Boy Meets Girl, de Leos Carax (França, 1984); Sangue Ruim (Mauvais Sang), de Leos Carax (França, 1986)

fevereiro 17, 2014 em Em Cartaz, Pedro Henrique Ferreira

Sangue Ruim (1986), Leos Carax

Sangue Ruim (1986), Leos Carax

O plano presente
por Pedro Henrique Ferreira

(Re)visitar os dois longas-metragens de estreia de Leos Carax, Boy Meets Girl (1984) e Sangue Ruim (1986), trinta anos após o lançamento do primeiro, e pouco tempo após o lançamento de Holy Motors (2012) – a experiência de bricolagem mais sincrética já realizada – depois de conhecermos os rumos tomados por uma linha histórica do cinema em suas aspirações formais, suas proposições artísticas e espirituais, sua sensibilidade, torna-se quase impossível não se pensar em Carax como um avant la lettre, um dos (senão o) principais precursores de temas e motivos plásticos recorrentes no cinema mundial pós-1990, um elo mais interrompido do que perdido (devido às inúmeras dificuldades de realização que encontrou durante sua carreira, apesar de sempre ter tido seus méritos artísticos reconhecidos no meio cinematográfico) entre a geração da Nouvelle Vague e, por exemplo, as imagens radiosas de Kar-wai ou Tarr, ou a construção por lacunas de Denis. Sem o ser (pois não poderia ser, pois já não faria sentido ocupar um lugar que já não pode existir), ou indiretamente o sendo, o cinema de Carax se afirmou como um ponto de referência desta nau, um norte comum a uma geração que assimilou tão bem sua lição ao ponto de saber que já não poderia haver mestres, ou que já havia mestres demais.

No ensaio O plano ausente: a poética de Nicholas Ray, Jacques Ranciére comenta o trabalho de sinédoque que Ray realiza em They Live by Night (1948), revelando a personagem feminina por quem Bowie (Farley Granger) se apaixona: “É a lei da composição (cinematográfica) – uma imagem é feita de várias imagens; e é uma lei de subtração – uma imagem é feita do luto de uma outra imagem”. Criticando a fenomenologia baziniana e defendendo os mecanismos de montagem, o filósofo francês explica como a imagem da perfeição (que Ray associaria à publicidade do american way of life) está ausente – ela é constituída pela soma do todo, e o exemplo cabal disto poderia ser verificado quando Ray introduz Keechie (Cathy O’Donnel) lentamente, sem um grande momento de deslumbre. Boy Meets Girl e Sangue Ruim (principalmente este último) conjuram um pouco do universo de They Live By Night, da trama aos temas narrativos e à iluminação, mas o exato oposto pode ser dito sobre a forma como constrói sua beleza. Quando introduz a personagem de Mireille Perrier em Boy Meets Girl, Carax o faz com uma imagem fixa dela sentada com a expressão moribunda e choramingona. Ela está estática e, durante aproximadamente quinze segundos da tomada, ela não pisca (provavelmente seguindo ordens do diretor). Na longuíssima cena de Sangue Ruim, em um quarto escuro onde surge uma cumplicidade amorosa entre Lavant e Binoche, também há uma imagem dela, deitada à cama, estática, sem ação.

Boy Meets Girl (1984), Leos Carax

Boy Meets Girl (1984), Leos Carax

Quadros como estes, em que a composição é realçada e se joga sobre nós exigindo que nos atentemos às linhas e cores, são comuns nestes dois filmes (e nos posteriores também, porém aqui de forma mais vívida e chamativa). Os corpos estáticos e a pele esbranquiçada, como que de cera, dos protagonistas remetem às pinturas de Hopper (como Chop Suey ou Escritório à Noite) por conta destas formas “exageradas”, versando sobre a solidão contemporânea, procurando pelo estilo mais do que pela mise en scène, para que, assim, possamos senti-la. Não é que a soma das imagens deficitárias do todo construam a noção de beleza através de mecanismos cinematográficos, mas que absolutamente toda imagem deva conter este germe da perfeição; toda imagem deve deslumbrar e nos causar um sentimento que é acima de tudo plástico; toda imagem é uma tábula rasa para criação, e seus limites estão dentro dos limites do quadro, da superfície e dos efeitos que elas podem nos causar. É um cinema pictórico, na medida em que chama atenção mais ao plano do que a algo que poderia emergir da justaposição de imagens; na medida em que a mise en scène é mais criada pela iluminação e o cenário do que pelas emoções dos atores – que são como estátuas vagando por um mundo soturno.

Sangue Ruim (1986), Leos Carax

Sangue Ruim (1986), Leos Carax

Se, em Ray, a soma das partes gerava o todo, em Carax, o todo é espelhado em cada uma das partes. Mas qual é esta sensibilidade que irradia de cada uma destas “imagens perfeitas” (imperfeitas por natureza, mas que expressam perfeitamente uma sensibilidade)? Alain Bergala a definiu como uma sensibilidade maneirista, implicando aí um espírito semelhante àquele que teria motivado artisticamente os pintores pós-renascentistas: o sentimento de haver chegado tarde demais a uma tradição e a vontade de distorcer o modelo através do excesso (narcisista) para criar o novo. É o que nos faz crer a expressão furiosa de Lavant, suas sobrancelhas arqueadas semelhantes a um autorretrato de Pontormo, sua personalidade demoníaca expressa na célebre cena em que, como um zumbi tendo espasmos, dança e corre ao som da canção de David Bowie.

O Lavant de Sangue Ruim é um excelente atirador (um hábil técnico ou artesão) e por isso é convocado. Mas é um jovem abandonado, cheio de ódio contra o pai, tentando mover-se por amor em um mundo que é hostil a ele o tempo todo. O mesmo acontece a Binoche, depressiva, que agarrou-se a um homem mais velho quase como que em um beco sem saída. Vemos os dois isolados no plano, juntos a um fundo negro, diversas vezes em uma cena que dura mais de meia hora, condenados por nascença e sem referências a seguir, como os jovens de They Live by Night. Mas o amor deles é moderno e também o é o cinema de Carax – portanto, incompleto, nostálgico, reprimido, cheio de som e fúria, capaz de distorcer-se a todo instante, e jamais capaz de realizar-se senão enquanto esforço, tentativa, ímpeto, mas sem gerar pastiche, cópias, citações ou mudanças dramáticas de tom (estes trejeitos considerados tão contemporâneos, mas que fogem em absoluto à sensibilidade daquilo que é contemporâneo em sua unidade, isto é, no que o contemporâneo tem de uno). Bergala tem razão em incluí-lo na lista de cineastas maneiristas, mas talvez já seja a hora de afirmá-lo como o mais diretamente maneirista dos maneiristas, ou seja, aquele que assimilou o estilo de forma mais orgânica.

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