Zanj Revolution (Thwara Zanj), de Tariq Teguia (Argélia/França/Líbano/Qatar, 2013)

junho 9, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

zanjrevolution01

Desaparecimento à distância
por Fábio Andrade

No primeiro plano de Zanj Revolution, Ibn Batutta (Fethi Ghares) surge feito uma miragem, caminhando em um deserto, até desaparecer em pleno ar, para, em seguida, reaparecer novamente. A imagem de Batutta surgindo e sumindo no deserto, e reaparecendo em lugares imprevistos por qualquer lógica de espaço ou tempo, é de uma plasticidade icônica que remete igualmente a Godard, à publicidade, e ao repertório iconográfico de propaganda revolucionária, em um dilema que oscilará mal resolvido (pois insolúvel) até o final do filme – tão perto do cinema de invenção visual quanto da superficialidade propagandística. Pouco depois, o filme apresenta Batutta como um jornalista em uma investigação sobre a rebelião Zanj, insurreição de escravos negros levados da África para o Iraque e que desapareceram da região pois preferiram o sacrifício à dominação.

Zanj Revolution, o filme, ambiciona ser mais do que a simples ilustração dessa investigação histórica. A paridade entre o título do filme e o nome histórico da rebelião já deixa claro que, mais do que reconstituir a História, Tariq Teguia está interessado em agir cinematograficamente por meio dela. Em dado momento, Batutta é confrontado com uma pergunta que funciona como mapa retórico ao próprio filme: “Você está tentando dar corpo aos Zanj para que sua voz seja ouvida?”. Há, portanto, o reconhecimento de uma mesma situação – todo palestino é necessariamente um exilado, e Zanj Revolution é um filme sobre sensibilidades em exílio – que se manifesta aqui em um encontro com a História que proporciona uma soma de forças entre iguais, embora em tempos distantes, irreconciliáveis.

Essa postura fica clara na justaposição dessa primeira imagem ao destino dos Zanj: mais do que simplesmente contar uma História, o interesse do diretor está na reflexão imagética proporcionada por esse evento histórico, promovendo uma equivalência entre a pesquisa factual e o desbravamento imagético. Ao se concentrar sobre uma História que existe, mas não se mostra – os Zanj que sobreviveram terminaram se tornando senhores de escravos eles próprios, se deixando absorver pela lógica que regia a sociedade iraquiana à época – Teguia implica a política e a representação imagética (questão central ao cinema) em um mesmo feixe sensível, reforçando o nó que Walter Benjamin se esforçava por desatar, em seu clássico texto sobre o Surrealismo: em Zanj Revolution a política se faz a questão da arte, como a arte se faz questão política. Pela localização desse feliz dispositivo de uma insurreição do não-visto, o cinema pode deixar de ser ilustração política, e se tornar uma ferramenta que pensa no mesmo registro dela – como em Vertov, Godard ou, antes de o cinema ser cinema (mas quando o olhar já era olhar), em Marx.

Partindo dessa premissa que pensa sua própria natureza, sem se furtar de narrar uma história (há uma mal ajambrada trama de conspiração lutando contra a liberdade visual buscada pelo filme), Zanj Revolution coleciona signos auto-reflexivos (a abundância de espelhos; o uso do corte como ferramenta de desorientação; a abolição bastante inteligente do ponto de fuga, chapando a imagem de maneira a não permitir escape aos olhos – e aos personagens) na mesma medida em que se esforça para avançar em uma narrativa, tão epidérmica quanto distante. Em sua primeira hora, o filme se mostra excessivamente preocupado com essa construção narrativa, e a estratégia de esvaziamento da banda sonora e de planificação da dramaturgia – em uso de arquétipos que por vezes remete a A Idade da Terra (1980), embora sem a mesma força – faz com que a primeira metade do filme sofra de dificuldades rítmicas não muito distantes da mobilidade amputada de Branco Sai, Preto Fica (2014), de Adirley Queirós. Se, por um lado, essa dificuldade é compreensível conceitualmente, ou mesmo necessária, ela não deixa de fazer vítimas pelo caminho. Diante dessa espécie de épico da perda, é preciso sobreviver à aridez da busca, enquanto o filme toma o tempo que precisa para se encontrar.

A partir de toda aquela deriva imagética e narrativa, porém, Tariq Teguia aos poucos parece juntar munição para o coup final, quando imagens de forte pregnância, significado e força plástica começam a pulular quase espontaneamente na superfície do filme, em um trabalho ousado de cor e contraste que por vezes chega a resultados bastante impressionantes, lembrando o céu de neon de Miami Vice (2006), de Michael Mann. Aos poucos, a latência da espera é convertida em urgência de ação, e Teguia coleta pequenos achados tão potentes como reflexão histórica/imagética quanto como confrontação visual. Se o cinema brasileiro vive, hoje, um embate com as representações possíveis de uma História que se apresenta cada vez mais complexa, lacunar e mesmo contraditória, as veias abertas (nem sempre pulsantes) de Zanj Revolution guardam, a nós, um punhado de possíveis revelações.

Share Button