A Gatinha Esquisita (Das Merkwürdige Kätzchen), de Ramon Zurcher (Alemanha, 2013)

outubro 19, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira

agatinhaesquisita

O estranho cotidiano
por Pedro Henrique Ferreira

A Gatinha Esquisita, longa-metragem de estreia de Ramon Zurcher, se passa durante uma reunião familiar, que agrega também alguns vizinhos, em uma preparação para um jantar. Este acontecimento banal é o gatilho para que o diretor explore a estranheza da vida cotidiana: os gritos sem sentido da menina quando o helicóptero de brinquedo voa, quando a máquina de lavar é ligada, ou outros aparelhos eletrodomésticos são postos a funcionar; o dedo dela que desliza na borda do copo e faz ecoar um ruído estridente; a garrafa vazia que rodopia magicamente; os personagens movimentando-se coreograficamente pela cozinha… dentre inúmeros outros objetos e situações que são utilizados parar se criar um sentimento suave de bizarrice – não são os fatos que são surreais; é a própria vida que fornece seus constantes deslumbres possíveis. Mesmo os objetos inanimados falam.

Estamos diante do patético inquietante, a “animação do inorgânico”, de Worringer. Como Lotte Eisner relembra em um texto dedicado aos antecedentes do Expressionismo, o gesto de animar os objetos seria uma característica consumada na essência do próprio espírito germânico, ao ponto de que “na sintaxe normal da língua alemã, os objetos têm vida ativa, completa: emprega-se, para falar deles, adjetivos e verbos que servem para os seres vivos, as mesmas qualidades lhe são emprestadas, eles agem e reagem da mesma forma”. Mas enquanto, no Expressionismo, a deformação dos objetos ganhava um caráter sombrio, de terror, a sua presença em movimento aqui é o germe do cômico surrealista de um Tati (ou Ozon, em seus melhores momentos), da excitação com as novas possibilidades das coisas típicas de um Vertov, ou mesmo ainda do absurdo hitchcockiano: a própria vida cotidiana é estranha, repleta de uma loucura ao mesmo tempo espetacular e artística.

Zurcher, porém não trata nada daquilo como espetáculo. Não há choques, revelações ou resoluções finais. A estranheza é sutil. Espetacular já é a junção casual de tantas coisas com potências expressivas possíveis. Assistir/encontrar este espetáculo no dia-a-dia, nos encontros com pessoas, nas coisas, nos objetos, deslumbrar-se como a menininha diante dos fenômenos (e a infância não é justamente este momento de descoberta?), portar um olhar empolgado com a possibilidade de se decifrar o mundo, ainda que este mundo seja apenas uma sala durante algumas poucas horas – uma espécie de instalação que poderia prosseguir, indefinidamente –, tudo isto está implícito no exercício que Zurcher parece propor ao criar inúmeras situações imagéticas e sonoras com objetos que estão em todos os cantos. Com isso, o pedido é para que todos nós não esqueçamos que, um dia, os objetos nos assustavam, e o faziam justamente por parecerem vivos, e que hoje em dia, outros objetos, no cotidiano moderno, ainda e sempre nos espreitam.

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