Amor Pleno (To the Wonder), de Terrence Malick (EUA, 2013)

agosto 30, 2013 em Colaborações especiais, Em Cartaz

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Os homens que não estavam lá
por Eduardo Valente (colaboração especial)

Um som e uma imagem assombram toda a duração de Amor Pleno. O som é escutado antes mesmo que surja a primeira imagem na tela, e também é o último que ressurge quase no final dos créditos, logo depois de cessar a música que acompanha sua duração, voltando apenas para fechar esse ciclo. É o som de um trem que avança pelos trilhos de uma estrada de ferro. Já a imagem também é a última a surgir na tela antes dos créditos: a da ilha de Saint Michel, na França, com sua igreja visitada pelos personagens de Ben Affleck e Olga Kurylenko no primeiro movimento (termo que parece bem mais adequado do que “sequência” ou “cena”, como discutiremos adiante) do filme. É exatamente no que une e distancia a pregnância desses dois signos (um trem que corre pelos trilhos sem parar e a monumentalidade etérea da ilha de Saint Michel) que se encontra o cerne do filme de Terrence Malick.

Logo após começarmos a ouvir os sons do trem que avança na abertura do filme, surge na tela uma imagem curiosamente mal cuidada, marcadamente “digital” e “caseira”, uma imagem “suja”, mas que, ao mesmo tempo, possui uma materialidade que não encontrará paralelo em quase nada do que veremos daí por diante no filme (pode-se argumentar que os únicos outros dois momentos que se aproximam a esse são as imagens da menina que conversa pelo computador e do ultrassom no consultório médico – o que associa as operações de Malick no filme a determinados jogos com estatutos de imagem para-cinematográficas bastante incomuns na sua obra). Essas imagens digitais que abrem o filme são, em suma, imagens banais – construção de linguagem quase inimaginável frente à fama de esteta obsessivo que acompanha a carreira de Malick, e que Amor Pleno tanto reforça como desconstrói.

Em oposição à banalidade do estatuto breve desse home video (desse road video, se assim preferirem, que remete aos vídeos feitos em viagens) logo se impõe a voz off da personagem feminina. Nesse momento, já não estamos mais num indistinto e banal vagão de trem, mas sim passeando por alguns dos pontos mais sublimes (e, por isso mesmo, hiperexplorados ao ponto do clichê) da chamada Cidade-Luz (olha o clichê aí). Entre a banalidade do começo e a beleza do clichê, a voz da personagem feminina parece buscar desesperadamente (palavra à qual voltaremos) elevar aquilo tudo que vemos: “você me tirou das trevas, me levantou do solo, me trouxe à vida”, afirma ela, emprestando um outro estatuto, quase religioso. É quando, num dos vários momentos em que o filme impõe cortes em movimento que parecem transpor limites geográfico-temporais mantendo a ideia de continuidade, Paris dá lugar à estrada que leva ao Monte Saint Michel – ele sim, sublime, etéreo, quase irreal. O sentimento do amor, nos indica o filme, nascido e gestado com muito cuidado a partir da banalidade de um vagão de trem, pode ascender a experiência humana ao cume da experiência (“to the wonder”), incorporada no filme na imagem do Monte.

No entanto, da mesma maneira que o trem não para de se mover nos trilhos, e que a história (e a vida) segue seu caminho, o Monte Saint Michel não é no filme o símbolo de uma ascensão a uma outra esfera da experiência, mas sim o lembrete da danação representada por tudo que cerca esse instante sublime. Pois do que trata Amor Pleno (tradução de título de uma ironia profundamente cruel) na verdade é justamente da impossibilidade de reter o sentimento daquele amor completo – quiçá sentido por um segundo, pelo breve tempo de uma imagem sublime que se desfaz. Ou, talvez ainda pior: que esse sublime nem tenha sido exatamente sentido, mas sim desejado, construído, buscado, “imaginado que sentido”, por pessoas que vagam desesperadamente o mundo procurando esse breve relance de completude.

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Que Malick se utilize, em paralelo à narrativa do “amor terreno” de um casal (na verdade é bem falsa a ideia de que há dois casais no filme – a personagem de Rachel McAdams é muito mais uma reiteração, com utilidade dramática semelhante à do amante de Kurylenko mais adiante, assim como da amiga italiana), dos dilemas do “amor divino” de um padre, pode, para alguns, soar como uma alegoria de “mão pesada” (para outros, como no texto de Josh Timmerman no mubi, talvez seja uma releitura do “Cântico dos Cânticos”). No entanto, não é no nível da narrativa nem da alegoria que se encontra o autêntico interesse na maneira como Malick se aproxima desse problema, mas sim na construção cinematográfica que ele utiliza para representar esse sentimento. Pois, se em seus outros filmes não era sem angústia que a Beleza (com B maiúscula) era buscada ou encontrada, em nenhum deles se sentia tão desesperadamente (olha a palavra aí de novo) a dúvida de que exista qualquer consolo a se encontrar nessa busca – pois, mesmo se encontrada, a Beleza se esvai no mesmo segundo em que é tocada.

É por esse motivo que parecem particularmente equivocadas, ou no mínimo deslocadas, as críticas que se resumem a apontar uma reiteração de ferramentas de construção da “beleza” (as filmagens na “hora mágica”, os flares na lente, o uso da música sacra ou romântica) como um problema no filme – ou ao menos como um problema do qual o filme não está ciente. Pois, que não reste dúvida: sim, Amor Pleno é excessivo na sua busca pelo belo, pelo sublime – mas é disso, de apenas isso, que trata o filme: da obsessão por encontrar esse sentimento (na fé, no amor romântico) que empreste sentido à vida. Só que, assim como os personagens vagam, vagam e vagam sem conseguir encontrar quietude e tranqüilidade nessa busca, também a câmera de Malick, em seu constante movimento de steadycam e cortes em movimento, não consegue se fixar. A câmera como que parece roçar a beleza, mas logo segue adiante, insatisfeita, incompleta… desesperada, em suma, por mais dessa beleza que, superficial e insuficiente (como é o relacionamento de Affleck com as mulheres na tela), pouco satisfaz quem quer seja – personagens, diretor, espectador.

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Amor Pleno é, não só mas inclusive nesse sentido, um filme profundamente desagradável, uma experiência autoconsciente da sua fragilidade e da sua incapacidade. Um filme cujo protagonista masculino não é somente um verdadeiro banana (e aqui a utilização que Malick faz da figura de Affleck tem único paralelo recente no uso de Tom Cruise por Kubrick em De Olhos Bem Fechados), como parece tragicamente consciente de sua maldição de vagar pela tela (ele nunca ocupa o centro da imagem por muito tempo, e quase sempre está prestes a sair ou entrar de quadro, pelos cantos), mudo, incapaz de “estar presente” (“é difícil ser aquele que ama menos”, nos diz ele num certo momento). Ele é pura projeção: tenta ser como as mulheres o imaginam, mas desgraçadamente parece sempre saber que é um personagem construído por outros. Assim como ao padre de Bardem, cabe a ele “fingir sentimentos que não tenho”. Não por acaso, ambos caminham pelo meio de “pessoas de verdade”, tentam tocar a dor de um país em crise econômica, de uma terra envenenada, de doenças mentais e físicas absurdamente “reais”, mas nunca parecem conseguir atingir essa dimensão de presença.

Não parece ser por outro motivo que o filme quase não constrói cenas, como a dramaturgia cinematográfica clássica nos fez aprender a reconhecer. Malick quase nunca decupa e pouco utiliza som direto: escovar os dentes, desempacotar caixas de mudanças, sentar para jantar não são, nesse filme, nunca percebidos como “ações físicas” (nesse sentido, vale notar como é completamente diferente do resto a sequência de sexo de Kurylenko com seu amante – planos mais longos, mais fixos, mais cortes: finalmente algo de real, de terra, em meio aos vagares da alma). Por isso existem tantos cortes em movimento que atravessam espaços e tempos, que reprisam situações como se elas tivessem algo de mítico, de atávico, de independente de onde e quando se passam (algo especialmente forte no “movimento” entre Affleck e MacAdams, pura digressão reiterativa, que repete ações em sequência pulando de campos para casas, para planícies – “the world is a stage”). Por isso, por exemplo, que num determinado momento os jardins e escadarias de Versailles podem aparecer no filme sem que sejam minimamente identificados como tal – pois tudo que eles historicamente vieram a significar pode se dar ao luxo de não importar em nada.

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Na verdade, é disso que se trata, ao fim e ao cabo: assim como já faziam os animais e a natureza frente à estupidez da guerra em Além da Linha Vermelha (1998), ou assim como nos lembravam os dinossauros e a origem do Universo em Árvore da Vida (2011), o trem vai seguir andando, Paris e o Monte Saint Michel serão visitados e gravados em vídeo por outros casais. E se nada disso vai mudar o fato de que a briga contra a efemeridade dos sentimentos é tão dolorosa quanto a efemeridade dos seres na Terra, o simples gesto desesperado de fazer um filme como esse, tão ciente das suas incapacidades e inutilidades, talvez seja uma dessas poucas coisas que se pode fazer para gritar um envergonhado “ei, mas eu estive aqui, e vi(vi) isso tudo, tá?”. E se por um lado, no fundo ninguém se importa (pelo menos não no grande esquema das coisas, no qual Malick quer tocar), também ninguém pode negar a Beleza que existe num tal gesto – nem que seja um gesto de dizer que a Beleza não se atinge, mal se vislumbra, mas não se consegue evitar de buscar.

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