Tabu, de Miguel Gomes (Portugal/Alemanha/Brasil/França, 2012)

julho 19, 2013 em Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

tabu1

A hora da loba
por Luiz Soares Júnior

“A Fantasia é a força primordial da alma, encarregada de trazer tudo novamente a suas origens, ritualizando todos os eventos, transformando-os em mitos, fixando o tônus de cada história no preciso detalhe, em aparência tão irrelevante, de uma lenda; continuamente fabulando nossas vidas em configurações que não podemos nem compreender em nossas consciências nem manobrar com nossas vontades, mas a que podemos amar com amor fati

James Hillman, O mito da Análise

“And if he left off dreaming about you”…

“Através do espelho”, Lewis Carroll

Tabu reconta-nos um mito das origens, mas enviesado: na pessoa, lugar e tempo errados. Esta Terra assombrada pela ausência da Mulher, esta rapsódia fantasma que inaugura o filme não pertence ao Mundo onde parece se aconchegar. A Mulher defunta, o Crocodilo, o Caçador solitário são um conto para Pilar (Teresa Madruga), burguesa católica de meia-idade, que assiste a um filme: a intrusão de um mundo enfeitiçado pelo nitrato (como nitrato, esta droga – este Elisir d’amore)  para uma espectadora, provavelmente desencantada com o estado das coisas (é militante), possivelmente virgem. Mais adiante, seguimos Pilar até o mesmo cinema, onde assiste (é assistida?) por uma outra fábula – menos encantatória e primeva, agora rock and sweet. “Be My Baby”, cantada por The Ronettes, cançoneta lacrimada por uma pátina de nostalgia: aqui, se chora um tempo e um espaço que nos separam – que provavelmente nunca serão nossos: “I will make you happy baby, just wait and see / (…) Oh, since the day I saw you, I have been waiting for you / You know I will adore you ‘til Eternity”.

Mas o que parece dizer muito de Pilar (ela chora copiosamente durante a projeção, embora num pianinho jansenista saído “à socapa” de Minha Noite com Ela, de Rohmer) não lhe pertence. Nem a nós. Há um mito privado que se apropriou das Origens, entre oníricas e rapsódicas, evocadas no início do filme; mas também do stimmung melancólico, dos cadenciados rituais de prece e espera de Pilar, da sobranceria de rainha exilada de Santa (a empregada doméstica, interpretada por Isabel Cardoso), do pachorrento Sancho Pança que é o amigo de Pilar. Há um vampiro que se infiltrou no ar de Verão, entrincheirou-se inter-planos e transformou o lusco-fusco em refúgio da Culpa e do Ressentimento – há um fora de campo, expropriador e predatório, que se serve do campo como de seu último Dr.Knock – Knock, o velho escravo de Nosferatu…

tabu10

Tabu será apenas a história de Aurora (Laura Soveral e Ana Moreira, em fases diferentes da vida), latifundiária de terras, bichos e fantasmas; mas a grande possessão de Aurora – aquilo sem o qual esta operação de reapropriação indébita do Mundo pela experiência do amour fou burguês não seria possível – consiste no domínio incondicional do fora de campo: é de Aurora a possessão do fantasma, do único Logos de comando da narrativa. Aurora, se não sabem, está morrendo; a ela só restam a rememoração, o delírio, a repetição (o vício na jogatina), signos de alguém condenada a habitar apenas o pretérito perfeito – ser aquela de quem se viu ou disse tudo o que havia para dizer: “A Morte é o que funda o sentido de uma vida, assim como a montagem o significado de um filme” (Pasolini).

Se Aurora não larga do pé de Santa, é porque, numa crise hebefrênica, julga-se ainda senhorial na África juvenil; se pede a Pilar para cuidar dos crocodilos, é porque o réptil que recebera de presente permanecia presente; se, na ilhota de consciência que precede o Nihil, escreve um bilhete com o nome do antigo amante, é porque o pensa a poucos metros, tomando um café onde o deixou… Nada passou para quem logo passará. Esta primeira parte do filme sofre de um evidente deságio temporal, um décalage: o presente que habitam Santa e Pilar – o campo e contracampo no qual se defrontam uma sapiencial casmurrice e uma amargura temperada pela civilidade – é o limiar ou mero coadjuvante de uma “conjugação da vida” muito distante dos seres que aqui se confrontam em surdina; um modus vivendi curtido pela mortificação, seviciado pela nostalgia, velado ou prometido a um morto: a canção de The Ronettes que leva Pilar às lágrimas não era sua, mas da juvenil Aurora – era tocada pela banda de seu amante numa festa desenfreada à beira da piscina; os planos icônicos que se contrapõem na abertura (o caçador, a mulher defunta, o crocodilo) são a ilustração do discurso paratáxico da Aurora moribunda, que não pode mais articular a experiência do passado numa sintaxe regular; só lhe resta uma cadeia de sintagmas-objetos (o crocodilo, a fazenda), desconexos de um continuum, separados pela afasia… e há um pequeno travelling, que finalmente espreita e pousa sobre árvores e um pássaro canoro, quando Pilar, após a morte de Aurora, sugere a Ventura (Henrique Espírito Santo e Carloto Cotta, também em diferentes momentos de vida) tomarem um café… a África entra em cena. Mas que África, que Aurora? “Ela tinha uma fazenda africana na juventude”. Ah, sim… cappuccino?

tabu3

Se a vida de Aurora é a aventura cinematográfica, entre kitsch e slapstick, que Pilar merecia (e esperara meia hora para assistir), não é a minha. A mise en abîme simplista da primeira parte, através da qual Gomes nos leva a inferir ou sofrer (no sentido de ser passivo, objeto de) a fantasia romântico-colonialista que se segue só não me parece simplesmente abjeta por proceder por infiltração; há filmes, aos quais Tabu jamais ousaria se igualar, que seguem itinerário semelhante. A princípio… Muriel (Resnais) e Céline et Julie von en bateau (Rivette) infiltram, respectivamente, o fantasma da Argélia e as agruras de um Id fixado na fase oral em seus filmes. No Rivette, os flashs da casa assombrada da infância, mas também da novela de Henry James que, por sugestão de Eduardo de Gregorio, acabara por se anexar à “trupe do filme”, ampliando o espectro de seu fora de campo – do anedótico para o metalingüístico, da féerie “ontológica” sobre uma Paris de locação para um conto gótico sobre recalque vitoriano e necrofilia; em Resnais, os faux-raccord, centrados em planos de detalhe, materializam a psicose do enteado da protagonista, que sabemos agora ter sido acusado de estupro na guerra.

Entendo por “infiltração” um uso modulado, contrapuntístico da metáfora ou associação, operação de deslocamento “zéfiro” de que Baudelaire deu o modelo nas Correspondências; um pequeno detalhe (os flashs da casa em Céline, os planos “piscar de olhos” em Muriel) que perverta a economia da narrativa ou difira a suntuosidade da mise en scène, sugerindo ou entreabrindo o seu refoulé, rasurando-a com langor e opróbrio... em Tabu, a seqüência em que Pilar se deixa acariciar e finalmente aniquilar por uma dor que não é a sua (no cinema , ouvindo The Ronettes) consiste num uso infiltrado desta re-flexão entre passado e presente, fora de campo e campo, Aurora e Pilar, que o filme intenta construir…

Tabu seria um elegíaco filme esquizo se insistisse nesta via – no domínio da Memória, das correspondências, das sugestões mediúnicas, das “coincidências”, dos vasos comunicantes… o sussurro e o diáfano que são a moeda de troca de todo moribundo e qualquer decadentista (a premissa aqui é evidente) estariam bem melhor representadas por estes avatares. Mas este caminho, para “dar certo”, necessita de um investimento sofisticado na noção de fora de campo, de espaçamento e refração do campo por aquilo que o erode e transfigura – aquilo que o torna um Outro sob o Mesmo, operação dialética paradigmática na vida como na arte; incapaz disto aqui, Miguel Gomes prefere “reanimar” um romanesco fanado, erigir a demonstração de um maneirismo preguiçoso, tatibitati, paupérrimo… sim, a história de Aurora será contada (em capítulos e In memoriam!, como a epístopla-epígrafe final, narrada enfim por Laura Soverau, grande lembrança do inesquecível Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes, aliás); sim, e esta, para completar o menu pós-pós – cacoetes de meta-pataca, crítica das fontes, cotejo da experiência subjetiva com uma “situação” negativa, ideológica e historicamente – vai por sua vez ter como pano de fundo a toda uma experiência epocal de desumanização – o colonialismo…

tabu4

Em Ascensor para o Cadafalso, Louis Malle, que não recomendaria como diretor nem ao assassino de minha mãe, conseguiu ser bem mais eficiente neste quesito, ao arquitetar, nos ecos entre os duplos da história (o casal feito por Moreau e Ronet, o casalzinho mais jovem) a emergência do refoulé da Guerra da Argélia: os assassinados são mostrados como os verdadeiros vilões (eram comerciantes de armas), e os assassinos a única reserva de spleen romântico (tentativa de suicídio do casal, passeios de Moreau sob a treva, Miles Davis e a chuva) daqueles arrabaldes soturnos…

Chamar Tabu de filme maneirista merece aliás aspas e rodapés ad nauseum (ed nauseum), mas me contento com uma imprescindível nota de Jean-Baptiste Thoret:

“(…) usarei o termo maneirismo (e maneirista) entre aspas. Não porque este teria em si um sentido flutuante, ou mesmo muito amplo (para a crítica de arte, ‘maneirismo’ remete a um período historicamente preciso e a uma prática estética determinada), mas porque sua apropriação pela crítica de cinema, aliás, bastante recente, não soube evitar as ambigüidades ligadas ao empréstimo de um conceito forjado em outro domínio e para outros objetos. Da transposição mecânica que se contenta de perseguir as equivalências para apor-lhes o label maneirista (pesquisa sistemática da linha serpentina em um filme, da torção das figuras dos Rafaéis e Michelangelos da sétima arte) ao puro subjetivismo, ligado a uma interpretação pessoal do termo (todo filme – ou quase todo – se torna então suscetível de penetrar no campo de um “maneirismo” qualquer), só podemos constatar a desvitalização programática de um conceito nascido por e para uma história pictórica das formas, e unicamente para ela”.

O grande cinema moderno já nos ensinou que o cinema, para permanecer vivo e  presente, precisou “desgarrar-se” da rédea dos Pais; ao draconiano controle da mise en scène clássica, opôs, senão um desmentido iconoclasta (Sganzerla, Mekas, a vanguarda americana), ao menos um experiment in progress dialético, uma solução de compromisso que levou à  orquestração da mise en scène na ontologia: os Rivette, os Rouch, Cassavetes (Performer ou Esquizo?; Psicodrama ou Melodrama?). O maneirismo foi a operação paradigmática desta simbiose (impossível) entre a Fascinação clássica e o “Para-si” moderno: a Clínica e a Crítica. Ao utilizar o raccord no eixo da câmera que Hawks usava aqui e ali para evitar a animosidade carnívora do zoom, Argento o transformou numa figura retórica – o que antes era um meio de manter a qualquer custo a “transparência clássica”, de não chamar a atenção para o trabalho da  câmera, ao elidir o zoom – se torna um fim “que nos interessa sublinhar”. O uso que o maneirista fez do passado foi perverso, portanto, aspirando a um diferir – uma pequena diferença sempre, como nos flashs citados acima: um Mesmo instrumento tratado (interpretado, diferido) como um Outro...

Na cartilha “amaneirada” do desclassificado filminho super 8 em que Miguel Gomes transforma Tabu, não há lugar para tais artes, esquivas e espectrais. O preto e branco 16mm, as acelerações, a atuação, entre histriônica e primma dona, dos atores, a divisão em intertítulos, a construção “sintético-caleidoscópica” dos recuerdos de Aurora… já vi propaganda inglesa com muito superior tratamento das elipses.

tabu5

Necrofilia barata, indecorosa: para o passado permanecer presente, inspirador, ele necessita de uma violação – um trauma, uma ferida: o trauma do tempo que passou e que a nenhum de nós deixa impune. Ao restituí-lo como decalque, ao prestar-lhe um panegírico, ao erigir-lhe uma efígie, o artista o mata (esta sempre foi a corda bamba sobre a qual se agitou o maneirismo, aliás, e que desaguou num filme doente como Dublê de Corpo, de Brian de Palma, em que Hitchcock é desfigurado pobremente pelas “mediações” da publicidade)…

Na parte “ruiziana” de A Cara que Mereces (2004), no admirável Aquele Querido Mês de Agosto (2008), nos impagáveis curtas (dignos de Joseph Cornell, com quem tem pontos em comum), Miguel Gomes aposta no “Jogo”- entre a contemplação clássica, a rapsódia, a féerie (Cântico das Criaturas, de 2006). Ele joga, permutando sem cessar a coisa e as nossas máscaras, o objeto e o ser a quem afeta, a câmera e o que a vê…  aqui, o mecanismo emperrou: demasiado auto-consciente, “arrière-pensée”. Nunca tive muita inclinação à idolatria de deuses ex-machina (aqueles que tiramos da manga no teatro, para tudo dispor e resolver na última hora) ou de gênios – mas em arte este carnavalesco arsenal de saberes e poderes à disposição do artista-demiurgo já foi mais do que desmascarado… me inspira o mal-estar de dialogar com um manequim ao qual, sem lentes de contato, tomarei por um passante a quem indago um endereço.

A primeira parte de Tabu contém frestas e mortos entrevistos, suspensões (o encontro zumbi com a menina estrangeira, Santa à porta de Pilar), vidências à espreita (os colóquios solitários de Santa, que aprende a ler para um dia tomar o lugar de Aurora no fora de campo e dominar o seu filme); momentos miraculosos: Teresa Madruga e a festa de début que nunca teve, chorando no cinema; o perfil enviesado do velho de chapéu; o close sobre a rosa no caixão… um infinito se aconchega ali, pela última vez: a vida que não foi… O desagradável é verificar, com este necessário mas atroz olhar para trás (a posteriori) que é o alimento de toda significação, que aquilo já se preparava para nós, que continha a segunda parte em filigrana (in vitro)… Gomes aprendeu a arte de ser artista, e maior perigo não há.

Share Button