Amador, de Cristiano Burlan (Brasil, 2014)

janeiro 28, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

amador

A armadilha do espelho
por Juliano Gomes

Amador nos coloca uma dificuldade desde o início: sobre uma imagem preto e banco do mar em contraluz, uma voz over do diretor (que pode ser do diretor fora do filme ou o de dentro do filme, pois essa fusão é uma de suas premissas) tece uma série de observações sobre uma ideia de obra, de arte, numa espécie de manifesto inicial, de carta de intenções. Desde já, uma fratura que perdura por todo o filme se coloca de maneira frontal, entre o enunciado, o signo e a experiência mesma dele, isto é, o signo como matéria de transformação, como possibilidade de alteração das partes. A primeira imagem do filme, que antecede essa sequência, é de uma mulher, também em contraluz contrastado, tocando uma escaleta. A fotografia joga com um regime de imagem absolutamente cristalizado como forma de beleza oficial, já desgastado pela publicidade; por uma beleza que, em suma, quer atingir o efeito sem passar pela experiência… um belo de resultados.

Curiosamente, Amador parece absolutamente consciente desse repertório imagético consagrado (que une paisagens de cartão postal à câmera na mão a la cinema moderno) e se relaciona com essas esferas quase que somente pela fetiche, isto é, pela relação de isolamento do efeito. O mote é um diretor que busca fazer um filme do qual não tem muitas idéias pré-concebidas, e que nos guia através de testes de elenco, conversas com as atrizes e com pessoas de cinema, no caminho de encontrar a feitura da sua obra. Claramente, há um paralelo entre o personagem-diretor e o diretor de Amador (vemos alguns planos de claquetes onde o nome do filme varia entre Amador e Amateur, e o nome do diretor também varia entre o de Cristiano Burlan e seu ator-personagem).

Uma vez estabelecido o desejo reflexivo – o filme como reflexão e projeção de sua realização – algo parece se interpor no trânsito entre essas dimensões. A aposta numa estrutura fragmentada faz necessária uma força de encenação nas partes (que sustenta empreitadas do tipo, como Me and My Brother (1968) de Robert Frank, ou mesmo o Oito e Meio (1963) de Fellini) que raramente se esboça aqui. O segmento inicial, de uma série de testes de elenco com algumas atrizes, no qual o diretor pede para cada uma que responda perguntas variadas, filmadas quase sempre em close, reflete esta limitação de um engajamento que seja gerado pela matéria do filme, ou pelo rosto na cena. Domina sobre a imagem a força de uma intenção que quer a fórceps ser obra, ser beleza, ser resistência (para usar palavras mencionadas pelo próprio filme).

Ao contrário do que o título indica, há aqui um receio de um mergulho real na deriva, num sentido mudo – como no caso do citado Aloysio Raulino – que não se curve à necessidade de legitimação através de um campo consagrado. Numa conversa entre o diretor e um colega de trabalho, uma panorâmica passeia por cartazes de Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Bandido da Luz Vermelha e termina numa TV mostrando as imagens correspondentes ao som que já ouvíamos desde o início do plano: Memórias do Subdesenvolvimento, de Gutierrez Alea. Esses artistas aqui citados buscaram, em seus contextos, justamente esse movimento por o que ainda não era obra, pela “não-arte”, ampliando as possibilidades sensíveis daquele momento, desafiando bons gostos, abrindo os campos do possível, implodindo os campos pré-determinados da cultura, em seu compromisso com o espectador e com a experiência imediata da obra. Aqui esta reserva é acionada justamente como se estivesse se alimentando de um campo devidamente legitimado, com o qual que se presta reverência ao cânone mas não se busca um movimento análogo, em busca desse risco de um fora que gere experiência. Assim, nada pode realmente reagir, pois o belo é necessariamente resultado do movimento entre as partes, é uma relação que, por definição, é móvel.

É notável esse processo nas cenas nas quais se interpela as diversas atrizes que se revezam e trocam entre si durante o filme. Nem mesmo no momento em que uma delas pede a câmera (super8, claro) o jogo sofre alteração ou risco: as perguntas continuam as mesmas, a relação permanece uniforme, só muda a direção da seta. A busca pelo rosto, pelo mistério, falha justamente por conta da dificuldade de se operar em campos não demarcados pela cultura, pela Arte. A voz que pede para a atriz repetir Greta Garbo num teste é análoga ao desejo do filme de imposição desse repertório como garantia de campo seguro, como desejo de adesão a uma estética do risco que já é objeto de cartilha.

O que pode parecer uma estética da urgência da criação, no sentido de realizar o filme sem que ele esteja firmado em bases sólidas previamente, corre o risco de se tornar simplesmente pressa. A intervenção de Jean Claude Bernardet é absolutamente precisa diante da pergunta “O que é o cinema?” (o filme também traz perguntas como “O que é a vida?”, “O que é o amor?”): “precisa responder essa pergunta?”, diz ele, “melhor ficar em silêncio”, e assim apresenta um dos trechos do filme que possui verdadeira força estética, pois Bernardet vira o jogo para além do que ele procurava.

O filme, porém, parece não ouvir o recado e nunca detém sua atenção além de sua própria busca, o que torna impossível encontrar qualquer coisa fora dela mesma. Acaba por amar a si mesmo mais que o seu suposto fora, essa dimensão a descobrir que toda obra e todo movimento possui em potencial. O que prevalece é essa força dos códigos que não consegue ultrapassar sua condição de convenção. Uma vez que os códigos do filme pessoal, do filme reflexivo, da incorporação do improviso, do ensaio fílmico, estão dados, é preciso procurar as zonas de alteridade ainda não capturadas, ou friccionar e fazer chocar os clichês, até que o uma terceira coisa nasça. A isso se pode chamar resistência.

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