O Tempo Passa como um Leão que Ruge (Die Zeit vergeht wie ein brüllender Löwe), de Philipp Hartmann (Alemanha, 2013)

junho 2, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

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As muitas faces de um rosto
por Fábio Andrade

O Tempo Passa como um Leão que Ruge é um filme de monumental ambição. Essa ambição se manifesta logo na escolha do assunto: um documentário sobre o tempo – o mesmo tempo que povoa bibliotecas inteiras de filosofia e que é tema e agente onipresente na história do cinema, em grandes filmes tão distintos quanto Hiroshima Mon Amour (1959), de Alain Resnais, Millennium Mambo (2001), de Hou Hsiao-hsien e O Feitiço do Tempo (1993), de Harold Ramis.

Se, a princípio, a monumentalidade do assunto é inevitavelmente intimidadora, a abordagem de Philipp Hartmann busca refúgio em uma série de critérios objetivos, matemáticos até: o diretor decide realizar o filme quando percebe estar se aproximando da metade de sua expectativa de vida, e cria para si a restrição de que a duração do filme tenha um minuto para cada ano dessa mesma expectativa (76,5). Diante da própria natureza do objeto investigado, esssa abordagem estritamente estruturalista do tempo como tema e dispositivo cinematográfico parece quase natural. Porém, após um breve prólogo que preenche a tela do cinema com fotografias parcialmente veladas da infância do diretor (e que, junto à narração em voz over, anuncia que a apreensão do tempo passará, necessariamente, pela subjetividade auto-evidente da primeira pessoa do singular), tiradas por seu falecido pai, essa aparente objetividade é exposta em seus limites. Por um protocolo bastante rígido visualmente, que traz à lembrança os curtas recentes de Rafael Urban (Ovos de Dinossauro na Sala de Estar e A que Deve a Honra da Ilustre Visita Este Simples Marquês, em parceria com Terence Keller), Hartmann entrevista um profissional que trabalha em uma espécie de indústria do tempo, um laboratório de relógios atômicos que exporta a marcação do tempo para vários países do mundo, e ali descobre que o tempo é, de fato, irregular. A cada 18 meses, a rotação terrestre se atrasa um segundo em relação ao tempo científico dos relógios atômicos, e os cientistas adicionam um segundo falso para compensar esta diferença.

Essa descoberta é um pequeno achado conceitual que Philipp Hartmann usa como agente contaminador da estrutura de seu filme. Afinal, se o tempo é cientificamente irregular, qualquer abordagem baseada em um rigor absolutamente científico está (cientificamente) fadada ao fracasso. O Tempo Passa como um Leão que Ruge rapidamente abandona este falso princípio objetivo, e passa a se dedicar às inúmeras possibilidades artísticas de expressar uma apreensão do tempo que é naturalmente múltipla, e que se permite dançar ao redor das grades do tempo sem nunca deixar de tê-las como referencial – como músicos adicionam fluidez a uma performance se permitindo escapar momentaneamente da tirania de um metrônomo.

O caminho para isso, porém, não será menos rigoroso. O que temos aqui é uma espécie de processo heideggeriano da aplicação de um mesmo conceito em suas mais variadas acepções e encarnações. Philipp Hartmann parte de uma vivência fisicamente experimentada (a percepção de que está chegando à metade de sua expectativa de vida, e todas as crises e impulsos que essa certeza de morte é capaz de produzir), retira dela um conceito filosófico de unidade absolutamente singular (o tempo), e em seguida devolve-o à vida, aplicando-o a experiências também físicas da ação desse mesmo conceito, e de como ele transforma a experiência vivida. A partir de um desenho aparentemente rígido, O Tempo Passa como um Leão que Ruge cria uma coleção de aplicações artísticas de um mesmo conceito que impressiona pela combinação de um rigor ontológico com uma extrema variedade e liberdade associativas – por vezes se aproximando de outro filme também em exibição neste Olhar de Cinema, e igualmente contaminado pela inevitabilidade do tempo: E Agora? Lembra-me, de Joaquim Pinto. Essa é uma escolha de extrema felicidade, pois, se o tempo é naturalmente múltiplo e irregular, ele só poderá ser evocado por uma obra de arte se ela preservar essa mesma multiplicidade.

Em uma coleção que prima pela irregularidade, importa menos que algumas partes sejam mais fortes que outras, e mais que todas elas convivam em um mesmo filme, e acrescentem a um entendimento que desvia de qualquer tentação de pureza. O tempo, afinal, não é somente um conceito, mas também uma sensação física, um agente emocional, um processo orgânico, uma invenção da cultura, e o filme sabe que a aproximação da essência deste conceito só é possível se todos esses diferentes caminhos forem trilhados. Entre especulações filosóficas, jogos ilusionistas à Méliès, memórias pessoais, dobras metalingüísticas, investigações ontológicas acerca da natureza da imagem e breves esquetes de ficção, Philipp Hartmann acumula diferentes apreensões parciais da ação do tempo que, embora muito fortemente conduzidas pela narração em voz over e pelas obstruções criativas que o diretor impõe a si mesmo, driblam os atalhos sem saída da causa-e-efeito almejada por um raciocínio estritamente lógico.

A partir deste acúmulo, o que começa como um conceito frio, científico, objetivo, termina por revelar uma imagem (na compreensão goetheana do termo que tenta dar conta da sensação de se visualizar o todo de uma idéia) extraordinariamente complexa de sua própria investigação conceitual, mas que em momento algum se furta das possibilidades criativas da leveza, das possibilidades de conexão das convenções dramatúrgicas, da pessoalidade que distorce e prisma uma experiência de mundo. Justamente por isso, o filme oscila entre momentos de extrema beleza e síntese – os relógios desenhados pelos pacientes de Alzheimer; o depoimento da avó do diretor, próximo ao final do filme; o uso das fotografias dos pais – e especulações que nem sempre chegam onde almejam, mas que fazem, igualmente, parte dessa imagem mais ampla que não é somente bela ou feia, dura ou mole, quente ou fria, mas que encontra expressividade justamente na concomitância de todos esses entendimentos e sensações ao longo de sua dúbia e débil duração. A beleza de O Tempo Passa como um Leão que Ruge é fruto disforme de uma postura artística ao mesmo tempo resignada e ativa, movida pela certeza de que as dúvidas do caminho não são mais nem menos importantes que a inevitabilidade do destino final.

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