Antes da Meia-Noite (Before Midnight), de Richard Linklater (EUA, 2013)

julho 14, 2013 em Em Cartaz, Fabian Cantieri

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Teia de histórias
por Fabian Cantieri

No fim de Antes do Amanhecer (1995), o casal que havia se conhecido naquele mesmo dia num trem que entrecortava a Europa tem de se separar. Os últimos planos do filme revelam novamente os cantos por onde eles passaram, agora sem eles. Viena não tem a mesma graça sem Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy). O interlúdio entre filmes parece ser um continuum: Antes do Pôr-do-sol (2004) começa com planos de Paris ainda não povoados pelo casal. São cartelas mudas das mais gritantes: “ali hão de passar vidas que transformarão estes espaços”. Em Antes da Meia-Noite, esta mesma sucessão de planos vazios vem mais sutil, quase desenxabida, mas com a força suficiente de acometer a virada final, o famoso turning point hollywoodiano: eles agora são uma subjetiva de Jesse no quarto de hotel – a mesa com os vinhos não bebidos, a porta de saída, a cama com a fronha não consumada. A partir desse soslaio é que Jesse corre em busca do amor da futura velhice.

Existe um jogo metafórico comum aos dois filmes anteriores a Antes da Meia-Noite que já era esperado aqui: a de que um lugar é sempre um espaço vazio que precisa ser preenchido por histórias; essas histórias devem ser sempre personificadas para que virem História, e essas pessoas, no cinema, são sempre fantasmas, mas fantasmas que um dia andaram concretamente por aqueles espaços emanando uma forma de vida. Essa forma de vida, de algum modo, reverbera uma nova relação que nós teremos com aqueles espaços (futuros ou passados). Essa relação, por sua vez, já é uma nova história que se transformará em outra coisa aos olhos de outros e assim novas teias humanas se desenvolvem ad infinitum.

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Entre estes espaços da trilogia, notamos aqui uma leve diferença. Em Antes do Amanhecer, tínhamos Viena como alegoria da Dublin de Joyce, onde uma personagem perambula pela cidade pelo percurso de um dia, como Leopold Bloom apaixonado. Este dia no filme ser o bloomsday – 16 de junho – é apenas mais um dos acasos propositais postos por Richard Linklater. Historicamente, Joyce levou sua mulher, Nora Barnacle, para morar em Paris, locação de Antes do Pôr-do-Sol, mas esta coincidência importa menos do que o ar que a cidade imprime aos nossos sentidos. Paris é o lar de Celine, mas antes é a cidade que remete à sedução, leitmotif do filme e palavra-chave de seu gran-finale. Em Antes da Meia-Noite, não há cidade, há a Grécia, há a impostação antecipada da tragédia milenar aliada à crise contemporânea mais aguda.

A tragédia grega é citada no começo, na cena de conversa entre os homens; a crise econômica, levantada ao fim na briga entre o casal. Mas o embate entre os dois tempos se mostra mesmo é no meio, na longa cena do almoço. Ali, o problema central do casal que percorre o filme inteiro – a dúvida se este amor sobreviverá a qualquer decorrência de espaço (a idéia de morar juntos em Chicago) ou tempo (permanecer juntos como os avós de Jesse) – colide com um senso de comunidade de uma geração muito mais radical e pragmática. Uma geração despreocupada com a permanência do amor, de sua reciprocidade, e mais voltada para a imanência de suas volições e afetos momentâneos. Celine se assusta ao ouvir do casal jovem que têm plena consciência (bem rara, diga-se de passagem) de que aquela ligação entre eles não durará muito, e a trilogia no fundo é uma grande investigação do que seria essa ligação, de onde vem esse bonding. Enquanto para Jesse e Celine essa permanência é uma luta eternamente ressignificante, para os dois jovens é uma convicção antecipada. Uma certeza do fim e sua inevitabilidade . O pulo entre gerações é traiçoeiramente radical: enquanto Celine infla o peito para apontar a caduquice da idéia de casamento (e se suas filhas ainda acreditam, é só pela aproximação ao conto de fadas), o jovem casal, na mesa do almoço, sequer vê possibilidade de um relacionamento duradouro, independente de instituição, mesmo entre eles. Essa coisa modernosa de renegar o matrimônio já é démodé… há algo de fatalista nessas relações contemporâneas que se dissolvem entre tanta afetuosidade.

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Esse thelos inerente à tragédia é o que separa esses dois mundos. A metafísica grega é agora o peso da efemeridade. É o sol que se põe, é a bunda que engorda, o cabelo que cai, é o medo do fim. Antes da Meia-noite é em essência sobre o trato do tempo. Os tempos prolongados acomodados pelo Verbo, inerentes a um só plano, se tornaram a marca estilística da trilogia justamente pela necessidade de se auscultar essa química que reage entre os três elementos em cena – Jesse, Celine e o Tempo. Rompe-se a lógica griffithiana do corte, para sobrevir o inesperado da reação, para se buscar o gesto autêntico que refrataria a mímesis grega. No fundo, percebemos que nunca há tentativa de dilatação, mas uma procura pelo tempo naturalmente humano, o tempo espontâneo da conversa.

Mas só a suspensão do corte como escamoteamento de um tempo natural não é novidade. Até aí, nada que John Ford já não houvesse feito lá nos anos 30. Com menor intensidade, Ford foi um dos primeiros da era falada americana a deixar o tempo escorrer sem cortes entre diálogos, enquanto Ophüls incitava os mesmos lampejos do outro lado no velho continente. Isso acontecia em momentos isolados dentro de cada filme, pouco a pouco, mas paulatinamente até o fim de sua carreira, quando então culmina em conversas inteiras em plano conjunto como o diálogo à beira do rio entre Guthrie McCabe e o tenente Jim Gary em Terra Bruta (1961) . A diferença aqui é que, para Linklater, havia uma necessidade de secura intermitente – se em John Ford e em boa parte do cinema clássico narrativo posterior, poderíamos vislumbrar planos-sequências quase tão radicais, isso em Linklater se dá como conflagração recorrente. Antes do Amanhecer e Antes do Pôr do Sol se apregoavam pelas longas caminhadas, caminhadas estas manifestas primeiro pelo Verbo instaurador e segundo pelo gestual decorrente dele. A palavra é o que rege a dramaturgia, que funda a complacência entre o dito e o não-enunciado. Este não-enunciado é manifesto pelo gestual reativo, que instaura vida ao verbo. Dessa dialética, imposta por uma mise en scène mais naturalista que o Preminger mais natural, nasce uma combustão. E se existia um teor de espontaneidade e ineditismo na relação entre o casal nos dois primeiros filmes, neste o que sobrevem é a árdua briga com a mundanidade do cotidiano, com a recusa do escorrer da duração. Se havia algo de transcendente nos esbarrões dos dois primeiros encontros – da dúvida do sexo à ambiguidade da dança – aqui se destaca a materialidade da procriação, do corriqueiro, da velhice.

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Mais difícil é conviver com a projeção… É nesse último ato da trilogia em que o casal dialoga mais com outros personagens além deles mesmos. Diminuem-se os planos sequências de steadicam, e os diálogos mais importantes – o do almoço e da briga – são montados com cortes mais convencionais entre planos e contra-planos. Se, no almoço, há uma imanência dos espíritos, isto acontece pelo entorno, pelos outros; na briga, só acontece por causa de um outro tempo que não aquele, logo revive-se este outro tempo – briga-se por um passado espocado. Este deslocamento entre vivência e projeção é peça chave do fim, pois se é pela experiência da duração que se dá o amor, que se materializa uma ligação, é pela abertura ao inimaginável que se mantem uma história. E o trilho que recua ao fim da última cena nos revela que, nessas histórias, estamos todos inseridos.

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