Selma (2014), de Ava DuVernay (Reino Unido/EUA, 2014)

agosto 12, 2015 em Em Cartaz, Marcelo Miranda

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Da necessidade de ser didático
por Marcelo Miranda

“O discurso persuasivo quer levar-nos a conclusão definitivas; prescreve-nos o que devemos desejar, compreender, temer, querer e não querer. (…) Se o discurso aberto quer-nos apresentar de um modo novo o problema da dor, o discurso persuasivo tende a nos fazer chorar, a estimular as nossas lágrimas (…) Tenho necessidade de discursos persuasivos somente quando preciso convencer pessoas a quem peço o livre consentimento”.

Umberto Eco, Obra Aberta.

Selma, o filme, nasce num duplo sentido: servir de celebração aos 50 anos das marchas promovidas pelo movimento por direitos civis dos negros em 1965 entre as cidades de Selma e Montgomery, no estado do Alabama (EUA); e denunciar as constantes violências ainda sofridas pela população negra no país, conforme o noticiário atual deixa claro nos constantes casos de mortes raciais em ações policiais brutais. Promove-se, assim, um olhar para a passado, por meio de uma reflexão de cunho historiográfico, e a atenção ao presente, tentando fazer com que o painel apresentado em cena de alguma maneira reverbere o quanto as questões colocadas no enredo ainda estão distantes de serem efetivamente resolvidas num âmbito mais amplo (o racismo, a violência e as ações institucionais contra os negros, por exemplo).

A ambição, portanto, é grande. Por mais vigorosas sejam algumas cenas, sente-se sempre a impossibilidade de abarcar o todo. Lida-se o tempo inteiro com uma espécie de “imagem-mito” de Martin Luther King que mesmo a interpretação poderosa de David Oyelowo não dá conta de se desvencilhar. Cada gesto e movimento, cada olhar e escolha de palavras, tudo está a serviço de ilustrar a imagem reconhecida (e reconhecível) de um Luther King tal como uma lenda. Selma não se entrega à armadilha de simplesmente hagiografar o protagonista, mas mesmo a tentativa de dar-lhe nuances ou complexificar suas relações para além do envolvimento nos movimentos sociais segue sempre fazendo com que a “imagem-mito” permaneça. Existe um status quo simbólico a partir do qual o filme se configura e que nunca é ultrapassado ou desafiado.

Isso se evidencia na abordagem particular da relação abalada entre Luther King e a esposa, Coretta. O líder das massas é questionado pela esposa sobre “elas” (em referência às várias amantes dele), desequilibrando uma harmonia que se revelava apenas aparente fora das paredes de casa. A constante negociação e diplomacia características da luta exterior de Luther King (apresentada antes, no primeiro diálogo entre ele e o então presidente Lyndon Johnson) também aparece na luta interior, em sua tentativa de manter a integridade da família pelo menos na fachada. Coretta é a grande figura trágica de Selma, pois é a única personagem que precisa abaixar a cabeça e passar por cima das próprias insatisfações e frustrações, enquanto todos com quem convive têm por essência moral a combatividade, o questionamento, a problematização e a revolta contra a segregação e as injustiças. A Coretta, cabe a compreensão e o incentivo à “imagem-mito” do marido, mesmo que para isso ela precise se anular como mulher.

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Selma, na maneira como é desenvolvido, se assemelha à postura de Coretta: o filme sabe do que está falando e tem plena consciência de seu lugar de fala, de postura e da importância de se manter devidamente afastado, sem invadir, com o privado, o âmbito público. Todo o material com que Ava DuVernay trabalha parte de um conhecimento prévio (deixemos de lado as pendengas históricas que dominaram reportagens na grande imprensa, sempre mais preocupadas em “corrigir” os fatos do que em pensar em como eles se inserem) e a ele não desafia nem provoca fissuras. Trata-se de reconstituir os acontecimentos referenciais com a devida dramatização e todos os códigos necessários para um trabalho de razoável qualidade e potência. Se for preciso que a violência policial seja apresentada em câmera lenta para que o espectador tenha acentuada a noção de gravidade do ato, que venha a câmera lenta.

O recurso tenta dar às imagens de conflito entre as autoridades de Selma e os manifestantes negros seu justo sentido de exceção e suspensão, como se os planos mais contundentes precisassem ser desacelerados quase a ponto de a imagem se tornar uma fotografia a ser fixada na retina de quem a assiste. Não é que Ava DuVernay busque embelezar o horror ou reenquadrar a morte (como Jacques Rivette acusava Gillo Pontecorvo de fazer em Kapò, no célebre ensaio de 1961 sobre a abjeção e cujas ideias há algum tempo têm sido inconsequentemente usadas e banalizadas como suporte para se acusar determinados filmes, quando o motivo do desgostar muitas vezes é recalque da própria crítica). DuVernay busca, de fato, elevar a potência da violência representada, forçando a imagem de maneira a emular golpes e ferimentos ainda reverberantes cinco décadas depois. O procedimento por vezes se desequilibra porque o peso dado ao conteúdo da imagem sufoca a própria imagem e periga chocar apenas pelo símbolo, não pelo fenômeno. Se há tensão insuportável e noção plena da catástrofe (social e política) numa cena similar e antológica como a da escadaria de Odessa em O Encouraçado Potemkin (1925), é porque Sergei Eisenstein a filma como acontecimento único, usando recursos de montagem, música e ritmo para lhe dar não só sentido, mas principalmente presença.

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Daí que Selma cresça substancialmente nas cenas de discurso de Luther King, quando se assume a “imagem-mito” tal como ela é, milimetricamente desenhada nos enquadramentos e na atuação de Oyelowo. Aparece, então, a marcante valorização da palavra como elemento político de mobilização. O filme, nestes momentos, não escamoteia o que são, de fato, seus grandes trunfos (incluindo o bom uso das imagens de arquivo no final). Que os discursos de Luther King tenham hoje se transformado em peças reproduzidas ou citadas a todo canto (real ou virtual) só atesta o quanto ouvi-los (e vê-los) na maneira como Duvernay os filma traz de volta o que eles possuem de mais significativo e fundamental. Nisso, Selma acaba por ser tanto tributo ao passado quanto apelo ao futuro, tanto resgate de memória quanto estímulo à insurgência contra os poderes estabelecidos. Um filme, mesmo que limitado e um tanto entortado, ainda pode agir diante de uma postura moral que o retira da banalidade. O discurso persuasivo, definido por Umberto Eco como a fala de intenção pré-planejada, é dominante em Selma, mas o filme se sustenta por caminhos inesperados que abrem outras possibilidades de se falar do relevante e do urgente sem por isso sempre falar as mesmas coisas. Na verdade, Ava DuVernay está mesmo repetindo um discurso que, num mundo utópico, deveria estar desgastado. Como se sabe e se vê – e como a moldura quase didática de Selma quase se obriga a explicitar –, tudo está bastante longe (impossível?) de ser resolvido.

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