A Última Caçada De Búfalos (The Last Buffalo Hunt), de Lee Anne Schmitt (EUA, 2011)

março 1, 2015 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

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O último Western
por Victor Guimarães

“Como descrever esta atividade narradora que salvaria o passado, mas
saberia resistir à tentação de preencher suas faltas e sufocar seus silêncios?
Qual seria esta narração salvadora que preservaria, não obstante,
a irredutibilidade do passado, que saberiam  deixá-lo inacabado,
assim como, igualmente, saberia respeitar a imprevisibilidade do presente?”

Jeanne-Marie Gagnebin, História e Narração em Walter Benjamin

No coração do cinema de Lee Anne Schmitt há um conflito primordial: a interseção entre a paisagem em transformação e o imaginário coletivo inscrito nas práticas humanas. No leito seco de The Wash (em colaboração com Lee Lynch, 2008), nas lápides de Three Stories (2011) ou nas indústrias abandonadas de California Company Town (2008), a câmera busca encontrar os vestígios do processo civilizatório estadunidense, assentado em um desenvolvimentismo desenfreado cuja face invisível é o extermínio (em particular, das populações nativas). Sua historiografia materialista, no entanto, não se dirige apenas ao passado: trata-se de examinar um processo em curso no presente, cujas marcas estão por toda parte, mas só se tornam visíveis através do olhar atento da cineasta (os enormes índios de plástico e os souvenires portáteis, os letreiros à beira da estrada e os gestos humanos mais banais).

Se o anjo benjaminiano enxerga a história como um “amontoado de escombros”, ao cinema resta a tarefa de filmar seu movimento presente, aqui e agora, numa contemporaneidade inevitavelmente contaminada pelo processo histórico – porém indeterminada, aberta, em contínua transformação sem destino certo. A questão proposta por Jeanne-Marie Gagnebin (a partir da obra de Benjamin) é tão certeira quanto desafiadora: como encontrar, no presente, as permanências de um passado terrível – ressaltando os interstícios das narrativas hegemônicas e o fora de campo da história oficial –, mas resistindo à tentação de sufocá-lo com uma narração igualmente totalizante? Como engendrar uma historiografia que não ceda às tentações do relato explicativo ou do painel ideológico sem arestas?

A Última Caçada de Búfalos é um filme impregnado dessas interrogações. Não é uma resposta a elas, mas certamente uma maneira viva e potente de enfrentar essas questões que concernem diretamente ao cinema. Nesse sentido, trata-se do exato oposto de um filme de tese: investigação in situ, pensamento cinematográfico que se constrói plano a plano, diante de uma realidade em vertiginoso movimento. A singularidade do filme na obra de Schmitt é justamente seu profundo diálogo com a tradição do cinema direto: as composições tornam-se menos estáticas e mais irregulares; o plano-sequência predomina sobre o fragmento; a constituição paciente e multifacetada dos personagens convive de forma mais intensa com o olhar cirúrgico diante da paisagem.

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Logo no início, em algum lugar perdido do estado de Utah, um grupo de caçadores endinheirados contrata o serviço de cowboys da região para a caçada anual dentro de um parque, um dos últimos refúgios do bisão americano em estado selvagem. Essa pretensa selvageria, no entanto, já foi inteiramente colonizada e controlada pelo capital e pela burocracia. Num dos primeiros planos, a câmera observa a ação de um dos caçadores, trajando um simulacro de vestimenta militar. Postado em uma colina alta, de onde se vê uma longuíssima extensão de terra, ele abate sem dificuldades um dos animais de um pequeno grupo. No decorrer do filme, esse ritual se repetirá algumas vezes, quase sempre de maneira burocrática e sem entusiasmo. A Última Caçada de Búfalos é um contraponto desencantado à vibração cintilante de A Fera Luminosa (Pierre Perrault, 1982): se Perrault encontrava na caça ao alce uma jornada ainda plena de desejo e perigo, Schmitt só pode encontrar a densidade de uma vivência deteriorada. O alce solitário e inalcançável foi substituído pelos rebanhos de búfalos acuados, inteiramente disponíveis ao gozo fácil dos caçadores munidos de fuzis de alta precisão; o imenso fora de campo da floresta se transformou na paisagem seca, totalmente plana e absolutamente visível a partir das colinas panópticas; a mata fechada e misteriosa que remetia à literatura agora se parece com um cenário de videogame.

Esse devir-simulacro da sociedade estadunidense – expresso de maneira sintética em um plano que exibe um painel luminoso à beira da estrada, cujo conteúdo publicitário é uma bandeira “pixelada” – convive, no entanto, com uma atenção detida ao cotidiano denso dos cowboys e de suas famílias durante a caçada. Uma das personagens mais interessantes – que o filme constrói com uma paciência singular – é a mulher de um dos trabalhadores, que aprendeu a caçar com o marido e agora mata seus próprios búfalos autonomamente. Na longa sequência dedicada a ela, o filme alcança um grau de ambiguidade e de densidade humana inéditos na obra de Schmitt. Há a constatação da permanência de um imaginário militarista e conquistador (o amor pela arma, o orgulho do ato de matar) e, ao mesmo tempo, um renitente mistério, uma opacidade que seu rosto e sua voz não deixam apanhar de todo. Naquele que talvez seja o plano mais forte do filme, um close-up mostra o olhar do búfalo baleado, enquanto a mulher, no fora de campo, fala e atira mais algumas vezes até conseguir fazer com que o animal pare de respirar. Há pulsão de morte e fragilidade, pragmatismo e emoção.

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Ainda no início, uma voz over narrava o lento processo de extermínio do bisão americano, que ocorreu ao longo de séculos e caminhou ao lado do genocídio das populações indígenas (genocídio que aconteceu, em grande parte, pela fome). O pano de fundo de A Última Caçada de Búfalos é, certamente, a ideologia da conquista do Oeste, cujo legado cinematográfico impregna toda a tradição do Western. O modo como essa grande estrutura do pensamento estadunidense é trabalhada no filme, no entanto, é bastante indireto: há algumas citações de documentos históricos, vários planos de observação da paisagem e dos objetos, mas a maior parte do material expressivo agenciado pela montagem é formada pelo acompanhamento desses cowboys, alguns dos últimos guardiões do templo. Embora a proximidade da abordagem desses homens seja o que distingue o filme em relação à obra restante da cineasta, é preciso fazer uma ressalva importante: apesar de a aproximação ser multifacetada e complexa, nem sempre o filme resiste à tentação de abordá-los como meros portadores de uma ideologia, como peças de um imaginário que os ultrapassa e “fala” através deles (ou a despeito deles). Em alguns momentos isolados (sobretudo em uma piada preconceituosa sobre Obama), a mão pesada da cineasta recorta cenas em que há uma confirmação reiterativa da ideologia, que aparece encarnada nos corpos, mas de forma pouco nuançada.

Schmitt é sempre mais inventiva quando opera por justaposições mais sutis, menos óbvias ou cristalizadas. Quase ao fim do filme, uma sequência mostra o cuidadoso trabalho de um taxidermista, empalhando uma cabeça de búfalo. Em close-up, vemos o olho morto do bicho, enquanto ouvimos o empalhador dizer que “tudo o que está em jogo neste trabalho é fazer com que o animal pareça vivo”. Se lembrarmos da sequência em que o búfalo moribundo – mas ainda vivo – resistia aos sucessivos tiros de fuzil da mulher, perceberemos que o enquadramento é praticamente o mesmo. Entre a resistência silenciosa ao extermínio diletante e o simulacro da vida empalhada, o cinema encontra uma correspondência inesperada, inventa uma outra historiografia possível no trabalho da montagem.

É então que percebemos que o Western não é apenas uma referência subterrânea de A Última Caçada de Búfalos, ou um pano de fundo do qual o filme se destacaria pela distância. No trabalho analítico sobre a relação entre esses personagens e a ideologia estadunidense, o filme se aproxima (de maneira nada óbvia) de alguns dos melhores Westerns – justamente aqueles que ousaram incidir criticamente sobre essa mesma ideologia, desconstruindo-a sem nunca abandonar seus personagens. O convulsivo final de Sangue de Heróis (Fort Apache, John Ford, 1948) – a adesão profundamente irônica do personagem de John Wayne ao falseamento da trajetória inglória do Tenente-Coronel Thursday – retorna de maneira insuspeitada nesses bonecos de plástico que contam a história dos búfalos em Utah. Do retrato de Thursday na parede, ao cassino que mistura souvenires de índios e de soldados, toda uma história de simulação é revelada, ao mesmo tempo em que se ensejam novas maneiras de enfrentá-la.

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