Berlinale 2014: uma apresentação

março 23, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

The Second Game, Corneliu Porumboiu

The Second Game (2014), Corneliu Porumboiu

Arquivos, Elipses e Encenações Brasileiras
por Pablo Gonçalo

Da curadoria ao contato com espectadores, críticos e outros cineastas, todo festival de cinema carrega consigo uma ansiedade por flagrar uma coerência, como se houvesse um convite para encontrar um pulso comum entre os filmes nas telas, as veias e os corpos que por eles correm e vibram. Inevitável e perigoso, esse plano geral, quando possível, passa obviamente pela ficção (no melhor sentido do termo), por uma narrativa um tanto deliberada, pela escolha e eleição de traços gerais, de linhas que conectam e dispersam as obras e que sugerem grupos, nichos e classificações provisórias. Não é diferente com o Festival Internacional de Cinema de Berlim, afavelmente chamado de Berlinale. Como a cidade que o hospeda, esse é um festival sem um centro certo nem um foco privilegiado. Desde a sua divisão inicial – como a Competição (sem dúvida sua seção mais previsível), o Panorama, o Forum e o Forum Expanded –  há a ênfase na fragmentação, como se fossem mostras paralelas e simultâneas que criassem mais um mosaico fugidio do que uma imagem precisa do cinema contemporâneo. Isso posto, as tentativas de generalizações – e até de acompanhar o festival, como espectador – passam por uma escolha, um ponto de vista já de antemão, em parte, estabelecido.

As oito críticas que a Cinética compartilha agora com seus leitores passaram por um crivo um tanto pessoal, como, também, pela ênfase em filmes que, previamente, já anunciavam a investida de uma sessão e de um texto. Não há, portanto, o desejo de traçar uma conclusão mais abrangente sobre o festival. São visões fragmentárias que dialogam com outros fragmentos de cinema, esparsos. Ainda assim, entre esses pequenos cacos, e certas pérolas buriladas, sugerimos algumas linhas, algumas convergências e pontos de fuga que, talvez, possam estimular a leitura. Dois dos filmes mais interessantes, vistos e comentados, interagem com a temática do arquivoThe Second Game (2014), do diretor romeno Corneliu Porumboiu, e The Guests (2014), de Ken Jacobs. No primeiro caso, temos um arquivo – na íntegra, como o material bruto – da transmissão de uma importante partida de futebol de um clássico romeno, em 1988. No segundo, um trecho dos irmãos Lumière que, de forma ousada, é visto mediado por um uso bastante experimental do 3D. Ambos gestos estéticos visam uma radical atualização do arquivo como uma forma de reinventar e forjar um olhar que joga luzes novas sobre o debate entre cinema, estética e o reavivamento dos fantasmas condensados nas imagens gravadas.

The Grand Hotel Budapest, Wes Anderson

The Grand Budapest Hotel (2014), Wes Anderson

Em termos temáticos, é a adolescência que surge diretamente em filmes como Boyhood (2014), de Richard Linklater, Hoje eu Quero Voltar Sozinho (2014), de Daniel Ribeiro e, de forma menos frontal, em The Grand Budapest Hotel (2014), de Wes Anderson. A adolescência, nesses filmes, aparece envolta por uma leveza que entusiasma. Não apenas por flertarem com a comédia, essas obras, embora tão diferentes entre si, sugerem um tom cinematográfico que aprecia uma descoberta genuína, o que, talvez, não precise negar nem se entusiasmar cegamente por seu dispositivo. As elipses também foram outro recurso estilístico que, com cadências e ênfases distintas, permearam filmes como Praia do Futuro (2014), de Karim Aïnouz, e o novo (e já citado) de Linklater. Geralmente, em obras mais “ficcionais”, as elipses surgem embalsamadas por motes dramatúrgicos mais teleológicos, como espaços temporais que apontam tensões ou resoluções dramáticas já prenunciadas. Nesses filmes, vemos elipses mais sofisticadas, que apostam na abreviação, no ato de retirar explicações, que deixam o tempo pulsando, mais intenso, entre os quadros. Num risco de síntese, também delineiam-se lapsos de elipses negativas, talvez, presentes nos complexos ciclos temporais da ficção científica Snowpiercer, de Bong Joo-ho.

A Berlinale de 2014 também acolheu um conjunto bastante significativo do cinema brasileiro contemporâneo. Num primeiro instante, o novo filme de Karim Aïnouz, por estar na competição, era quem resguardava maior expectativa. No entanto, a participação brasileira transbordou esses holofotes mais básicos e revelou longa-metragens de diretores jovens, como o filme Castanha (2014), de Davi Pretto, a já citada estréia de Daniel Ribeiro, e a primeira projeção internacional de O Homem das Multidões (2013), de Cao Guimarães e Marcelo Gomes. Embora brasileiros – o que não se restringe a um sintoma vago de torcida no contexto de festival internacional –, os quatro filmes revelam apostas e investidas distintas em encenação e mise en scène que merecem alguns apontamentos. Sintomaticamente, são os atores e as formas como eles foram dirigidos que sugerem os caminhos mais interessantes de comparações.

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, Daniel Ribeiro

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014), Daniel Ribeiro

Praia do Futuro, por exemplo, retorna ao trabalho de direção de elenco de Fátima Toledo, fundado na intensidade emocional, a ausência de uma cena mais rigidamente marcada e a exigência de uma entrega talvez sincera demais por parte do ator. Não se trata, aqui, de criticar as boas atuações de Wagner Moura e Jesuíta Barbosa, mas, de forma distinta, perceber como a ênfase escolhida das suas atuações dialoga com uma teatralidade mais naturalista que era uma novidade no cinema dos anos 2000, sob a tônica da “retomada”, e hoje surge como apenas mais uma entre outras tendências. CastanhaO Homem das Multidões, por exemplo, aventuram-se por atuações mais contidas, discretas e de marcação bem precisa, com jogos entre a ficção e o documentário – no posicionamento entre o ator e a câmera – que trazem certos lufos pós-dramáticos à cena.

Por fim, encontramos a excelente química dos três atores de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho. Ali, parece que houve mais do que ensaios e técnicas, mas um convívio, através dos anos e da passagem do curta ao longa, bem preciso entre os atores; uma forma de organizar o elenco rara de ver no cinema brasileiro, pelo menos quando feita com tal precisão. Vê-se, ali, um naturalismo que nega o improviso, e que parece dialogar bem com interessantes tendências da televisão internacional. Talvez seja essa uma das motivações da salva de prêmios que o filme de Daniel Ribeiro recebeu, como o Teddy Awards e o de melhor filme pela Fipresci, a Federação Internacional de Críticos de Cinema. Ao apostar numa encenação ímpar dentro do cenário brasileiro contemporâneo, Hoje eu Quero Voltar Sozinho acabou, discretamente, roubando a cena da Berlinale.

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