A Fuller Life (EUA, 2013), de Samantha Fuller

outubro 29, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Paulo Santos Lima

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Revelação, encontro, documentário
por Paulo Santos Lima

É praxe nos documentários biográficos recriar o universo do biografado, por via de remissão estilística, e às vezes com o diretor buscando imprimir também sua assinatura no filme. Nada contra essa inclinação que grita forte em diversos trabalhos, pois para exemplos acidentados como Glauber, o Filme – Labirinto do Brasil (2003), de Silvio Tendler, há belezas como Rocha que Voa (2002), um diálogo póstumo de Eryk Rocha com seu pai, Glauber, e também sobre a relação entre o Brasil e a América Latina. É dessa intimidade que surgem filmes menos sensacionalistas e mais comprometidos com uma verdade “pura”, anterior ao filme e mais honesta com o assunto ou com o biografado, mesmo quando o olhar pessoal do realizador fica timbrado nas imagens.

De outra filha de gênio, A Fuller Life é ainda mais estoico, com Samantha Fuller lidando com o particular apreensível de seu pai sem construir um discurso em cima, ou seja, sem impor à imagem seu olhar sobre ele, e sim registrar o olhar do próprio Samuel Fuller (1912-1997). É uma espécie de “documentário-arqueológico”, extraindo material do sítio para reconstruir o que existiu no passado. Não é necessariamente sobre os filmes de Fuller, mas sobre o homem Fuller, este que realizou filmes, foi jornalista, repórter de guerra, roteirista etc. Não é o olhar de filha sobre um pai, mas o lugar deste pai no mundo, ou seja, o que ele fez e pensou sobre as coisas: em filmes, mas também em escritos, em filhas, casamentos, relações e tal. Samantha foi ao escritório de Fuller, fuçou em caixas, mexeu na papelada, encontrou fotografias, documentos, e se deparou com uma espécie de pedra roseta que orientou uma luz mais incisiva sobre o homem e o cineasta Samuel Fuller: os filmes em 16 mm que ele rodou como soldado cinegrafista durante a na 2ª Guerra Mundial, quando já era bem escolado em roteiros para Hollywood, mas ainda bem antes de estrear na direção de longas-metragens, em 1949.

Samantha não faz, porém, um auê com esse material inédito. Ele aparece junto aos trabalhos de Fuller e a outras imagens conteudísticas e ilustrativas, todos assentados num terreno mais sólido e fiel ao personagem do documentário, a sua autobiografia A Third Face: My Tale of Writing, Fighting and Filmmaking. Trechos deste livro que traz o pensamento do cineasta são lidos por 15 admiradores, entre William Friedkin, Bill Duke, James Franco, Mark Hamill, Joe Dante, Monte Hellman e Constance Towers, ou seja, entre cineastas e atores, próximos ou desconhecidos a Fuller, presentes ou não em seus filmes. O recurso não coincide com os depoimentos filmados de Fuller, pois o texto ganha um caráter de escritura, de discurso legado do próprio Sam Fuller ao (e sobre o) mundo e também a si próprio, sobre quem ele foi. Os 15 leitores não comentam sobre Fuller; eles são quase hospedeiros de Fuller, que, ele próprio, comenta sobre si. É quase uma sessão espírita, onde há encarnação, jamais recriação. No máximo, uma entonação, a coincidência de um charuto na boca, mas aí como farsa.

Nada a ver com o Tom Ripley, o personagem de Patricia Highsmith tão reiterado por vários documentaristas. Samantha faz um trabalho de historiadora e de jornalista, sem sair de seu lugar de filha. Talvez isso explique a afinação de foco em extrair das mais de 600 páginas do livro os trechos que melhor tangem o tal Samuel Fuller “mensageiro, jornalista (…) viajante, fotógrafo (…) aventureiro, músico, voluntário, herói de guerra, sobrevivente, contador de histórias, amigo, pai” (o único lapso apelativo do documentário e de seu trailer promocional), todos eles a ver, principalmente, com o Fuller que esteve na guerra e que comentou sobre a violência em consonância com a que estaria em seus filmes. Sobre “a guerra em si ser uma insanidade organizada” e que “guerras civilizadas não existem”, que ele cita em sua autobiografia e que são citados no documentário, cenas de Capacete de Aço (1951) e Agonia e Glória (1980) fazem a retífica. A maior parte dos trechos serem extraídos dos comentários do Fuller soldado e posteriormente atormentado de guerra respondem a Shock Corridor (1963), Cão Branco (1982), China Gate (1957) e Anjo do Mal (1953), presentes no documentário. Não é cristalizar Fuller como um cineasta da violência, mas trazer aquilo que condensa seu modo de ver o mundo, de realizar cinema e dos filmes em si. Não é a violência como pauta, e sim como inerência material da qual o cinema (e também o jornalismo, a literatura, as viagens… em suma, tudo que Sam Fuller fazia) se constrói.

O documentário é, talvez, o cinema que mais precise portar uma revelação. O que Samantha impõe sobre si, ao filme, é sua relação afetiva com o pai, o que diz quem foi o grande Samuel Fuller, algo bem importante aos ignorantes, claro. E é nessa “humildade” em colocar na mesa os objetos pessoais do pai, colocar na tela todo o material de Fuller reunido sobre o sólido tampo do livro A Third Face…, que algo ascende aos olhos (e acende os olhos): os tais filmes em 16 mm. O livro é a base, mas a liga que reúne e constrói (fotocopia, melhor definindo) um “corpo Samuel Fuller” vem desses registros. Dos planos fortes (o inédito tende a ser sempre forte no cinema), há a brutal imagem de um campo de extermínio. Fuller atuava ali, naquele in loco infernal, como cineasta e jornalista, sem dúvida, mas sobretudo como homem pisando na terra do mundo. O cinema físico do qual ele seria um dos grandes expoentes na Hollywood dos anos 1950 estava consumado ali, naquele 1945 e suas surpresas medonhas.

O texto do livro lido à língua de terceiros localiza o evento para revelar uma verdade escondida em Fuller. Não a que ele e seus filmes tanto falavam, mas algo que vem de suas áreas mais interiores, mais subterrâneas, aquelas que não permitem sua reprodução formal. As palavras, os filmes, uma performance consciente e inteligente, tudo isso já era conhecido sobre Samuel Fuller. O que algumas das imagens em 16 mm, escolhidas a dedo pela saudosa filha, iluminam é a verdade sobre um homem, ou uma parte dela. Essa que Orson Welles comenta em Cidadão Kane (1941) como impossível de ser desvendada, no máximo reproduzida por um objeto icônico. A própria Samantha Fuller, que estava na sessão do documentário na 37ª Mostra, disse que pretende ainda fazer um filme sobre o Dia D (sim, Fuller esteve no desembarque na Normandia, assim como Lee Marvin esteve na projeção desta sua passagem, em Agonia e Glória) com o material encontrado.

A revelação surge no encontro: dos nossos olhos com o mundo, da retina com a tela, da filha com o pai que se foi. Direta, como o pai Sam, Samantha monta um documentário sem desrespeitar o lugar e o papel das peças. Sem maquiagens, sem egolatrias autoristas, sem arabescos nesse reencontro. A experiência (e, quem sabe, a revelação) se dá em encontro que é como mergulho, ou batida. Se não chega a ser a imagem icônica do Rosebud de Kane, é a situação mais ilustrativa sobre o Samuel Fuller de facto.

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