Adieu au Language, de Jean-Luc Godard (França, 2014)

maio 26, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

* Cobertura do Festival de Cannes 2014

Godard 1
O réquiem de uma galáxia
por Pablo Gonçalo

Há, desde os anos 1970, uma enorme expectativa da cinefilia mundial em torno de um “último filme” de Jean-Luc Godard. É como se, no contato com a obra lançada, o próprio cinema – enquanto arte, política e linguagem – estivesse em xeque, flertasse com e superasse os seus limites. A ansiedade em torno de Adieu au Language certamente segue essa tônica; no entanto, além de ser seu trabalho mais recente, ele de fato soa como o derradeiro filme de Godard, uma espécie de ponto final de toda uma obra, e o ocaso tanto de uma geração quanto, mais surpreendente, de um projeto de cinema. Depois de Godard, ou do seu ‘ah-­Deus’, não haveria mais espaço, talvez, para um “filme de cinema”, bordão que Sganzerla evocava em O Signo do Caos (2003), sintomaticamente sua última e mais ácida obra. Figura recorrente em Adieu au Language, a morte não salienta apenas o tom de despedida da arte que deu sentido à sua vida (e que também motiva as nossas); mais radical, o que convalesce e morre é, de fato, a possibilidade de o cinema persistir e continuar a existir.

Ainda que cético, amargo ou melancólico, Godard teima em encontrar instantes possíveis, como se desejasse esbarrar com algo verdadeiro entre os faux­-raccords deste novo circo audiovisual, como ele mesmo diz na sua carta a Cannes, dando um brilho especial à sua ausência física no festival. Nessa toada, a escolha da tecnologia 3D é intrínseca à obra e sem dúvida um dos maiores acertos do filme. Interessado nas potências visuais e pictóricas dessa nova tecnologia, Godard teoriza e torna mais complexa a equação numérica dessa dimensão do visual. Embora escassa e concisa, a sua história escolhe precisamente três personagens: um homem livre, uma mulher casada e um cachorro (que talvez remeta ao jumento de Au Hasard Balthazar, de Robert Bresson). Mais do que relatar os encontros desses três entes, Godard investiga o convívio entre essas três entes, como se um entrasse no outro e os três, numa simbiose de universos e numa transubstanciação, possibilitassem uma imagem – fugidia, volátil, mas potente. O 3D, assim, transforma­-se em uma síntese, uma superfície rugosa, o sintoma de uma ilusão pulsante sem fissuras ou fendas, cujos conceitos escamoteados seriam eles mesmos opacos, intocáveis, impenetráveis. Godard faz mais do que nos conduzir ao outro pólo da imagem, distante da imersão 3D; ele nos convida – como fez Ken Jacobs em The Guests  – a estranhar essas novas tecnologias, a vê­-la por dentro de um buraco negro que vislumbra o choque entre duas galáxias imagéticas completamente divergentes e antagônicas. Godard precisava olhar aquilo que, para ele, seria a antípoda do olhar ou de uma tradição do olhar que rima com apreço, ternura e percepção.

É nesse teor que Godard, junto com seus personagens, pergunta-­se sobre as diferenças entre a natureza, a ideia e a metáfora. Pergunta-­se, mas, sintomaticamente, não oferece respostas. Nessa omissão, ele parece sugerir que não haveria mais diferenças, não haveria sequer intervalos possíveis. Ao afirmar que a pintura é a morte do presente, Godard sugere onde estariam essas imagens que não se duplicam mais no tempo e nem permitem mais o passado. Em outras sequências, ele mostra mãos manuseando livros, enquanto, simultaneamente, dentro do quadro, dedos interagem com um celular touchscreen. Mais do que fantasmática, a imagem técnica contemporânea não possibilita diferenças: de tempo, de subjetividade, de sensibilidades. Se não há diferenças, tudo é natureza, e o real torna-­se um deserto de imagens medíocres. Numa das sequências escatológicas do filme (e aqui a escatologia também revela-­se uma forma de encarar o fim das imagens cinematográficas), um dos personagens defeca enquanto especula: não seria a merda essa instância que torna todos os materiais exatamente iguais?

Godard 2

Aos poucos, as imagens tornam-­se isomorfas e, talvez por isso mesmo, disformes. Nesse recorte, Godard cita, constantemente, um possível mundo de imagens experimentado pelos índios apaches, onde o mundo é floresta. Emerge aí uma obsessão em olhar e contemplar  o cachorro, talvez o protagonista do filme. Sutilmente, Godard parece tentar ver o mundo das imagens – essa floresta sem diferenças – com os olhos do cão que ele filma. A própria câmera mimetiza, discretamente, o andar de um cachorro numa floresta e observa­-o sacudindo­-se todo num réstia de gelo. É como se Godard poetizasse um zoomorfismo da imagem, ou das imagens que já não são mais humanas, mas puro automatismo técnico, e que estariam no outro pólo de um certo humanismo do olhar.

No entanto, num contraponto a esse ocaso, ou no outro vetor dessa dialética sem síntese, Godard oferece momentos únicos, instantes sensíveis e memoráveis. São segundos que permite mergulhos num campo de belezas ainda possíveis. Há flores que pululam para fora do quadro, flores vermelhas, amarelas, impressionistas; janelas dentro de janelas, fugidias e centrípetas, que invertem o ponto de fuga; uma grade que interrompe a apreciação do rosto da mulher e, ao fundo,uma montanha, um lago. Se não há mais cinema, sobra pintura, arte digna de um Nobel que nunca foi dado. Mais do que precária, a poesia visual de Godard é realmente frágil, como se fosse sensível demais para permanecer intacta diante do universo dessas imagens que não mais permitem diferenças. Assim, poeta e pintor, ele evoca Claude Monet: “pintar não aquilo que vemos, já que não vemos nada; mas pintar o que não vemos”. Entre a teimosia e o fracasso, Godard tenta, ensaia, luta com o 3D para conseguir captar esses momentos – poéticos? de linguagem? -­ nos quais fulgura o invisível. Numa das sequências mais incríveis de Adieu…, Godard filma o 3D com duas câmeras: uma faz uma panorâmica e acompanha o caminhar de um personagem enquanto a outra permanece estática. Duplica-­se a imagem e é no hiato, no intervalo entre os dois olhos, que o 3D torna-se possível. Aqui, esse artifício remete claramente à sequência final de Napoleão (1927), de Abel Gance, na qual o diretor francês utiliza três câmeras – e três projetores – para retratar a grandiosidade do seu personagem. O campo se funde ao contracampo, e difunde-­se, pelo 3D, o intervalo de uma diferença do olhar.

De forma contrária, Godard busca um cinema menor, de pequenos acenos e instantes, prenhe  de  impurezas. Assim como já ocorria em Histoire(s) du cinéma(s), Godard utiliza­ frequentemente imagens de arquivo para reavivar instantes cinematográficos e prazeres cinéfilos. Curiosamente, a série de filmes iniciada em 1988 foi realizada para televisão, e é também nesse mesmo limiar que Adieu au Language se instala. Em Histoire(s), o arquivo abre a possibilidade do ensaio, de uma escrita cinematográfica mais próxima e íntima. Em Adieu… , os arquivos – com cenas de guerra e notáveis imagens da história do cinema – não apontam para lugar algum. Estão lá: sem diferença, sem hierarquia, sem possibilidade de narrativa ou poesia.

Se tudo tornou­-se arquivo e superfície, não faz sentido um filme-testamento que seria um arqui-­arquivo de um cinema de vanguarda, ainda por vir, que inauguraria outras poesias. É nesse instante que o réquiem da galáxia Godard canta seu último canto. Importa menos se ele é fúnebre, importa pouco se ele tangencia o maravilhoso e o intolerável. Talvez por isso, por essa distância galáxica, realmente não faça sentido algum premiar Godard com a Palma de Ouro. É questão de sentido histórico, já que ele mesmo se coloca fora da sua época, extemporâneo, em momento em que tudo exige apenas atualidade e contemporaneidade. Há algo de velho – na acepção de uma sabedoria digna de Oxalá – há algo de Tirésias na própria voz trêmula de Godard, que, propositadamente cego ao mundo de hoje, prefere ver, tocar e sentir prazer com um tipo de imagem que os novos cineastas, talvez, já achem para lá de demodé. É nessa velhice renitente que, da sua fantástica galáxia, ela consegue escapar do próprio ciclo do tempo.

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