que passa a ser compartilhada, quando, já adolescente, passa a enxergar com certo desejo as moças que passam ao redor dele. Dentro desse contexto múltiplo, Linklater sempre concentra-se em registrar o ponto de vista íntimo (e até egoísta) de Manson, como sua fúria quando precisa, novamente, mudar de casa. Ou, numa das melhores cenas, como reage com uma calada indignação quando o seu padrasto acaba por cortar seus cabelos de maneira autoritária.

boyhood2

A riqueza de Boyhood está em filmar com maestria esses acontecimentos menores, fugidios, cheios de normalidade. Ao final, Manson quer apenas ter uma vida autônoma, emocionalmente desvinculada da turbulência dos pais, porque esta já não é sua. Quando, já na vida universitária, encontra seus novos amigos – sem rumo, sem saber bem quem eles são, sem ter de fato o que fazer – e passa a andar com eles, termina a gritar entre uma paisagem ampla, montanhas e uma bela garota que está sentada ao seu lado. Boyhood é o retrato de uma sensibilidade que expande seus brônquios e impulsiona sua busca por horizontes mais amplos e íntimos, no momento em que um sorriso passa, delicadamente, a habitar um rosto.

Share Button