Os Amantes Passageiros (Los Amantes Passajeros), de Pedro Almodóvar (Espanha, 2013)

julho 22, 2013 em Em Cartaz, Juliano Gomes

osamantespassageiros1

Além do desejo
por Juliano Gomes

Após um bem sucedido estudo sobre as superfícies e suas reversibilidades em A Pele que Habito (2011), Almodóvar reinveste seu olhar sobre as possibilidades das aparências em um modo que parece retomar as ferramentas de seus primeiros filmes neste Os Amantes Passageiros. Há, por todo o filme, uma espécie de desejo de imbricação entre uma forma de ataque muito direta que se encerra em si (o humor,  o sexo), e uma outra, alegórica, que opera por representação (a Espanha, a política). Dentro desse desenho, seu exímio domínio da dinâmica entre significante e significado consegue constituir uma relação complexa em suas operações, justamente por um certo valor de falha entre os níveis. Trata-se, acima de tudo, de um filme barato, fuleiro, uma farsa. E como tal, é necessário um referente exterior suficientemente claro – aqui, muito obviamente a crise financeira na Espanha (o filme reitera isso algumas vezes, com planos do jornal lido que estampa “os 10 maiores escândalos financeiros”, e com o próprio personagem do banqueiro) – e de uma superfície que se justifique em si mesma, em sua vacuidade, a cada novo número que se sucede. No espaço entre esses dois níveis, e na sua possibilidade de contato e de separação absoluta, é que se pode medir a força de intervenção de um filme como Amantes Passageiros. Esse espaço de suspensão que se metaforiza num vôo fracassado é também o espaço de autoprojeção da obra, com o qual se pode chegar ou não ao destino pretendido.

Na trajetória recente de Almodóvar, o mais grave acidente de percurso foi o do alargamento da interseção de seu imaginário com um certo conjunto de signos do “bom gosto”, isto é: imagens cuja força de beleza é tão extasiante quanto apaziguadora, e que, retiradas de seu contexto, se ajustam a enunciados pré-fabricados que só confirmam a constituição de um status quo. Amantes Passageiros é, antes de tudo, uma intervenção nesse nível de significação, no da obra como conjunto. No momento auge de cooptação, é necessário lembrar que a Movida Madrilenha foi, à sua maneira, um movimento Punk. E aqui, além do retorno ao “modo” de seus primeiros filmes, que refletiram e constituíram o imaginário da Movida, para abandoná-lo em seguida (paradoxo fundador do punk: não durar; isto é : poder morrer) não faltam referências a signos desse momento: exuberância das cores, exagero, liberação sexual, cultura pop e cancioneiro popular.

Está claro, então, um paralelo. Em tempos de depauperamento profundo (da economia europeia e da cristalização de um imaginário cristalizado de Belo), é oportuno revisitar um repertório que guarda semelhanças com isso, na medida em que o que está em jogo é: o que fazer quando o totalitarismo capturou a imaginação? Cabe notar a semelhança de procedimento dos movimentos políticos pós-Seattle, no sentido em que, se a política institucional se torna avassaladoramente cada vez mais uma operação de encenação, sua contrapartida se constitui do mesmo vetor, mas anulando a extremidade que lhe dá o sentido final. Para tentar resumir, o que está em negociação é justamente esse valor de falha mencionado acima, essa força da impossibilidade da encenação encerrar um enunciado. É essa a diferença da nova crítica à representação, e é esse o dado que faz Amantes Passageiros nos causar um misto de frustração e surpresa. É preciso reinvestir na superfície, não negar os significantes, mas adicionar-lhes ruído, e nos alimentarmos dessa faísca efêmera. As estrelas da publicidade mundial, Penélope Cruz e Antonio Banderas, numa espécie de prólogo abertamente idiota, são os responsáveis pela causa do problema no vôo. O sexo já aparece como mecanismo central, mas totalmente destituído de sensualidade e charme na cena inicial da pista vôo. O sexo instaura o ruído, é o responsável pela falha.

osamantespassageiros2

Estamos próximos aqui tanto de Warhol (talvez a Almodóvar seja justamente o sonho realizado do Warhol-cineasta como possibilidade de caminho) quanto do quadro “Metrô Zorra Brasil”, do programa Zorra Total da Rede Globo. Em relação ao primeiro, há a diferença mesma de artesanato, pois aqui é necessária uma limpidez das superfícies para localizar a “sujeira” nesse espaço intersticial do significado; a aparência precisa estar limpa para que o problema esteja justamente no fio que a liga ao exterior de si mesma… ao mundo, enfim.  À outra matriz, a curiosa proximidade (a metáfora de nação; o meio de transporte e movimento; a caricatura grosseira) é contrabalanceada por um dado estritamente político: aqui é preciso ruir as forças de conservação que emanam da imagem, pois a superfície moral dos personagens precisa ser arruinada para operar os desvelamentos necessários. Na versão televisa da alegoria, prevalece a força final de confirmação dos tipos, enquanto que, na almodovariana, esse valor é chocado a uma força de momento, de hedonismo afinal, de valor instantâneo, que o redime. O tratamento do sexo é ferramenta fundamental aqui. O trajeto de quase todos os personagens desse pequeno microcosmo é o da revelação de uma verdade do sexo como uma espécie de fundo inescapável que constituí um novo campo comum, uma nova relação com a verdade. Uma relação que se encerra individualmente, mas que é compartilhada (vide a bela operação dos telefonemas nos autofalantes), apesar de se dirigir pra esfera individual. Sua força é justamente essa afirmação pública de uma efemeridade individual: cada um com seu cartaz, demandas difusas, impossíveis de sintetizar; mas a ocupação do espaço é concreta, a existência no tempo produz significado, na medida em que produz sensação. E essa comunicação muda é necessariamente ambígua (daí a força frasista do filme como em “com um bissexual nunca se sabe bem”). Estamos próximos de Godard e seu uso semiótico-burlesco do trocadilho, com sua imensa força de reversibilidade.

Na chave metafórica, o que é possível encontrar é justamente essa possibilidade de uma verdade a partir da ocupação do espaço-tempo, daí a sucessão de números. A tragédia está dada. O rei está nu. Então, a partir desta estrutura “alienada”, que está fora, pois precisa se afastar para significar esse “fora” que ela cria, ela propõe uma forma de intervenção que se dê pela chave do desejo, pela expansão dele, pela criação de um espaço de possibilidade para o desejo qualquer aparecer, seja ele de que natureza for (embriaguez, tesão…), inviabilizando uma leitura política ligada a um modelo de causa-efeito. Na ruína, é preciso ocupar o vazio, colocar o corpo na roda, no tempo, seja ele ineficiente, feio, desajustado… mas é preciso “preencher o tempo” para distrair os passageiros.  Almodóvar entorta os planos, desenhando esse pequeno universo com uma proximidade que nos parece incômoda, lhe conferindo uma claustrofobia encantatória que distorce justamente pela impossibilidade de recuar num espaço limítrofe. O vazio se espalhou por tudo (vide a fantasmagoria no aeroporto). As nuvens ou a espuma estão preenchidas por ele (assim como as bolsas de valores). A crise é justamente a de ocupar o vazio, de ser o vazio e transformá-lo em encenação qualquer, que tem por função não se ajustar perfeitamente a nada que não seja sua própria força de presença.

osamantespassageiros3

A insuficiência de Os Amantes Passageiros como diagnóstico da crise europeia ou da crise da representação política mundial parece absolutamente planejada (trata-se, talvez, do mais cerebral dos cineastas hoje, daí sua precisão passional), na medida em que ele aponta para a questão para justamente torcê-la como problema. Essa abertura no tempo que constitui uma crise é uma oportunidade para o excesso, o dispêndio e a dissipação: é preciso não conservar mais nada, extinguir toda virtualização, buscar o concreto enfim, o corpo como evidência de existir, individual e coletivo, renunciado a enunciados e bandeiras, enfrentando de peito aberto os abismos da ambiguidade, nessa ode torta ao dispêndio improdutivo e à excitação como fim. O sangue escorre, pinga nas telas, seca na cabeça e assombra todo o vermelho.

Novamente, Almodóvar, um poeta maldito na porta principal, nos oferece sua visão da urgência como condição vital e da possibilidade de verdade diante do desespero absoluto. Herdeiro da Pop Art, ele é aquele que dobra os signos diante de nós, que exerce a maleabilidade dessas superfícies, tentando dificultar sua captura posterior (pela publicidade, pela discurso estatal, pelo jornalismo), negando o horizonte representacional que não pressupõe resto ou diferença entre os pontos. O que importa é esse desenho anônimo, desindividualizante (não há protagonista aqui), movente, e inoperante, do todo. Esse trajeto narrado em Amantes Passageiros carrega essa condição, para dentro (enredo, personagens) e para fora (alegoria política, forma discursiva). Daí, sua grosseira e necessariamente inadequada importância para o presente.

Share Button