A escolha moral em Pulse

julho 17, 2013 em Em Pauta, Pedro Henrique Ferreira

Pulse (2001), Kiyoshi Kurosawa

 por Pedro Henrique Ferreira

Olhemos rapidamente a decupagem do preâmbulo de Pulse (Kairo, 2001) – o encontro entre uma mulher e um homem que desconhecemos, dentro de um navio perdido no meio de uma tempestade. Ele traz de dentro da cabine uma corda até se deparar com ela, que olha as nuvens negras do horizonte em uma composição planimétrica. Os dois são enquadrados de costas em distâncias diferentes, parados, estabelecendo uma profundidade de campo.

kairo17

Temos então um contra-plano que revela sua expressão cansada.

kairo16

Retornamos à imagem dela, com o surgimento da voz em off do narrador a dizer: “Tudo começou um dia, sem aviso prévio, assim…”.

kairo15

A voz invade a última imagem da cena enquanto a sonoridade ambiente se esvai. Vemos um navio visto em extremo plongée em meio a uma temerosa escuridão.

kairo18

Não são enquadramentos incomuns no cinema de Kiyoshi Kurosawa, operando o mise en scène através de figuras estáticas, em quadros fixos, com movimentos principalmente para reenquadrar (e enrijecer novamente) a dinâmica de movimentação dos atores quando esta ocorre. Este pequeno preâmbulo que abre o longa-metragem não nos dá muitas pistas. Mas evidencia, sobretudo pela construção do ambiente, que há uma crise pairando no ar, e que esta mulher sofre de algum trauma. Há um problema.

A mesma decupagem será retomada na conclusão da obra. Retornaremos a este mesmo momento em que os dois estão no topo da náu. E teremos, para este encontro, uma decupagem rigorosamente igual. Ainda que podendo recorrer às mesmas imagens do preâmbulo, o diretor optará por refilmar cada um dos quadros, ainda que eles remetam a precisamente o mesmo instante. Àquelas que correspondem aos planos fechados, respectivamente, do homem e da mulher, ao invés do antigo fundo composto por nuvens carregadas, teremos agora um plongée em direção às correntes de água do mar. O correlativo do plano em profundidade de campo será ligeiramente reenquadrado, e a sombra negra que ocupava a maior parte do plano geral do navio visto de cima perderá sua “mancha”.

kairo20 kairo21 kairo19 kairo22

Tudo indica que Kiyoshi Kurosawa tenha rodado estas imagens dopplegangers da conclusão logo em sequência às do preâmbulo. Contudo, enquanto neste há um enorme esforço em se utilizar da tempestade como um meio expressivo, no outro, há um esforço diametralmente oposto em fazer de tudo para ocultá-la. A mancha negra, o “problema” que foi colocado no preâmbulo, não existe mais enquanto tal. De alguma forma, foi solucionado, amenizado, escondido por esta estratégia formal. Mas como? Qual é a natureza desta solução?

Com efeito, André Keiji Kunigami notou alguns dos aspectos centrais que habitam o cosmos de Kurosawa, destrinchados em seu texto aqui na Cinética, sob os conceitos de ruína, fantasmagoria, catástrofe, não-humano, e outros. E de fato, há uma associação destes recursos de estilo aos problemas sociais da modernização capitalista pela qual o Japão passou, e o “enterro” voluntário de seu passado imediato. A temática de Kairo, por exemplo, relata à virtualização do mundo, ao suicídio de jovens, sobretudo a uma perda de distinção entre o real e o irreal que na virada do milênio põe no mesmo plano a vida e a morte, o humano e o não-humano. Mas não se trata apenas de um esforço de diagnóstico. Há também um momento de solução, capaz de desanuviar, mesmo que temporariamente (a tormenta continua presente – só não está sendo filmada). É justamente este desvio que executa a passagem do preâmbulo à conclusão – a diferença entre uma sequência inicial e o seu duplo final.

Os protagonistas das produções de Kurosawa se encontram no olho do furacão, em um local privilegiado para serem capazez de entender a natureza da crise que está em pauta. São problemas que têm raízes remotas, mas surgem como aparições repentinas, rompendo no cotidiano de suas vidas. Então, este protagonista se faz espectador de uma passagem do micro ao macro – p.e: o suicídio de um jovem não se refere somente a ele, mas a toda uma geração (Pulse);  um homem que afoga uma mulher não é o único que realiza este gesto grotesco (Retribution); não é apenas na cidade, mas também na floresta, que há um dissenso entre as partes (Charisma); o desemprego, a crise de autoridade, a marginalização e a dissolução da família é um efeito catalisado em toda uma cidade (Tokyo Sonata).

Ao longo do filme, ao tornar-se consciente desta condição que impera, o protagonista deve decidir por entregar-se ao fluxo das coisas ou romper, arbitrariamente, singularmente, com ele. Para ficar nas obras citadas acima, é, por exemplo, a atitude que toma o negociador de reféns ao voltar à sua profissão; o eterno seguir em frente e sobreviver que proclama o casal dentro do navio enquanto fogem das sombras; o investigador que vai à cela da mulher de vestido vermelho para encarar o seu passado (e que faz admitida remissão à segunda guerra); os familiares que, após uma noite insana, retornam à mesma mesa de jantar.

O tal “problema” não é eliminado. Continua presente e atuante, tal qual a tempestade de Kairo – os fantasmas continuam a existir. Mas os homens aprenderam a lidar com ele, reafirmando a sua dignidade. É uma escolha correlativa à que o diretor faz ao arbitrariamente decidir não filmar mais as nuvens negras em volta do navio. Reafirmam-se os valores de uma sociedade tradicional – a família, o acordo social, a justiça, a honra, a amizade – mesmo em meio às mutações de um Japão moderno que só engendrou traumas, fantasmas, desumanidade e esquizofrenia.

Em um depoimento de Kurosawa no making of de Tokyo Sonata, o diretor diz que “mesmo quando você perde a sua autoridade, não há necessidade de perder a sua dignidade. É isto que as pessoas não entendem, e onde a vida se torna complexa. Sei que é difícil alguém manter os seus valores o tempo todo e viver com orgulho. E você não pode forçar outras pessoas a aceitarem os seus valores. Mas você deve sempre agir de acordo com os seus valores”. Os protagonistas conscientizam-se e tomam esta escolha moralizante (normalmente evidenciada por uma voz em off) para poder seguir em frente, rumo ao futuro. E assim, concluem a grande fábula moral, sem enxergarem luz nenhuma ao fim do túnel, mas decididos a seguir até onde for possível com aquilo que acreditam.

Share Button