Walker, de Tsai Ming-liang (Hong Kong, 2012)

dezembro 2, 2013 em Em Vista, Fábio Andrade

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O sagrado como política
por Fábio Andrade

Um homem em uma escada, com a cabeça raspada e vestes vermelhas de monge. Este é o plano de abertura de Walker, curta-metragem de 25 minutos dirigido por Tsai Ming-liang. Temos impressão de que o homem desce a escada, mas a imagem é por demais parcial para dar vista completa da ação. A lentidão dos passos faz pensar que o plano poderia estar com a velocidade alterada, não fosse uma aberta para a rua, ao fundo, deixando claro que o mundo segue em seu ritmo normal. A vista foge e vai buscar refúgio no movimento do lado de fora: um ônibus passa em frente à porta; um rapaz de casaco roxo atravessa a rua; uma mulher empurra um carrinho de mão até a entrada do prédio. O plano dura o tempo suficiente para nos perdermos no fundo do quadro, a ponto de não sabermos mais se o monge realmente desce as escadas ou permanece todo o tempo no mesmo degrau.

Walker é a primeira obra de um projeto maior de Tsai Ming-liang, que inclui dois outros filmes (No Form e Diamond Sutra, que ainda não tive chance de ver) e performances públicas com Lee Kang-sheng, protagonista de todos os seus filmes. A premissa é simples e esgotável em uma frase: trajando a mesma indumentária escarlate, o ator caminha em passos lentíssimos por uma série de locações diferentes. A cada plano, muda o quadro, troca o entorno, mas permanece a passada ultra-lenta e obstinada do ator. Feito para a Youku, um canal de televisão de Hong Kong, Walker teve mais de 4 milhões de acessos no site da emissora e, segundo o próprio Tsai, um número ainda maior de reclamações. “Eles diziam que Lee Kang-sheng andava devagar demais, que alguém deveria empurrá-lo ou bater em sua cabeça para fazê-lo reagir”.

Ao público minimamente habituado ao cinema do diretor malaio, porém, o trabalho com a duração do plano e com a exacerbação da passagem do tempo não é novidade. Tsai Ming-liang sempre foi dono de um olho extremamente privilegiado, autor de alguns dos enquadramentos mais expressivos dos últimos vinte ou trinta anos de cinema, mantidos fixos ao longo do tempo que fosse necessário para que uma ação pudesse se expressar com absoluta inteireza. Depois de toda uma carreira de filmes que revitalizavam a capacidade de narrar pela armação em tableux e um forte viés simbolista (do qual O Sabor da Melancia, de 2005, permanece como expressão cabal), Walker é mais um passo em um processo posterior de depuração que já se mostrava pleno no belíssimo Visage (2009), filme que abandona quase por completo o desejo narrativo, substituído por planos que carregam todo o sentido necessário em sua própria duração, transformando o encadeamento das sequências mais em um jogo de encaixe do que em um fio teleológico. Todo plano do filme já carrega “todo o filme”; o que se ganha com a sucessão de planos não é uma experiência narrativa, mas um acúmulo de intensidade.

Aqui, Tsai Ming-liang radicaliza esse movimento, pois, se Visage ainda contava com a variedade das esquetes (era um filme sobre o próprio cinema, afinal), Walker se faz todo (com raríssimas exceções, como o belíssimo plano final) da repetição de um mesmo procedimento. Lee Kang-sheng funciona como uma espécie de colagem, um carimbo em (parco) movimento que o diretor reposiciona nas diferentes locações pela qual o filme passa. Em todos os planos, repete-se a mesma lentidão dos passos, o mesmo efeito de desconexão com o entorno – embora ele seja absolutamente essencial ao filme, inclusive por ser a única coisa que realmente muda – e a mesma reação do espectador à superfície da imagem. O que se transforma é que, justamente no transcorrer do tempo dentro do plano, somos dragados para um outro ritmo mental na relação com aquelas imagens, como se a repetição do procedimento permitisse um mergulho mais profundo e das profundezas surgissem outros filmes que Walker também.

walker2Um filme religioso

Tsai Ming-liang já declarou que todos os seus filmes são, em alguma medida, meditações budistas e Walker trabalha isso com uma clareza ainda maior que seus outros filmes. A começar pelo primeiro plano: Lee Kang-sheng “desce” ao mundo de um lugar mais elevado que permanecerá desconhecido, inacessível ao filme. Desde esse primeiro momento, a posição do diretor fica clara em relação ao comentário existencial que o ritmo da caminhada faz à cena: desacelerar é da esfera do sagrado.

Esse movimento, porém, se intensifica nos planos seguintes, em que o monge budista ganha as ruas da cidade. Toda a operação do filme é de acentuação de contrastes, não só do ritmo da passada de Lee, mas também pela constante “pureza” da vestimenta sagrada em locações saturadas de toda sorte de estímulo e informação. Cabisbaixo, o monge encarnado por Lee Kang-sheng se relaciona com a cidade pela negação do olhar. Seu maior gesto de interação está justamente em reafirmar a necessidade de olhar para dentro de si.

O cinema, porém, é coisa terrena – coisa que olha, afinal. Tsai se coloca na mesma defasagem que acomete o espectador: nenhum plano terá a decência de esperar que o monge atravesse o quadro de ponta a ponta – o que faz de Walker um filme extremamente cruel com a percepção do espectador (o corte sempre vem antes do desejado).

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Um filme-jogo

Uma vez anunciada a clareza do dispositivo, filme e espectador se engajam no desafio constante de localizar o protagonista no quadro. Logo no segundo plano do filme, esse jogo tem o efeito de uma gag de comédia (gênero com o qual Tsai Ming-liang sempre se deu muito bem): vemos primeiro o reflexo do monge na vidraça de uma loja e depois há um longo intervalo até que seus passos o tragam de fato ao campo da imagem.

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Walker é inteiro um jogo de surpresas e adivinhações, em que, uma vez decodificado seu sistema (e não precisamos de mais do que dois ou três planos para perceber que o filme não irá se tornar algo diferente do que ele já é), alimentamos a expectativa pelo momento do corte e o grau de variação de um novo plano em relação em anterior. Diversas vezes, um ônibus ou carro passa em frente à câmera, tomando toda a tela, e surge a imediata curiosidade em ver se o monge continuará lá após a passagem (e ele sempre continua).

Desse conjunto de gags de encenação e de montagem, o filme se ergue como um jogo constante de diferentes escalas, perspectivas, dimensões. Pela ausência de qualquer raccord, a cada novo quadro o espectador precisa de um tempo para reorganizar a percepção e reencontrar – quase que com a ponta do dedo indicador – o fio narrativo (o monge) que faz a passagem de um plano para o outro. Em dado momento, Tsai Ming-liang corta de um plano frontal para um plongée tão aberto que praticamente transforma o quadro em uma página de Onde Está Wally?

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Um musical

Alguns dos filmes mais conhecidos de Tsai Ming-liang são marcados por uma relação intensa com o musical. Em O Buraco (1998) e o já citado O Sabor da Melancia, o imaginário das personagens encontra possibilidades de efetivação em pequenos números de dança, marcados pela interação que se coloca como maior obstáculo aos personagens do filme no resto da trama.

Em diversos sentidos, Walker é a mais radical experiência do diretor neste gênero do cinema. De fato, estamos mais próximos da dança contemporânea do que da estilização do burlesco dos filmes anteriores. Ainda assim, mesmo sem música ou interação marcada – ou melhor: principalmente por não haver música ou interação marcada – trata-se de um filme em que o ritmo e a precisão da coreografia têm função absolutamente vital.

Quando, ao final, ouvimos uma canção de Sam Hui (grande astro da música e do cinema populares de Hong Kong) como trilha-sonora a uma das mais belas dentadas em um sanduíche já filmadas, fica claro que ela vem como desdobramento em continuidade com tudo que veio antes, não como ruptura. O musical deixa de ser o salto ou a sublimação para um outro plano (com duplo sentido) e se revela totalmente integrado ao próprio ritmo da vida (no filme).

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Um documentário de performance

Um dos jogos essenciais do filme está no fato de as cenas de rua serem rodadas de maneira praticamente documental. Lee Kang-sheng é inserido nas cenas como um corpo estranho à rotina das ruas, o que estabelece todo um teatro espontâneo de interações, desatenções e reações à sua presença – como acontecia com os passantes da Cinelândia em A Idade da Terra (1981), de Glauber Rocha, ou a relação entre a personagem de Peréio e os “personagens espontâneos” de Iracema – Uma Transa Amazônica (1975), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna.

Walker é também um documentário desta instalação performática desencoleirada no meio de um dia normal da cidade, e um inventário das diversas maneiras de se portar diante dela (um experimento etnográfico, portanto). Essa interação entre a realidade mais selvagem e a artificialidade muito claramente demarcada se torna ainda mais potente pela opção quase constante pelo som direto. Surge, com isso, uma coreografia espontânea, mas igualmente marcada, ao redor da figura de Lee Kang-sheng, como se uma reportagem de TV guardasse, em si, as potências de um Na Cidade de Sylvia (2007), de José Luis Guerín.

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Um filme político

Por mais que Walker seja um filme sobre o sagrado, essa descida (seja lá de onde) às ruas é também a busca de interação com o que há de mais prosaico: um caminhão de sorvetes, uma lanchonete de fast food, um ponto de bonde tomado por anúncios de publicidade, um depósito de papel para ser reciclado, etc. O filme é justamente o filamento que permite a interação entre o sagrado e mundano, os vivos e os mortos, o fixo e o movente, os que sabem (que é um filme) e os que ignoram.

Mas há, nesta dimensão de documentário-performance, um gesto de intervenção mesma na cidade, no cotidiano acelerado que Walker tanto deseja frear (mas não parar, como deixa claro o próprio título) sem precisar recorrer, a isso, à contemplação seletiva e consciente de um museu. Em um plano marcante, pouco antes da metade do filme, Lee Kang-sheng caminha de frente para a câmera, em uma rua extremamente movimentada, coberta por letreiros e luzes que piscam por todos os lados. Aos poucos, alguns grupos de transeuntes se acumulam à margem da rua fechada e páram para observar a performance. Naquele breve ínterim, a política do sagrado se efetiva diretamente no mundo e Tsai Ming-liang reafirma o caráter político da própria fruição artística: enquanto assistem aos lentos passos de Lee Kang-sheng, todos aqueles estáticos transeuntes aprendem, sem se dar conta, a caminhar ainda mais lentamente que o monge.

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