A Mulher do Policial (Die Frau des Polizisten), de Philip Gröning (Alemanha, 2013)

novembro 9, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Paulo Santos Lima

amulherdopolicial

Dispositivo prisional
por Paulo Santos Lima

O dispositivo cinematográfico (usado num filme) tem de explicitar, tornar algo visível ou saliente. O carro, em sua estrutura enjaulada, mas sendo, antes, uma estrutura mecânica, serviu como meio para Kiarostami evidenciar uma realidade dura à mulher no Irã em Dez (2002). Godard, em vários trabalhos, como em Histoire(s) du Cinéma, desvela o dispositivo narrativo (cinematográfico, literário, mecânico), e sempre operando numa fronteira perigosa, sem jamais descambar para o uso sensacionalista do aparato, inclusive pondo-o em questão. Alain Resnais, em Meu Tio da América (1980), compara, literalmente, homens a cobaias num laboratório. Há alguns ótimos exemplos de utilização, mas boa parte dos filmes que recorrem a dispositivos em modo conceitual ou autorreferente cai em fetichismos ou oportunismos. É fácil causar impacto ao mostrar a ossatura ou as vísceras do corpo-filme. A Mulher do Policial rendeu ao seu diretor, Philip Gröning, o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza – júri que (ainda) se impressiona com presenças supérfluas que sacrificam e descarrilam o andamento estilístico de um filme. É a dura realidade dos consagrados festivais internacionais.

O filme de Gröning acompanha um policial, sua esposa e a filhinha. Na aparente felicidade e equilíbrio, é revelada, aos poucos, uma disfunção. O marido é atormentado e hostiliza fisicamente a mulher. Esta, por sua vez, inclina-se sem resistência às agressões. A rarefação com a qual o filme revela a situação sugere uma patologia, sobretudo quando a soma dos segmentos intercala a suavidade e pureza idílica da filhinha, a fragilidade da mulher e o desequilíbrio (e também fragilidade) do policial. Fala-se de vidas, mas há uma rarefação total de vida neste filme, que parece encenar tudo como um laboratório à la Von Trier.

O escancaro do enguiço da espécie humana não é novidade – presente em alguns filmes indies americanos dos anos 1990-2000, em vários filmes austríacos e alemães -, mas Philp Gröning opta por um “diferencial”: gabaritar o filme em capítulos. Capitular é mais um “dispositivo” da literatura, mas sua presença formal, no cinema, cumpre igual função. São 59 capítulos, todos iniciados com “Início do capítulo X” e terminados com “Fim do capítulo X”. O filme gasta mais de 20 dos seus 175 minutos com essas cartelas, ou seja, elas têm uma importância capitular (um trocadilho) na exposição. O capítulo, num livro, pode significar de deslocamento temporal a mudança de ponto de vista, mas em todos os casos funciona também como um respiro na fluência narrativa, índice que faz o leitor dar um salto no vazio para reconfigurar a experiência da leitura. No caso de A Mulher do Policial, contudo, o uso é vazio, esquadrinhando e tornando mais inacessível a compreensão daquele estado. Temos planos longuíssimos onde nada acontece, outros que mostram (aí, sim, explicitamente) a pele da belíssima mulher do policial marcada de hematomas, algumas passagens bonitas da menininha, um homem de idade que vive só e que supostamente é o policial que, num futuro, foi abandonado por mulher e filha, ou elas se mataram, sabe-se lá, mas ele vivendo sob a punição do passado. São suposições num filme cuja única clareza é a narcolepsia e violência dos seres, e a presença maciça de uma estrutura que chega ao filme como a situação de uma casa ser construída após seus moradores já estarem no terreno.

Trata-se da o opressão de um dado formal para dar um viés “artístico” e, ao invés de revelar, penumbrar qualquer relação mais direta com aqueles seres. A não se esquecer que estamos falando, aqui, de seres humanos, criança, homem estressado com trabalho, esposa dedicada, todos numa pequena cidade alemã. Um olhar forjado como clínico, olhando os personagens do alto, colocando-os em planos frontais recitando músicas e fábulas infantis (a mesma estratégia do choque conceitual de Lars Von Trier), tudo sob um distanciamento tal que não diferencia não-acontecimento de espancamento. Nem os robôs de Transformers mereceriam tal tratamento dramático. Um computador teria realizado uma obra melhor, pelo menos em sacar a beleza da atriz Alexandra Finder, filmando-a com o mínimo senso cinefílico, ou em passar ao largo da assimetria (artisticamente estratégica) que Gröning escolheu para estilhaçar seu filme em capítulos.

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