Amor (Amour), de Michael Haneke (França/Alemanha/Áustria, 2012)

março 11, 2013 em Em Cartaz, Pablo Gonçalo

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Fragmentos de uma decomposição
por Pablo Gonçalo

“Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo,
tão infenso à efusão lírica”.

Carlos Drummond de Andrade.

Esta história poderia ocorrer em várias cidades. Um casal de velhos retira-se. Estão reclusos há anos. Não querem atender o telefone. Não querem receber visitas. Seja dos amigos, dos filhos, dos vizinhos. Não: esta é a palavra. Não têm muita disposição para a conversa. E estão cansados dos outros, deles mesmos, das ruas, das curas possíveis. Ela se chama Dorine. Há anos desenvolve uma doença degenerativa. Sem esperança, André, seu marido, acaba cuidando dela de uma forma bem diferente da recomendada pelos médicos. Os dois estão exauridos. Não suportam mais tantos remédios e seus incontáveis efeitos colaterais. De maneira calculada, ele toma uma resolução: escreve uma última e poética carta. Para D., para ele mesmo, para os outros. Lacra a carta e coloca-a na porta da casa. Tranca a casa. Lado a lado, eles cerram os olhos.

Essa poderia ser a história de Amor, último filme de Michael Haneke. Poderia, mas não é. Na verdade, é uma sinopse do livro “Carta a D.”, escrito pelo filósofo francês André Gorz, pouco antes de se matar ao lado de Dorine, sua esposa. É uma história de amor, de um amor romântico, platônico, talvez, que tornou-se um best-seller mundial. Quem viu o filme sabe das semelhanças entre os dois enredos. Haneke, no entanto, não retrata um amor romântico. Marcadamente pessimista, como toda obra do diretor austríaco, esse filme não vê no amor um sentimento de transcendência, etérea ou eterna, que aponta para um passado mítico ou um futuro redentor. Em Haneke, as flores do amor são cortadas rente ao caule. Tal, no cinema, como um corte seco. Por que, então, Amor logo no título?

Além de encarar a morte frente a frente, Amor é um filme sobre o corpo e a matéria que nos coliga ao mundo. Contudo, Haneke filma corpos velhos, falhos, numa lenta decomposição, numa corrosão que carcome os poros da pele pelos cantos, por todos os lados daquele apartamento. Ainda que degenerativa, a doença de Anne, interpretada por Emmanuelle Riva, representa dramaticamente esse lapso do corpo. Anne parece desconectada do mundo. Na cena em que emergem os seus sintomas, ela entra num transe que não é místico, mas nulo, que não leva a lugar algum. E, mesmo com o personagem ausente, fora de si, a matéria não deixa de pulsar, como realça o sutil som ambiente dessa seqüencia, quando ouvimos a água da pia contínua e indiferente a esses sofrimentos demasiadamente humanos.

Haneke filma o cotidiano dessa decomposição do corpo. Como se Anne, agora, estivesse no momento oposto ao vivido pelo virtuoso pianista que a visita e que, antes, fora seu aluno. Trêmulas e hesitantes, suas mãos não conseguem, não se aproximam do piano, não flertam mais com o sublime despertado pela música. Por isso, ela opta pelo silêncio. Haneke filma esse desmembramento da matéria de uma maneira fragmentada. Como recortes precisos, o cotidiano surge regrado, cheio de códigos, e tenta, em vão, suavizar os padecimentos fúnebres. Em instante algum temos idéia dos intervalos desenlaçados entre os dias, dentro de um único dia. É como no relógio sem ponteiros que desponta num dos filmes de Bergman.

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À espera inócua, portanto, por um instante final. Aos poucos, o cotidiano torna-se assustador, num compasso em contagem regressiva, que joga contra. Tal como em “A Morte de Ivan Ilitch”, de Tolstoi – novela tão bem apropriada por Pasolini em Teorema – a morte, nessas obras, chega lentamente, sem possibilitar um arco dramático coerente, uma sinopse lógica ou uma última lição. Como na carta final de George: ela não diz quase nada. Chega, pois, a morte, fragmentada, fragmentando, indiferente ao reconforto de sentimentos religiosos, de laços amorosos ou familiares. Pelo contrário, o ponto de vista dos moribundos é o mais sensível ao teatro da hipocrisia que os rodeia.

De forma sutil, Haneke caminha na contra-mão de algumas tendências contemporâneas. Morte e corpo são temas, atualmente, que costumam causar certo desconforto. Sobretudo quando vistos pelo viés da velhice. Um exemplo interessante desse mote é bem representado pelas palavras de Raymond Kurzweill, um “futurólogo” e um guru do vale do silício. Em Transcendent Man, documentário de Robert Barry Ptolemy sobre Kurzweill, essa figura peculiar afirma que a partir do ano 2029 já será possível não mais morrer. Sim, a utopia da imortalidade e de uma eterna juventude estaria bem próxima. Em termos tecnológicos, seria uma combinação entre a nanotecnologia, a biotecnologia e a cibernética. Nessa dinâmica, haveria, segundo Kurzweill, uma completa fusão do corpo humano com robôs sofisticadíssimos, o ápice do “homem pós-orgânico”. É o que Kurzweil chama como “máquinas espirituais”. Às vezes, essa previsão ainda causa certo espanto, mas é aceita com entusiasmo por uma plêiade de seguidores. Sintomática, ela revela o anseio de superar a “condição humana”, apontando para uma metamorfose final – ou formas de vida que caminhem para além do corpo e da morte.

Em Amor, pelas lentes de Haneke, toda a retórica tecnológica parece patética. Os progressos da medicina não passariam de paliativos e criariam novos perigos, novos poderes. Anne é quem sente isso direto na pele. Não por acaso, ela pede a George para não deixá-la mais num hospital, e sua súplica revela aquela “instituição total” como sendo um lugar hediondo. Anne prefere morrer em casa. Longe de todo esse aparato. A tecnologia ronda em vão, como na bela cena em que Anne dá voltas no corredor, quando, quase independente, descobre a cadeira de rodas automática, elétrica. A cadeira gira, como um círculo vicioso, e, num primeiro instante, parece divertida. Ao final da brincadeira, contudo, Anne percebe o vazio que a circunda.

Dentro do conjunto da obra de Haneke, Amor talvez aponte para uma sutil e interessante guinada. Nesse filme, sua verve trágica e violenta vem cadenciada por uma poética do afeto urdida nos detalhes do filme. Leia-se, contudo: um afeto que não significa necessariamente algo agradável ou amistoso. Afeto, aqui, vai no gesto que solicita uma afecção. Em Haneke, ele surge com a força de um tapa, como se no choque da mão com o rosto, no seu susto, brotasse um pedido de interação real. Parece paradoxal, mas é aí que reside o amor nesse filme de Haneke. É nesse hiato da violência do afeto que as máscaras do casal, até então prenhes de rotina e rancores, parecem cair. Após o tapa – e as amplas paisagens daquelas pinturas ressaltadas pela montagem – há um ponto de virada. Ambos compreendem-se melhor, respeitam os pedidos e os limites um do outro.

Comunicação, infância e negação são outros três temas recorrentes na dramaturgia de Haneke que, em Amor, renovam-se de forma inusitada. Em suas entrevistas, o diretor costuma afirmar que tenta compor histórias sobre a falta ou mesmo a dificuldade de comunicação entre pessoas próximas. Quanto mais íntima a relação, mais silenciosa, mais difícil. Aos poucos, o código empalidece, torna-se desconhecido. Em Amor, o ápice da comunicação do casal ocorre no ocaso da linguagem de Anne. Como se, ao deixar de falar, ela passasse a clamar por um sentimento de retribuição. Assim, torna-se comovente a cena em que, aos balbucios, eles cantam juntos “Sur les ponts d’Avignon”, tradicional cantiga francesa. Paulatinamente, a comunicação concentra-se num encontro de mãos, sereno, e o afeto do tapa desdobra-se no afeto do toque, da mão que torna-se cúmplice.

A cantiga também evoca a infância, momento comumente associado a idéias de pureza. Contudo, em Haneke, a infância, as crianças ou os jovens transitam num pantanoso terreno de amoralidade. Basta lembrar do protagonista de Benny’s Vídeo ou do grupo de meninos em A Fita Branca. Um olhar mais cuidadoso perceberá que a infância, nesses filmes, nunca surge isolada. Ela é sempre relacional e aponta para os pais. Como no ensaio “Os Jovens Infelizes”, em que Pasolini percebe que, nas tragédias gregas, os filhos herdam os infortúnios dos pais. Na dramaturgia de Haneke, a amoralidade das crianças é tão somente a sombra do niilsimo dos pais, um campo vazio e egocêntrico anestesiado por um torpe cotidiano.

Somados, todos esses temas parecem desaguar, como afluentes, no gesto da negação, tão próprio aos personagens do filme. A negação, aqui, emerge como um ato de resistência, tal como ocorre em O Sétimo Continente, interessante filme do começo da carreira do diretor, em que, antes de um suicídio coletivo, uma família rasga e joga na privada todo o dinheiro que tinha acumulado. A negação não é apenas um pessimismo comum, mas uma decisão veemente em não participar e em não colaborar com uma vontade social da qual se discorda, de cabo a rabo. Essa negação tem raízes nos preceitos de Schopenhauer e ecos na literatura austríaca, em escritores como Robert Musil e Peter Handke. Mas é sobretudo num romance como “Extinção” que Thomas Bernhard expõe a essência dessa negação como o avesso do avesso de um romance de formação. Bernhard traça um elogio à força moral oriunda da decomposição física e à destruição urgente de todos códigos sociais para, ali, entre ruínas, encontrar algo que salve – e desmorone.

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Em Amor, essa negação surge no instante em que se decide morrer. Se há, nesse ato, uma resistência por parte dos personagens, à filha do casal e aos espectadores ele eclode como uma martelada. O odor da morte – talvez seja isso que Haneke, sinuosamente, costure ao longo do filme. Um cheiro forte, denso, impregnado no carpete, nos lençóis, nas cortinas. Uma fragrância apreciada apenas pelos corvos.

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