Vício Inerente (Inherent Vice), de Paul Thomas Anderson (EUA, 2014)

agosto 12, 2015 em Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

vice1

O jardim de caminhos que se bifurcam
por Luiz Soares Júnior

“A paranoid man is a man who knows a little about what’s going on”.

William Burroughs, Friend magazine, 1970

“O que há de mais vasto, mais abundante, mais íntimo que o patológico?”

Henri Michaux, Poteaux d’angle

Se para o Borges de Ficções (1941-1944) a metafísica era um gênero da literatura fantástica, para ”Doc” Sportello (Joaquin Phoenix), o detetive xamânico de Vício Inerente, a paranóia é uma modalidade particularmente exuberante do pensamento mágico: “Todo contato deixa vestígios”, confessa Doc com ar inspirado para o detetive Bigfoot, o seu duplo institucional. E estes vestígios se perseguem, se irradiam, se assemelham até finalmente dispor-se em constelação: o filme é o iniciático inventário destas trajetórias implicadas em termodinâmica intensidade (“A entropia não pode diminuir em um sistema fechado”, Asimov).

Em Vício Inerente, personagens e situações em aparência opostos ou irreconciliáveis acabam forçosamente por esbarrar, trocar fluxos, participar da mesma comunhão lisérgica. Paradigmas cognitivos e perceptivos do representatio perderam sua gravidade reguladora: Mesmo e Outro, Eros e Nomos, narração e digressão associativa abdicam de sua exclusividade litigiosa, e se confundem em um mesmo imbroglio de haxixe. A paranóia é esta vasta abóbada ressoante de correspondências, onde a identidade infalivelmente se projeta num Duplo, no qual a ação só existe à sombra de sua reação (em cadeia), e tudo o que viceja e age sob o sol encontra-se irremediavelmente implicado em uma causalidade ubíqua e imemorial. O monismo é não apenas um paradigma filosófico ou uma aspiração mística, mas uma experiência barrocamente encarnada; na proliferação rocambolesca de personas que povoam o itinerário de Doc, a reincidência do mesmo fantasma, a soberania do mesmo complô: Vício Inerente começa e termina no entr’acte de um encontro com Shasta (Katherine Waterston), a namorada desaparecida do detetive; é deste entr’acte fantasmagórico, desta impossível conexão, que surge a linhagem de duplos, a sequência de anamneses: toda primeira vez nada é senão o lugar de uma reminiscência, de um reconhecimento; o coup de dés segundo, que relança o primeiro, e relançará: “O seu rosto me lembra o de alguém; você já esteve aqui?”, interroga-se a secretária da clínica.

vice2

Mas este é o princípio do filme: o “primeiro encontro” é o eco ou prolongamento de uma Vez anterior (esta sim primeira), mas que permanece oculta/oclusa sob as bordas do fora de campo, como se a cada cena fôssemos cortejados pelo aceno de um refoulé: um detalhe, um personagem, uma atmosfera que não foram registrados no seu devido tempo pela consciência entorpecida de Doc, mas que permanecessem ativos, integrados à trama do filme, assombrando-o com seu transcurso de reverberações e reflexos (“A representação recalcada no inconsciente permanece capaz de ação; ela, portanto, necessariamente conservou o seu investimento”. Freud, O Recalque). Essa onipresença do recalcado – do detalhe que faltou, do rosto de que me recordo, vaga mas precisamente – mobiliza no filme as economias da alucinação e do onírico: a sensação de uma “realidade paralela” é o efeito de uma infiltração no real de episódios que ficaram “estocados”, e que retornam à cena sob o invólucro de uma rede causal fantasiosa, inebriada pela droga e estruturada pela psicose: por exemplo, a tríade associativa “Barco chamado Canino Dourado; consultório de dentista; a droga heroína, que destrói o cálcio dos dentes”. O sintagma “dente” se torna o eixo de uma elaboração analógica, rica em identificações e contigüidades (o barco traficante, o consultório do dentista traficante, finalmente a própria droga). Basta seguir a trilha indicada por este continuum “implicado”, e terás o passe de acesso ao modus operandi do sistema.  

Se todos aqui se conhecem (se reconhecem), se tudo se bifurca em tudo, é porque a lógica binária opositiva, através da qual costumamos apreender os contos e os caracteres, foi substituída por uma semântica monista, sob a égide da qual o ser deve ser subsumido ao império do Mesmo: o que Doc vê, tatuado no ombro do gigante ariano, é uma suástica nazista. Mas também deve ser, segundo a explicação do seu interlocutor, um símbolo pacifista hindu. A suástica e o símbolo hindu não se excluem; eles agora habitam um sistema perceptivo no qual tudo é levado a se identificar, e os atalhos invariavelmente reconduzem ao mesmo ocluso centro: onipresença da fusão, osmótica liga das cenas. Dois paradigmas imaginários se aliam aqui para dar a impressão de um universo onde os entes coadunam-se sob a mesma quadratura do círculo, retomam as mesmas pistas e são aliciados por comuns obsessões: Uma premissa “delirante paranóica” de filme noir e o ideal hippie setentista de uma comunidade “reconciliada”, na qual a predatória divisão de trabalho do sistema capitalista é suprassumida no festim cooperativo.

A droga, como ontem a clarividente introversão mística e a demiurgia do poeta, conhece as coisas sob o prisma da analogia: os seres se mostram potencialmente porosos ao vínculo e à conexão; a suástica e o símbolo hindu, o médico e o traficante, Doc e Bigfoot deverão, em algum momento, revelar-se como lados distintos de uma mesma moeda de troca (entre o atual e o possível, o Mesmo e o Outro, o passado e o presente): a sequência de câmera lenta em que Bigfoot literalmente tripudia sobre o corpo de Doc e sua cena final nos sugerem que o delírio contaminou de tal maneira as coordenadas do ser que tudo pode tornar-se possível e desejável; a hipótese reductio ad absurdum, a pantomima delirante agora habita o domínio institucional, implicando o policial na ciranda fantástica: a desrealização como norma é o mot d’ordre deste mundo condicionado pela bad trip em todas as suas manifestações.

vice3

Lacan escrevia que o “paranóico é o centro do mundo; ele leva tudo para si” (il ramène tout a soi). Esta fórmula não poderia ser a epígrafe de Vício Inerente? Mas Doc é antes de tudo um pronome: o seu Eu consiste na projeção fantasmática da narrativa de Sortilège (Joanna Newsom). Em primeiro plano, Shasta se destaca, como as Anie 1 e 2 da odisséia esquizofrênica de Ferrara (The Blackout, 1997), como uma diáfana película erótica cuja permeabilidade a contextos vários acabam por reconduzir Doc às mesmas situações de base, aos mesmos consórcios arquetípicos (o barco Canino Dourado, paradigma semiótico das associações que ancoram o filme; o duplo Bigfoot; o manicômio). Ou antes: a identificar, sob a trama variegada dos percursos, o avatar de um único, irredutível caminho; a escavar, sob o heteróclito e o heterogêneo, a identidade sobreposta, contígua e eqüidistante de uma mesma obsessão: “(…) Il raméne tout a soi”. Na primeira cena, Shasta se distancia de Doc num carro que se perde na noite opaca da profundidade de campo; na cena final, ambos estão dentro do carro: a hipótese razoável a se fazer diante do filme é que todas as noites relançam a mesma Noite, todos os personagens refletem o mesmo Doc, e o trânsito descrito por este “jardim de caminhos que se bifurcam” é um simulacro: na verdade, não abandonamos o eixo fixo e recalcitrante do começo, assim como não nos desvencilhamos do lusco-fusco do Id; as sequências apenas prolongam a exaltação fantasista deste pico inicial, intensificando a dissociação esquizóide até os limites da deformação figurativa: a câmera lenta e acelerada em algumas sequências. Vício Inerente se distancia do centro elegíaco de uma crônica da separação para retomar este mesmo núcleo, só que agora radicalmente diferido por um itinerário perverso onde, ao contrário do paradigma experiencial do Bildungsroman, não se chega jamais a um conhecimento do “si-mesmo” (conhecimento tout court); antes pelo contrário: as situações de base sofrem uma complicação, os percursos proliferam e se dispersam, as identidades se refratam; todos participam de um mesmo complô, que se ramifica em séries descontínuas; este mundo é uma trama convulsa de complots que se bifurcam em outros complots, e a influência destes mundos compossíveis sobre a consciência de Doc é ativada por certas “chaves de contato”: o barco Canino Dourado, as aparições de Shasta, o paradeiro do milionário Michael Wolfmann.

Este desperdício semiótico, esta proliferação e dispersão luxuosas das trajetórias e dos personagens, ativa no filme um mecanismo onívoro de fabulação: como tudo necessariamente se ramifica e projeta em uma série, como nada é precisamente inocente – pois sempre nos parece ser o significante, a máscara tangível de uma supra ou oculta realidade, com a qual podemos esbarrar na próxima esquina , afirma-se incondicionalmente a soberania do ficcional: un coup de dés jamais n’abolira le hasard. O fluxo é infinito, cíclico, pois a figura que preside à sua emissão não é mais a Ágora circular, e sim o labirinto de Minotauro: uma outra Grécia.

vice4

Retomando o “egocentrismo” paranóico a que aludia Lacan, talvez consigamos vislumbrar uma conexão entre ambos os princípios. O paranóico, centro (mesmo que ocluso) do mundo, é aquele que vai sempre dar um jeito de desviar o curso das coisas e dos eventos e encaminhá-los para si: se o avião terrorista explodiu em Teerã, na verdade ele era dirigido contra a minha casa. Como justificar então o desvio de rota? Inventando uma história; fabulando. (Rivette lhes lembra alguma coisa?). Recriando o mundo à minha imagem e semelhança. Os percursos labirínticos de Vício Inerente consistem numa projeção deste Ego paranóico, que precisa a todo custo reconstituir o mundo “aí” segundo os parâmetros operatórios de sua figura e devires alucinados. Anderson, porém, nos dá uma linha reta, um esqueleto sólido, estriado embora de exuberantes frissons. Aprendeu a “limar” do Vício a auto-complacência estetizante – o exercício masturbatório da “firula” – que tão prematuramente condenava seus filmes ao envelhecimento; a um certo peso retórico-demonstrativo também. Vicio Inerente, embora barroco em seus revezes narrativos, é um filme de fatura clássica. Cambaleia e voa rasante, mas cai “de pé”: straight line. Aqui, os fantasmas habitam o espaço-tempo real de homens e paisagens reais.

Share Button