Aprendi a Jogar com Você, de Murilo Salles (Brasil, 2013)

dezembro 1, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

aprendi a  jogar

Valores de troca
por Juliano Gomes

De início, temos em jogo : “eu” (sujeito oculto no “aprendi”) e “você”. Se formos um pouco além, há também um “tu”, no nome do projeto que deu origem a esse filme (És tu, Brasil). Quem diz esses pronomes? Milka, mulher do DJ Duda, protagonista do filme de Murilo Salles, fala a frase do título, após uma cena na qual Duda revela à câmera suas artimanhas retóricas para conseguir convencer um músico de trabalhar com ele nas condições que Duda deseja. Milka aprendeu a perceber que nem tudo é verdade quando vem de Duda – que, em geral, há algo por trás, algum tipo de motivação, bastante delimitada, nas ações de Duda com os outros à sua volta. Uma sinopse possível seria: Duda e suas relações com os outros. É disso que trata Aprendi a Jogar com Você: com sua mulher, com seus filhos, com seus contratantes, com seus contratados, com seu público, com o seu redor em geral. Duda forma uma comunidade em torno de si, comunidade esta que tem códigos próprios (para “jogar”). É olhando para a constituição deles que o filme se constitui.

Há, porém, o terceiro elemento das relações, uma parte constante, que é aquela que se expressa nas escolhas do filme: espaço, tempo, ritmo, corte, implicações múltiplas cujo contorno não é difícil de perceber. Nesse sentido, chama atenção a singularidade da iniciativa aqui, pois quer estabelecer um tipo de construção baseada na observação de seu personagem, isto é, quer narrar cenas desse corpo e suas interações, acreditando que essas aparições possam dar contorno aos trajetos de Duda e sentido ao olhar que o filma. Porém, a busca de significados em cena aqui tem um norte muito específico: o mundo do trabalho (tudo que aparece no filme fora desse campo parece, no mínimo, decorrência dele) como dimensão predominante da vida cotidiana do protagonista. Duda é um homem que trabalha, e cujo trabalho se estende em direção aos seus laços de família e amizade. Duda é um homem de negócios, e, acima de tudo, de negociação.

O jogo que se dá é entre Duda, seus interlocutores e o filme. Passados os primeiros minutos, vemos Duda envolvendo o outro, com sua força argumentativa e carisma que o filme tem o mérito de dar a ver (em situações de variados níveis de complexidade moral), e daí tudo desdobra-se a partir dessa surpreendente capacidade deste homem em envolver as pessoas, conduzido por seus objetivos profissionais – isto é, se estabelecer como artista naquela comunidade que o filme mapeia indiretamente. Mas sua arte, sua música, não são tema aqui. Duda quer construir um grande sistema de trocas que o permita viver de seu trabalho da maneira como deseja. Mas, ao mesmo tempo, como o filme percebe e constrói, Duda quer jogar. As performances de Duda têm também uma espécie de gozo do jogar. Uma disputa se estabelece aí, entre prazer e poder.

Os recortes destes embates são, em grande parte, pautados pelo sentido das falas dos personagens em cena em relação ao tema central que é o mundo do trabalho a partir de uma comunidade bastante específica. Vão por água abaixo as ligações automáticas entre Brasil cosmopolita e provinciano, entre arte sofisticada e elite social, pois Aprendi…  de fato dá a ver um retrato que encontra o que busca, porém esse mérito é também sua armadilha. Há uma questão de foco em jogo, e, em alguma medida, o excesso de nitidez aqui atingido parece produzir um encanto que se torna reiteração. Aquele que propõe o jogo parece só produzir essas intervenções a partir de uma lógica mesmo monetária: Duda precisa de grana pra sobreviver e o filme parece precisar que o personagem busque grana para que sua ideia central se justifique.

Mas, em algum momento, através das divisões sazonais de verão e inverno, de alta e baixa temporadas, a uniformidade da busca compromete a densidade do desenho. O filme parece negociar pouco, afinal. A maneira que ele aprendeu é decodificando o segredo de Duda, que de segredo nada tem. Duda finge. Desenvolveu uma potência mesma da performance. Entretanto, toda performance tem nela superfícies, dados imediatos do corpo, do rosto, respirações e indecisões, como podemos perceber bem na sequência em que Milka e seu marido voltam à noite depois de um show onde ela canta. Há ali algo que fala, mas que escapa a teses. Há um casal que ri, que se sacaneia, cuja cumplicidade oscila, mas que é vivo, que está sujeito às coisas do mundo, e suas lógicas são cambiantes. Há ali e, em especial, em algumas cenas da família, dentro da casa, algo que escapa, que tem contornos fugidíos (os personagens das crianças em geral, “puras de objetivos”), ações sem finalidades.

O problema aqui é da ordem da relação entre os fins e os meios. Qual é o valor de uma troca? Será seu resultado? Duda atua em duas frentes, pois claramente entende que o filme é também um embate que ele também precisa vencer e pela mesma lógica, só que com armas diferentes. Precisa que o final seja apoteótico, seja uma imagem de um ideal de sucesso, de logro, como afirma no trecho final. Sua gana em produzir imagens para o outro é seu desejo de filme, de se tornar uma imagem do sucesso para daí poder de fato sê-lo. A imagem primeiro, a ideia enfim. De forma parecida age o filme: é preciso sublinhar pela repetição as artimanhas de Duda, culminando o epílogo curiosamente chamado de “pesquisa”. É evidente que Duda é um ator eficiente, suas performances são fonte constante de satisfação pessoal, para ele e para o filme, porém toda ação no tempo é também gasto, dissipação de energia – o contrário, enfim, do acúmulo, forma final da lógica monetária (Duda quer “juntar” dinheiro). Mais do que o termômetro do sucesso do protagonista em sua empreitadas, vemos uma sucessão de números deste homem, cujo valor se dá mesmo no próprio ato. Quem mais acredita em motivação é o filme (são vários os momentos em que o corte revela essa busca obcecada por essa verdade “escondida”).

Duda, afinal, é aquele cuja identidade está em não ter identidade nenhuma: tudo o que é seu depende dos outros, depende de negociação, e está em relação. Duda é aquele que nunca aprende, e isso o torna um grande jogador, pois, mesmo no jogo em que não é um especialista (o filme), consegue compreender as regras e não interromper os fluxos, está atento aos momentos. Talvez seja justamente esse jogo de entendimentos que torne a qualidade substantiva do filme (há algo do mundo ali que se revela com contornos bastante claros, isto é, “aquilo existe”) um anteparo ao seu próprio olhar, no sentido de adensar as camadas da observação desse mundo de trocas constantes. O meio torna-se então só instrumento e repetição, girando eternamente em torno dos mesmo fins.

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