A Bela que Dorme (Bella Addormentata), de Marco Bellocchio (Itália/França, 2012)

julho 16, 2013 em Do Arquivo, Em Cartaz, Pedro Henrique Ferreira

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* Originalmente publicado em Novembro de 2012.

Imagens do dissenso
por Pedro Henrique Ferreira

Rodar um diálogo entre duas pessoas que se falam por celular poderia ser trivial e protocolar, não fosse o tom de manifesto estético que Marco Bellocchio consegue imprimir em algumas das tantas cenas desse tipo que povoam A Bela que Dorme. É notável que, em praticamente todas elas, o autor filma os dois lados da conversa, ao invés de suprimir um deles. Salta de um ambiente a outro, perigando uma descontinuidade espacial.

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O vai-e-vem dos espaços, somado ao vai-e-vem das tramas, evidencia o quanto uma harmonia das formas plásticas não interessa tanto. Também a precisão na regra do eixo é supérflua. O que importa é que cada imagem mostre com clareza e exatidão aquilo que ela precisa mostrar, ainda que isto signifique perder um pouco as orientações visuais que dariam coesão a um espaço geográfico por onde os personagens se movem. O que as imagens precisam mostrar é o ponto-de-vista de quem vê. Um olhar repleto de conotações morais. Isto porque uma mesma conversa de celular acontece de forma diferente em cada um dos lados da linha. Flutuando entre uma quantidade enorme de perspectivas sobre um mesmo acontecimento, A Bela que Dorme não teme uma incoerência no embaralhar das tramas. O que importa é mostrar como cada um daqueles personagens entende a polêmica.

O mais recente longa-metragem de Bellocchio é um espelho do dissenso político criado a partir de um fato que figurou nas mídias italianas dos últimos anos, que abalou tanto a esquerda radical quanto a influente igreja da república parlamentar: Eluana Englaro, uma mulher que ficou por 17 anos em estado vegetativo, tornou-se alvo das discussões acerca da legalização da eutanásia. Confluindo quatro tramas distintas que, à sua maneira, dão o teor da polêmica, Bellochio segue uma linha semelhante à de Além da Vida, de Clint Eastwood. E mete a mão no ninho das vespas de modo tão conciso e elegante como somente o diretor italiano sabe fazer, fugindo do dramalhão ou da frieza, descortinando um mosaico de contradições onde o que vale são as opiniões diferentes, conflitantes.

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Em outros trabalhos, como I pugni in tasca (1965) ou La Condanna (1991), já se fazia notável o quanto o cinema de Bellocchio é dado a temáticas espinhosas, isto é, a criar, em torno do “crime”, noções mais aguçadas, respeitando as nuances de cada visão sobre o fato e levando-as a um grau de radicalidade onde, por nenhuma daquelas figuras, concessão alguma pode ser feita. Cada um destes personagens demarca o seu território a partir de sua posição ideológica, a partir da afirmação inquebrantável de suas crenças e desejos. A democracia de Bellocchio é feita do dissenso, da impossibilidade de se conjugar vontades, porque cada uma delas reverbera sobre outra. São fluxos de vontade coagindo ações. Não existe o tão sagrado limite no qual “a liberdade de um termina onde começa a de outro”. A liberdade mesma parece um critério ridículo. O que é político se torna humano. O que é humano se torna político.

Sobre o estatuto da imagem audiovisual na Itália dos anos 1950, Tag Gallagher escreveu que, para os artistas daquela época e daquele local, a “realidade não existia como uma âncora externa para as idéias. Apenas pontos-de-vista e interpretações existem. A carroça se torna o cavalo”. A assertiva de Gallagher tem a intenção de contrapor o ímpeto realista que surgia na França com um “italianismo”, isto é, com uma tendência a entender a composição da imagem não como a abertura de uma janela para a realidade, mas como uma tomada de partido, uma retórica, uma expressão ideológica. “Na Itália”, diz o autor, “era óbvio que as idéias é que determinavam a realidade. Retórica e força de vontade podem transformar a realidade, diziam os fascistas e Gramsci também. Como o mundo existe somente em nossa imaginação, podemos fazer dele o que quisermos”. A Bela que Dorme é um herdeiro desta função ideológica da imagem que Gallagher sintetiza com a máxima: “Coisas não têm ‘mistérios’, mas ideias são suspeitas e a ‘verdade’ é problemática”. A imagem é ao mesmo tempo ferramenta de retórica e expressão de uma posição diante dos fatos do mundo. Persuasão e demarcação de território.

Um universo desta natureza é favorável a uma forma singular de fascismo, que parece ser o tópico mais amplo sobre o qual Bellocchio versa: o fascismo da imagem. O domínio dos meios de comunicação (e não à toa, o nome de Berlusconi é erguido) e a proliferação de um único lugar da verdade é prejudicial, cria a ditadura mesmo onde habita o parlamentarismo. O exercício político do artista é levar ao extremo a possibilidade de coexistência de posições absolutamente contrárias, levá-las a cabo trazendo à tona todas as contradições do debate, mostrando ao espectador todos os lados possíveis. E sobretudo, respeitando os traços morais de cada um destes lados, por mais radicais que eles pareçam. O dissenso é a única forma propriamente democrática capaz de fugir a uma ditadura da maioria, do correto, do acordo social.

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Fica claro que A Bela que Dorme não é dos trabalhos mais fortes de Bellocchio no que tange critérios como beleza, graça ou sublime. Com pressa demais em colocar a amplitude dos argumentos, fica um potencial dramático pouco explorado em muitas situações. Mas é por outro lado que ele nos ganha. Um lado que talvez seja abrupto demais para querelas bobocas (de um lado, a sensibilidade, do outro a mise en scène) com as quais a crítica se habituou a enxergar o cinema. A bela adormecida (Maya Sansa) deitada ao banco da igreja na primeira imagem do filme não está em coma… está beirando o suicídio, no estado vegetativo que vive, se move, e sobre o qual paira o silêncio. Um médico (Pier Giorgio Bellocchio) insiste em salvá-la. Ela se justifica, defende sua liberdade em encerrar a vida. Ele retruca exaltando seu dever de afirmar sua posição ideológica. O dissenso político é colocado com uma precisão irretocável. Bellochio não nos ganha pela beleza, pela sensibilidade, ou pela força que extrai da mise en scène. Nos ganha por algo muito mais simples e comovente: por meter a mão em um ninho de vespas e, com muita classe, conseguir deixar às claras porque é que cada vespa é como é. No fim das contas, simplesmente pelo mais antigo gesto de “mostrar”.

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