Baccalaureat, de Cristian Mungiu (Romênia/França/Bélgica, 2016); La Larga Noche de Francisco Sanctis, de Andrea Testa e Francisco Márquez (Argentina, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

* Cobertura do Festival de Cannes 2016

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Da eficiência e da deriva
por Eduardo Valente (colaboração especial)

No cerne de tudo aquilo que serve de gatilho para a trama do novo filme de Cristian Mungiu (o ganhador romeno da Palma de Ouro em 2007 com 4 Meses…) está em questão a estrutura da família nuclear: não apenas pela crise entre o casal formador da mesma, mas principalmente pelo conflito geracional entre pai e filha – algo que só se torna de fato um conflito aberto já bem tarde no filme, mas é justamente sua existência subjacente o tempo todo que faz com que a narrativa se estruture. No fundo a trama trata de uma grande questão: até onde a preocupação de um pai com a vida tranquila de uma filha é natural, e quando ela se torna uma intervenção inaceitável. A fronteira pode parecer simples num nível mais superficial, mas é nos pequenos gestos e atos que ela se impõe como questão relevante, pois uma vez ultrapassadas algumas distâncias, é muito difícil voltar atrás.

No entanto, como de hábito no trabalho do cineasta e seus colegas de geração, existem dois níveis de discussão em operação simultânea aqui. A essa questão familiar, imediatamente se sobrepõe (e num certo sentido assume a frente, em termos de importância e tempo de tela) um questionamento mais fundo sobre as bases da sociedade romena. O conflito entre pai e filha, inclusive, só existe por isso mesmo: o pai não pode aceitar um futuro para sua filha que não seja a saída do país, pois entende que é impossível viver ali e não ser contaminado pelo sentimento de corrupção e decadência disseminados. No entanto, para poder realizar esse desejo, ele precisará exatamente realizar gestos de corrupção – mas são gestos justificados ou essa nunca pode se justificar? Existe uma fronteira em questão aqui, de novo, e durante toda a duração de Baccalaureat é esse o jogo que Mungiu proporá ao espectador: a cada cena, qual daquelas atitudes você acha justificáveis?

O grande problema do filme é talvez a sua maior qualidade: Mungiu, como já demonstrava no seu filme ganhador da Palma, tem um domínio muito preciso do tempo dramático e da mise-en-scène realista que propõe. Com isso, seu filme é eficiente o tempo todo, tudo nele “funciona”: a história evolui precisamente, os atores estão muito bem, e as duas linhas de significado e questionamento se cruzam sempre com precisão, atingindo os efeitos desejados (não é por acaso, aliás, que em vários momentos o filme lembre algo do cinema de Michael Haneke, principalmente numa linha narrativa paralela em que o peso de uma agressão constante e não identificável se coloca sobre o pai da família). A questão que fica é aquela que a eficiência nesse “cinema de questões” geralmente traz: qual papel resta ao espectador nesse jogo tão preciso, qual a possibilidade de se estar ativo no processo de acompanhar essa máquina azeitada em funcionamento? Pode-se admirar o domínio necessário na sua construção, até, e sentir e perceber a relevância dos pontos que levanta, com certeza. Mas é estranho que ao final da experiência fique a sensação de que isso tudo não chega a ser tanto assim quanto se poderia pensar.

Já o argentino La Larga Noche de Francisco Sanctis (foto), filme de estreia de Andrea Testa e Francisco Márquez (e único representante latino em Un Certain Regard), escolhe o caminho contrário, em busca de fins parecidos. O cinema argentino, assim como o romeno (e seria mais adequado falar dos países, talvez), vive assombrado pelo seu passado recente – em ambos os casos, regimes ditatoriais, ainda que bastante diferentes em formas, propósitos, e espectro político. E Larga Noche… é talvez o filme a mais frontalmente ter buscado não o caminho da informação e do relato sobre esse momento, mas sim o de tentar dar forma audiovisual ao sentimento de viver num regime ditatorial. A escolha de um personagem anódino como é Francisco Sanctis não chega a ser uma surpresa ou novidade – muitos outros filmes sobre temas políticos escolhem o caminho do “inocente útil”. A grande qualidade aqui, porém, é que Sanctis, apesar de pai de família tradicional e profissional medíocre, tem um passado de arroubo político da época da juventude. E é esse passado que vem trazer à tona não só a trama do filme (um fiapo), mas principalmente uma luta interna entre o homem que ele é hoje e aquele que um dia ele pensou em ser. Mais que um filme sobre tomada de consciência, é um filme de crise de consciência, portanto.

A forma escolhida pelos diretores estreantes é aquela anunciada já no título: após uma breve introdução em que entendemos as bases da vida atual do personagem, ele é jogada nessa tal “longa noite”, uma viagem pela e rumo à escuridão, numa Buenos Aires praticamente deserta, onde se sente em cada plano, pela ausência (de movimento nas ruas, de encontros, de sons), a força da opressão de uma sociedade. De fato, Larga Noche é um filme sobre ditadura em que o aparato militar não aparece nem uma vez, pois não é necessário: fica bem claro que ele está por trás de cada conversa, de cada olhada para trás enquanto se anda na rua, de cada decisão em fazer (ou não fazer) alguma coisa. Nesse sentido, o filme vai no caminho contrário de Mungiu: menos a escritura precisa e a realização exata (embora o roteiro, baseado num romance, esteja lá bem estruturado), e muito mais a tentativa de capturar um sentimento de mundo que permita entender um país (mais diretamente no passado, mas sempre resvalando no presente, por óbvio). Como algo normal num filme de estreantes e com esse desejo, o filme não parece sempre exato, algumas sequências resultam mais fortes do que outras, etc. No entanto, há uma pulsão na tela que nos deixa sempre próximos de tudo que se passa, e uma investigação audiovisual de como realizar esse sentimento que é profundamente tocante. Lembra-nos que, às vezes, não dominar totalmente o que se faz pode ser mais poderoso que a extrema eficiência.

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