A Mulher que Amou o Vento, de Anna Moravi (Brasil, 2014)

fevereiro 1, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

amulher

Além do espelho
por Juliano Gomes

O longa de Ana Moravi é tão cristalino em seus propósitos quanto a sua impossível imagem propulsora: o vento. Uma mulher vive isolada no alto de uma montanha, onde venta insistentemente, e o filme vai narrar seu envolvimento com o vento, e também a reação de alguns objetos coloridos – como cataventos e fitas que ela amarra pelos arbustos ao seu redor – movidos pelo vento. Acompanhamos o movimento da protagonista e seu gradual envolvimento com essa força  invisível, que, aos poucos, vai literalmente ganhar corpo e tornar-se personagem. Essa aparição é condicionada por um jogo de visibilidade no qual esse vento, tornado um homem (Dellani Lima), só aparece a partir de uma perspectiva que parece a do filme e não da protagonista, vivida por Thais Dahas. O jogo aqui gira no sentido de dar forma ao invisível, buscando justamente o movimento dos indivíduos que reagem a esse vento.

“Amo você e você é parte de mim” ouvimos dizer a voz over feminina. Essa voz perpassa a personagem em seus atos, na medida em que não se trata de uma voz subjetiva, ou interior, mas uma narração da voz do filme, como instancia que organiza o fluxo de signos, e que se mantém intacta em seu lugar de guia de entendimento, tecendo comentários sobre o vento, e as variadas acepções e imagens em torno dele. A voz faz uma espécie de caminho paralelo, que se mantém como eixo que reafirma os propósitos de A Mulher que Amou o Vento, seguindo a clareza de intenções aqui já citada. O som vocal, ele mesmo vento, funciona como âncora narrativa que mantém esse centro sempre sob domínio, como o fio da pipa, mesmo que em chave evocativa e não descritiva. Sua entonação etérea contribui como ferramenta de reiteração de uma série de procedimentos que, justamente pela força de convergência, deságuam num efeito de reiteração que torna o filme um universo tão coerente quanto estéril como lugar de experiência de um outro.

A opção pela fábula se torna uma armadilha na fragilidade de construção de um universo que, embora coerente, precisa, naturalmente, ser dinâmico. A ponta principal do mecanismo fabular é a ponta que toca o significado, que dentro dela toma a forma de outra coisa (o fantástico). Essa extremidade aqui acaba absolutamente comprometida, proporcionalmente à força de construção desse universo interior, no sentido do estabelecimento dos referenciais espaciais, temporais e de pontos de vista. É notável o exemplo da subjetiva do vento: sob um áudio excessivamente sugestivo de uma intensidade outra (se aproxima do ruído grave, oposto à harmonia saturada do resto dos elementos), uma câmera em movimento, com imagem de cores deformadas, vai se aproximando dos locais por onde a protagonista passa e começa a interagir com ela, alternando entre os planos dessa visão do vento e do filme como ponto de referência: um real condicionado às premissas do irreal. Tal abordagem, pela carga de ênfase e fragilidade como contraponto, banaliza essa experiência de possível troca de olhares (“ser parte de mim”), para uma reafirmação incessante, que segue também à medida da entrada desse segundo personagem como corpo.

Mas um mito é antes de tudo uma ficção que se descola da experiência comum do mundo pela sua construção interna que o faz voltar ao mundo com violência, numa ligação que passa justamente pela via da aproximação das suas relações internas, pelo desenho de suas forças em choque. Toda ficção necessita ser um feixe de choques em alguma medida, seja de palavras, espaços, perspectivas, pois é nessa fricção que se pode produzir o espaço da experiência que não se submete necessariamente a nenhum estado prévio de si mesma. Um mito é sempre uma estrutura de composição de metamorfoses do mesmo, e da dinâmica de variação desses estados. Todo o investimento em saturação aqui – nas cores, na aparência absolutamente intocada da protagonista em relação ao ambiente, às ênfases no som (vento e água, por exemplo, tentando amplificar algo que já redunda na imagem) – atesta uma falta de confiança justamente na percepção natural do mundo, onde os elementos possam falar por si, em sua suposta pequeneza, na qual ganharia força como valor de conjunto e interação.

O vento como matéria e metáfora do invisível parece ter desviado atenção para o que é material e concreto nas imagens e sons, materiais de composição do filme. O não estabelecimento de um regime minimamente sólido como campo comum custa justamente o esvaziamento da experiência do fantástico. Para alcançar uma verdade dos sentidos, qualquer lógica de acontecimentos precisa da organização dos elementos de maneira que criem alguma possibilidade de diferença real. A construção de um mundo necessita da construção de regras que proporcionem o seu funcionamento e variação dentro desse espaço então criado. Como possibilidade de treva nesse mundo de cores e situações primárias, um recurso como a subjetiva do vento dificilmente cria alguma tensão ou mesmo força de contraponto, na medida de um estabelecimento tímido de uma normalidade a ser quebrada por ele. A força desse sublinhar é justamente o atestado da distância de uma possibilidade de zona de mistura que o filme poderia permitir através dessa procura da forma do que não tem forma, que resulta justamente nesse contorno excessivo do filme como escravo de uniformidade de suas intenções. Nada conflita.

A solidão da protagonista é uma materialização de uma vontade de afirmação de uma beleza que não se revela justamente por lhe faltar o essencial: sua força de cintilação não sofre ameaça de falhas. O belo é necessariamente vizinho de seu negativo, pois sua força é justamente a força do risco, do excesso, que em transbordamento se torna júbilo, por composição de opostos. E a imagem que encena com perfeição essa perspectiva não é seu desejado ápice, o encontro com o vento-homem na pedra, mas o momento em que a mulher, numa isolada e radical variação de modos de ver, parece sozinha no planeta. Essa virada ótica, que remete diretamente à imagem do Pequeno Príncipe sobre seu planetinha, é a marca desse trajeto que parece extenso mas é absolutamente curto e autolimitado (o corpo e figurino da protagonista indicam alguém que nada sofre, interna ou externamente).

O amor como força de autotransformação é obrigatoriamente um exercício de abertura ao outro, e portanto, à própria dissolução. O trajeto do filme de Ana Moravi toma a forma de acumulação de quadros, cuja lógica de composição interna e externa (montagem) parece demasiado tímida e arbitrária, que não constituem nem um serialismo performático, nem uma narrativa de gradações. A própria condição de visibilidade desse universo fabular é o verdadeiro ausente aqui, na medida em que sua condição material está atrelada a uma armadura simbólica que só vê a si mesma. Uma fábula sobre o amor que toma a forma de um narcisismo da imagem sobre si mesmo, que só quer mais, mas mais de si, mais cor, mais brilho, mais luz. Cataventos, ventiladores, birutas são, antes de qualquer coisa, objetos de passagem, que só funcionam em relação ao que lhes é exterior. É justamente o vácuo de uma porosidade real para a construção de movimento que represa uma relação com a imagem em variação. Pois “se jogar no perigo” e estar exposto ao invisível é poder se ver refletido nele, avistar sua reversão e negativo, e isso só pode se dar pelo abalo e pelo dano de uma idéia de harmonia que não suporta mais do que seu próprio reflexo.

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