Sob o Sol de Satã (Sous le Soleil de Satan), de Maurice Pialat (França, 1987)

março 26, 2014 em Em Campo, Victor Guimarães

Transcendência contrariada
por Victor Guimarães

O elogio a Maurice Pialat tende a se concentrar (muito justamente) em uma forte ideia de realismo de presença: a força vital de seu cinema reside em imprimir no filme as lascas do mundo, em se abrir para a aspereza do real, em enxergar no corpo-a-corpo entre a câmera e os atores o lugar primordial de fabricação da experiência cinematográfica. Bazin e Cassavetes se encontram em uma devoção inveterada à verdade da filmagem, ao momento irrepetível de interação entre a máquina do cinema e a máquina do mundo, numa recusa fundamental aos arroubos da “linguagem cinematográfica” e à abstração. Como definiu Luis Carlos de Oliveira Jr., em Pialat “um filme não é a realização de um projeto, mas a descoberta de um evento desencadeado na frente da câmera”. De fato, a impressão que temos diante de suas sequências mais festejadas (as brigas entre pai e filha em Aos Nossos Amores (1983), a extraordinária visita ao cabaré em Van Gogh (1991)) é sempre a mesma: esse conjunto de planos não poderia ser filmado novamente; diante dessa dor e dessa amargura, não há retake possível.

O que ocorre, no entanto, quando o cineasta da imanência decide adaptar um livro de Georges Bernanos que tem Deus e o Diabo entre seus personagens principais? O que acontece a essa forma fraturada pela intensidade do real quando tem de filmar um enredo recheado de situações em que o sobrenatural adquire pleno domínio sobre o mundo vivido? Sob o Sol de Satã (1987) é o único filme de Pialat que apresenta um compromisso fundamental com a transcendência, e é dessa característica primeira que derivam as diferenças estilísticas que fazem deste um filme tão singular na carreira do realizador.

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De saída, somos apresentados a um protagonista bastante inusitado: Donissan (Gerard Depardieu) é um jovem padre, envolto nas profundezas de um embate interno com a própria crença. Abandonado por Deus e tentado pelo Diabo, sua fé inquebrantável o fará sucumbir à destruição física: Donissan será um corpo sempre prestes a desabar, como se a gravidade do mundo lhe fosse insuportável. Em um gesto de montagem fabuloso, o filme nos apresenta, de repente, sua outra personagem central, conectando essas duas existências: como num falso campo/contracampo, o corte nos conduz do olhar do padre no interior da igreja até a casa do Marquês de Cardignan (Alain Artur), onde a jovem Mouchette (Sandrine Bonnaire) caminha com sua languidez prenhe de sensualidade. Se a montagem no cinema anterior de Pialat tendia a operar por puro acúmulo, associando os planos menos por seu significado do que por sua intensidade relativa, aqui a transcendência atinge em cheio a forma do filme, promovendo uma contiguidade imaginária entre dois espaços – e dois personagens – muito distintos, e sugerindo relações subterrâneas, improváveis à primeira vista. Mouchette será algo como o complemento de Donissan: mundana, prosaica (nada comprometida com a religião), mas igualmente atormentada, dilacerada por algo que não consegue controlar.

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Outro traço distintivo logo salta aos ouvidos: a verborragia romanesca dos diálogos. Se filmes como Nós Não Envelheceremos Juntos (1972) ou Loulou (1980) eram verborrágicos, isso se devia muito menos à força do texto do que à vibração repetitiva da fala cotidiana, das disputas verbais intermináveis, das metralhadoras de ofensas mútuas que se tornam, muitas vezes, os pares de personagens em Pialat. Aqui, as conversas acontecem em uma chave distinta: o cotidiano está lá, mas é como que assombrado por um fraseado literário marcante, que transforma o menor diálogo em uma ocasião de embate poético: as sisudas discussões religiosas entre Donissan e Menou-Segrais (o próprio Pialat) que abrem o filme, o súbito encontro entre o protagonista e Mouchette na floresta. Há algo nos diálogos que sempre aponta para fora, que ultrapassa a situação corriqueira, tornando o filme uma potente investigação sobre a própria ideia de transcendência: “você acredita no inferno?”, pergunta Mouchette ao deputado Gallet (Yann Dedet). “Deus é uma piada. Deus não significa nada”, diz ela ao padre Donissan. Se Sob o Sol de Satã é o filme mais romanesco de Pialat, trata-se menos de uma adesão à progressão narrativo-psicológica do romance (gesto impossível para um cineasta tão profundamente moderno) do que a um gosto pelo texto e por sua encarnação no corpo dos atores.

A cotidianidade dos filmes anteriores também impunha uma estilística bastante despojada, com a fotografia frequentemente colocada em segundo plano em relação à intensidade das performances dos atores. Obras como Infância Nua (1968) e Antes Passe no Vestibular (1979) certamente retiram das escolhas precisas de mise en scène (a distância entre a câmera e os corpos, as entradas e saídas de quadro) boa parte de sua força, mas não serão lembradas por sua plasticidade singular. No filme de 1987, ao contrário, o tratamento fotográfico apurado adquire importância crucial: o uso frequente do jogo entre luzes e sombras, a aposta decidida nas cores frias reatam com o gosto de Pialat pela pintura, e compõem um universo plástico inconfundível. As qualidades pictóricas de Sob o Sol de Satã só serão igualadas por Van Gogh, mas há uma diferença fundamental entre os dois: enquanto a obra de 1991 é plena de uma tonalidade solar, própria da pintura do holandês, o filme anterior é tomado por uma vibração saturnina que tinge todas as situações da mais profunda melancolia.

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A palavra descontrole também é frequentemente utilizada para caracterizar o gesto de Pialat em sua devoção à energia imprevisível das ações filmadas. A mise en scène aqui, no entanto, é de uma elegância inigualável: há uma preferência pela composição em planos fixos, muito bem iluminados, que reserva aos movimentos suaves do enquadramento um lugar pontual (e, por isso mesmo, assustadoramente expressivo). Em uma das sequências mais impressionantes, ouvimos a voz de Mouchette no fora-de-campo, enquanto a câmera realiza um movimento circular pelo quarto, acompanhando a caminhada de Cardignan em direção à porta. Ao final do plano, o tiro que não vemos, mas ouvimos com sobressalto. Sem que suspeitássemos de todo, o movimento suave da câmera capturava os últimos segundos da vida daquele homem, para deter-se da maneira mais elegante possível ante o fim trágico.

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No entanto, embora seja um filme consideravelmente mais controlado do que os anteriores, Sob o Sol de Satã descobrirá outras maneiras de expressar a brutalidade tão característica do cinema de Pialat. Seja através da imprevisibilidade exasperada de seus protagonistas (ambos à beira do abismo, ele é um corpo em desmoronamento, enquanto ela está sempre prestes a explodir em grito ou ação impensada), seja por meio de golpes de montagem que nos tomam de assalto e nos retiram qualquer tranquilidade possível (como no extraordinário corte que nos conduz subitamente da navalha no pescoço de Mouchette ao arrombamento da porta do banheiro por Donissan). Se a elegância da mise en scène é a marca distintiva do filme, Pialat estará sempre disposto a sacrificá-la em nome do imprevisto, da centelha de brusquidão que coloca em cheque todo acabamento.

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Embora decididamente religioso, Sob o Sol de Satã é tudo, menos casto: nos olhares voluptuosos das moças para o padre, na sexualidade adolescente de Sandrine Bonnaire, no beijo da mãe após o milagre ou nas carícias do próprio Satã, o filme reata com a sensualidade tão característica da obra de Pialat de uma maneira insuspeitada. O angelical e o demoníaco se atravessam e se retroalimentam, na ambiguidade desses personagens dilacerados pela religião e pelo mundo. Ainda que a transcendência seja sua matéria primeira (e que haja demônios, milagreiros, ressurreições), esta será sempre contrariada pelos humores mundanos, pela densidade insubstituível do corpo. O divino, quando filmado por Pialat, só pode ter gosto de sangue.

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