Under the Shadow, de Babak Anvari (Reino Unido/Jordania/Qatar, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

* Cobertura do 45o New Directors/New Films 

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O desejo pelo Ocidente
por Fabio Andrade

A despeito de suas variadas credenciais internacionais, o longa de estréia de Babak Anvari, cineasta iraniano radicado na Inglaterra, parte de contexto de tempo e espaço específicos o suficiente para merecerem declaração nas cartelas de abertura: a guerra Irã-Iraque que, tendo durado de 1980 1988, se confirmou a mais longa do século XX. O filme, porém, não começa no campo de batalha, mas na briga mais desigual que pode ser travada numa repartição pública de um governo não-democrático, onde Shideh (Narges Rashidi) pede nova chance para completar sua formação em medicina. Naquela breve conversa frente a uma ampla janela, o passado de Shideh como alguém levemente engajada com movimentos de esquerda surge como obstáculo intransponível ao código moral do novo regime, a despeito de sua persistência. “Você nunca vai voltar à Universidade”, diz o homem, e ao longe uma explosão cobre a vista pacífica de Terã com uma nuvem negra. O futuro de Shideh foi subitamente interditado por um presente que não consegue superar o passado, e é inevitável se perguntar como ela se sente a respeito disso.

É um prólogo muito claramente declarado na simplicidade de sua mise en scène, que define o tom para o resto do filme: a guerra de fato, a cidade de fato, o testemunho de fato da vida pública no Irã de 1980 permanecerão como pano de fundo, vistos à distância através do vidro transparente das experiências subjetivas. O foco de interesse é Shideh, jovem mãe cujas aspirações foram bruscamente interrompidas pela súbita mudança na realidade política, e que agora se vê presa em um apartamento com sua filha, Dorsa (Avin Manshadi), enquanto seu marido está fora, implorando que deixa a cidade sob fogo cruzado e vá para um lugar seguro. Encurralada por toda sorte de ameaça fora de campo (que pode ir de um fantasma que parece inspirado em uma hijab a um míssil que não explodiu), é natural que o drama pessoal de Shideh seja contado feito história de horror.

Há, porém, diferentes tipos de horror, tanto no filme quanto na vida. Num primeiro momento, Under the Shadow adere a um subgênero do horror arthouse que se tornou figurinha fácil nos festivais em anos recentes, e que deixou sementes em diversos lugares pelo mundo – uma das mais férteis, justamente no Brasil, no trabalho de Juliana Rojas e Marco Dutra. Neste subgênero, as convenções do horror se infiltram lentamente na observação social brechtiana (frequentemente em tableux), como manifestações da pressão que o fora de quadro faz (principalmente pelo som) sobre um ambiente particular fechado a vácuo, frequentemente salpicado com elementos kitsch que primeiro funcionam como manifestações daquilo que Alain Badiou chama de “o desejo pelo Ocidente” (que aplica tanto ao Irã quanto ao Brasil – tecnicamente, um país ocidental) e em seguida catalisam o misticismo recalcado (ou, no caso de filmes ocidentais, a sexualidade, como na fraca decepção que é Jack & Diane, 2012, de Bradley Rust Gray) como sinal de autenticidade.

E cá estamos, num distante Irã de 1980, e ainda sim território tão familiar: um apartamento cercado por vizinhos misteriosos; uma garotinha que acredita reviver memórias de velhos contos místicos que foram prontamente subsumidos pelos desejos modernos de sua mãe; o velho engajamento com uma utopia de esquerda que volta a atormentar o sono; um VHS de ginástica com Jane Fonda. Para um relativo hit do circuito de festivais, como indica a passagem por Sundance, Under the Shadow é um filme já visto vezes demais. A especificidade de tempo e lugar parece ser o que compra ao filme seu lugar ao sol, mas, aplainada pela abordagem genérica do craft de gênero, termina sendo apenas outra manifestação de como o circuito de festivais, e os cineastas que a ele escolhem servir, frequentemente ecoam as palavras de Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant em Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista: “O imperialismo cultural repousa no poder de universalizar os particularismos associados a uma tradição histórica singular, tornando-os irreconhecíveis como tais”. No filme, o horror não é expressão específica de uma experiência mais geral do mundo; é a especificidade do mundo subjugada a uma idéia genérica de o que um filme de horror art house de olho nos festivais deveria fazer. Toda textura é dobrada pelo desejo voluntário de se aderir a certo protocolo de world cinema, do qual os bem delineados sustinhos e o uso de convenções de um cinema narrativo de raiz subjetiva como atalho para as investigações psicológicas de um Polanski são apenas dois dos muitos, muitos sintomas em ebulição.

Filtrada por camadas de convenções e pela dedicação imediata de demonstrar savoir faire do gênero, a mais longa guerra do século XX é subitamente transformada em lugar comum. O que é frustrante em Under the Shadow não é apenas seu desejo de ser um thriller psicológico comum – isso poderia ser um desperdício, levado em conta o material dormente em mãos, mas certamente não é um crime. O que é frustrante é que a pergunta suscitada pela primeira cena do filme jamais é sequer levada em conta: como Shideh se sente em relação a tudo isso? O filme flerta com psicologia de personagem por conveniência narrativa, mas essa subjetividade é tratada como outro item em uma lista que o filme precisa riscar em sua leitura míope de receita para o sucesso. No fim, Shideh não é muito diferente da agenda ocidental, do savoir faire, do misticismo recalcado ou da fita de Jane Fonda… ela é apenas outro posto pelo qual o filme passa, em vez de adentrar.

“Todo mundo estava envolvido com política naquela época”, ela diz, e embora a resposta soe como uma cessão necessária, ela não ressoa no filme como fonte de orgulho ou arrependimento, pois não ressoa como coisa alguma. Afinal, Under the Shadow parece movido e elogiado pela mesmíssima coisa pela qual sua protagonista é punida: fazer o que todo mundo parece estar fazendo no momento. O desejo pelo dissenso – seja via política ou arte – passou a ser visto como uma oportunidade de consenso, e o cinema mais uma vez se nega a ser tudo aquilo que pode de fato ser: um propulsor de novos mundos. Se o imperialismo cultural é exatamente o pressuposto que transforma o singular e pontual em genérico e generalizante, é um tanto irônico que a única resposta possível a esse dilema esteja em ignorar as distinções de quem recebe a paulada – seja o Irã, o Brasil ou a Turquia, para quem Badiou escreveu, após o levante de 2013, e que repito em voz alta, para poder ouvi-la no meu próprio timbre: “(…) o grande favor que você pode fazer a nós é provar que seu movimento está te levando para um lugar diferente do nosso”.

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