A Vida Útil (La Vida Útil), de Federico Veiroj (Uruguai/Espanha, 2010)

março 11, 2013 em Em Cartaz, Victor Guimarães

avidautil1

Morte e vida de um olhar
por Victor Guimarães

“Friðriksson, você. Guðmundsson, eu. Kormákur, melhor você…”. A primeira imagem tem algo de claustrofóbico: um campo/contracampo em um enquadramento bem fechado e uma fotografia em preto e branco compõem a cena de um diálogo entre dois funcionários da Cinemateca Uruguaia, que repartem entre eles os filmes do ciclo de cinema islandês que se realizará (ou, pelo menos, eles ainda crêem que sim) em breve. Se a cinefilia é “a invenção de um olhar” – como tão bem definiu Antoine de Baecque – como encarar esse gesto quando ele está em vias de desaparecer? A questão que move o segundo longa-metragem de Federico Veiroj é clara: como dar conta do momento crepuscular de uma prática; como filmar um certo modo de amar (e de viver com) as imagens que parece não ter mais lugar no mundo?

Na primeira metade do filme, trata-se de testemunhar o ocaso. No interior de um espaço em ruínas, vemos uma pequena comunidade de amantes que resiste – desde o início, já quase sem forças – à ação inexorável da atualidade: oito meses de aluguel atrasado, projetores com toda a sorte de defeitos, um número de sócios que decresce vertiginosamente a cada mês. Para os antigos apoiadores, já não há motivos para sustentar “uma instituição cultural que não é economicamente rentável”. Um silêncio expressivo a preencher a banda sonora atesta o vazio renitente; uma longa profundidade de campo nos deixa entrever uma fila cada vez menor de espectadores.

Estamos em 2008. No ano do centenário de Manoel de Oliveira (haveria data mais simbólica?), a Cinemateca festeja o momento com uma retrospectiva da carreira monumental do mestre português, uma trajetória “apartada de todas as modas”, como faz questão de enfatizar o locutor do programa de rádio que divulga as atividades da instituição. Além de responsável por conduzir o espaço radiofônico, Jorge é também membro do conselho diretor, projecionista, arquivista e trabalha há vinte e cinco anos no mesmo lugar. Como a obra de Oliveira, o protagonista não adere facilmente a nenhum traço de contemporaneidade: trata-se de um profissional à beira da extinção e de um corpo que parece pertencer a outro tempo, materializado em uma performance marcada por um desajeito permanente em relação a tudo que o cerca. Jorge e seu companheiro Martínez – o diretor da instituição, tomado por um constante torpor que nos faz lembrar o estado de um vampiro agonizante – se assemelham aos objetos que o rodeiam. Filmados quase sempre em plano fixo, com uma precisão geométrica e um delicado jogo de luz e sombra, o gravador analógico, as folhas de papel em que se prepara um relatório para o patrocinador, as cadeiras que já sucumbem ao tempo compõem um território fantasmagórico, no qual os personagens invertem o caminho tradicional da ficção científica: em A Vida Útil, são os homens do passado que insistem em habitar um presente inóspito.

avidautil2

Suas paixões não cabem mais entre nós: o programa de rádio não suporta a descrição minuciosa da batalha sobre o gelo de Alexandre Nevsky; o mundo parece não tolerar a obstinação de um quinquagenário tímido que aguarda ansioso pela vinda da amada à matinê. Encarnada em uma dramaturgia minimalista, a sensibilidade de Veiroj se move entre uma constatação da estranheza desse universo – a um só tempo nostálgica e irônica – e uma profunda ternura por seus personagens. De um lado, o que esse olhar nos mostra é que, se é provável que a cinefilia nunca tenha deixado de ser uma espécie de gueto, uma comunidade de uns poucos diletantes, é preciso reconhecer que hoje essa prática se encontra, como nunca, tristemente desconectada da realidade ao redor. De outro, o que vemos é um adorável e melancólico conto sobre um grupo de sujeitos contaminados pelo vírus do cinema (como numa comédia adolescente, Jorge ensaia algumas vezes, em voz alta, um simples convite para um café). Se a cinefilia está morta, ainda é possível imaginá-la, construí-la, encená-la como um sonho (possível apenas no espaço-tempo do filme).

Finda a primeira parte, um entreato nos mostra os últimos estertores da Cinemateca, a desilusão e as despedidas de seus guardiães. Uma peça musical estranhamente bela (a letra diz de um cavalo que galopa “incansavelmente entre duas matinês”) acompanha um conjunto de planos que sintetiza os signos derradeiros de um modo de enxergar as imagens e de habitar o mundo. No entanto, algo na música (a bateria incisiva, a confusão alegre do arranjo vocal, quiçá) já anuncia um novo movimento. Desempregado, destituído de seu pequeno reino, Jorge caminha sem pressa pela cidade, mas sua expressão não é de derrota. Enquanto parte – com o desajeito de sempre – em busca do tão desejado encontro com Paola, o enquadramento abandona a fixidez dos interiores e adquire certa mobilidade; os planos claustrofóbicos da Cinemateca cedem lugar aos espaços abertos de uma Montevideo confusa e pulsante; o silêncio é preenchido pelos ruídos da rua.

avidautil3

De repente, o espectador vê nascer um outro filme. A cinefilia, antes visada como um movimento a ser observado e pensado em sua obsolescência, torna-se uma matéria puramente lírica, um delírio, uma aposta. O gesto de amor ao cinema perde as estribeiras da narrativa e contamina toda a mise en scène: excertos de músicas que nos transportam até o período clássico surgem sem aviso e se misturam à sonoridade ambiente; Jorge abandona a rotina metódica e passa a cometer pequenos atos de terrorismo poético, com uma sagacidade digna de um Groucho Marx ou de um Woody Allen (o monólogo sobre a mentira para os futuros advogados é brilhante); como um destemido Fred Astaire fora de forma, ele dança sozinho pelos degraus de uma escadaria improvável. Quando Paola finalmente aceita o singelo convite para ver um filme, é a vida que – no espaço da ficção – já se tornou cinema.

Em sua face desencantada, A Vida Útil constata (com certo atraso, é verdade) o fim de uma era: não podemos mais conceber um mundo em que as imagens do cinema tenham um papel inquestionável a cumprir na vida de todos nós, ou em que um filme possa ainda ser constituído como um front de batalha (com chances reais na disputa). Foi-se o tempo em que a mobilização pela demissão de um diretor de cinemateca ainda podia representar um dos primeiros sinais de uma revolução. Mas talvez a atitude mais potente do filme de Veiroj resida em encontrar na cinefilia uma desesperada tentativa de encantamento do mundo pelas imagens; em fazer desse olhar moribundo o lugar disparatado de uma restante vida. Com a modéstia que lhe cabe em tempos tão difíceis, A Vida Útil constrói um pequeno ensaio póstumo – e belamente vivo – sobre o amor pelo cinema como um desvario calmo e sincero, como uma doce mentira em que nós – imersos na escuridão de uma sala e partícipes de um gesto que ainda insiste em não se dar por vencido – acreditamos sem pestanejar.

Share Button