Não Envelheceremos Juntos (Nous ne Vieillirons pas Ensemble), de Maurice Pialat (França, 1972)

março 12, 2014 em Em Campo, Filipe Furtado

Uma abertura
por Filipe Furtado

Pela metade de Não Envelheceremos Juntos, há um momento em que, após Marlene Jobert recusar sexo, Jean Yanne faz uma cena e sai do quarto de hotel, batendo a porta com força. A câmera permanece com ela e a força da batida da porta move seus cabelos. Dura segundos, mas muito da força do cinema de Maurice Pialat está nesta reação em cadeia que faz com que os cabelos de Jobert se movimentem. No cinema de Pialat, a questão central é menos o realismo, como frequentemente se discute, do que uma relação complexa com o mundo: um desejo constante de inscrever o máximo possível dele na superfície da película e a certeza de que ele lhe entrega tão pouco de volta. O que é tão tocante no seu cinema é a forma resignada que constata o desnível desta relação: ao filme, cabe abraçar, por todos os meios possíveis, tal mundo, e ao mesmo tempo esperar receber pouco de volta para além de indiferença e hostilidade. O milagre no cinema de Pialat surge destes poucos e privilegiados momentos em que algo acontece e o plano parece receber uma resposta, como os cabelos em movimento de uma atriz em repouso (se Sob o Sol de Satã permanece o pior dos filmes de Pialat, é justamente porque o mundo metafisico de Bernanos não facilita tal movimento).

Não Envelheceremos Juntos pode não ser o melhor filme de Pialat (apesar de certamente estar na competição), mas é aquele em que o seu processo criativo se revela mais explícito. Baseado num romance autobiográfico do cineasta, o filme consiste em pouco mais de 110 minutos de um casal se torturando – espécie de versão mais narrativa de um filme estruturalista como Memórias de um Estrangulador de Loiras (1971), de Júlio Bressane, no qual a mesma ação é repetida à exaustão com pequenas variações. A montagem mantém qualquer momento feliz em elipse, enquanto Pialat nos oferece a mesma ideia – uma das partes, geralmente Yanne, faz algo que fere a outra; eles brigam, a parte ferida foge, o outro lhe persegue. A eterna popularidade do filme vem de um misto de fácil identificação (não há filme melhor sobre certo tipo de gesto ressentido que por vezes pode tomar conta de uma relação) com uma estrutura repetitiva que alcança um improvável equilíbrio musical.

A aridez do conteúdo das sequências encontra um contraponto numa forma que, de tão preocupada em revelá-lo de forma honesta, atravessa-lhe até o outro extremo e, no lugar de hostil, se revela convidativa. Retornamos a ideia da lufada de ar: é ela que torna Não Envelheceremos Juntos tolerável, a despeito dos esforços de Pialat para o contrário.  Estas pequenas interrupções que aos poucos minam a resistência do filme, que tornam um aparente monolito sobre uma relação brutalizada em algo muito mais aberto do que se supõe. Assistir a Não Envelheceremos Juntos com uma plateia é perceber as ocasionais risadas nervosas de reconhecimento, mas também notar como o filme sugere ecos de uma comédia screwball, elas próprias frequentemente baseadas na ideia de uma repetição destrutiva (pensemos em Levada da Breca (1938), de Hawks, no qual acompanhamos variações da mesma situação em que Katherine Hepburn embaraça Cary Grant, até que a vida que ele tinha no começo do filme tenha sido sistematicamente destruída).

O trabalho de montagem também é essencial para tornar a estrutura do filme, em que aos poucos a posição de poder se transfere de Yanne a Jobert, algo natural. É somente nas revisões que fica claro como, num simples momento – a questionar o dia dela, ele não fala com a curiosidade desinteressada de sempre, mas como a reconhecer um território ameaçado –, a dinâmica se inverte e ele vai de brutalizador a homem desesperado. Yanne pouco disfarça que não constrói um personagem tanto quanto reproduz os tiques do seu diretor (até a sua forma de andar lembra os registros de Pialat do período). É um auto-retrato dos menos generosos, como costumam ser o dos alteregos de Pialat – de Yanne aqui a Depardieu em O Garoto (1995) -, que estabelece o modo preferido do cineasta: o da figura em guerra tão aberta para com o mundo que ele não cansará de provocá-lo até receber uma resposta violenta de volta.

As repetições aos poucos emprestam um aspecto ritualizado, a despeito da presença relaxada de Yanne e Jobert. Isso é algo reforçado por se tratar de um caso que acontece majoritariamente em espaços públicos, sobretudo o carro dele, que se torna aos poucos a locação central do filme… um palco claustrofóbico, ao mesmo tempo um espaço só daquelas duas pessoas e aberto para a vista de todos. Não à toa, a quebra do paradigma da relação se resolve pela opção de colocar a câmera no banco de trás do carro na sequência final, em vez de na frente, como nos encontros anteriores. Um dos objetos de cena centrais do filme são os vidros do carro, sempre empoeirados e engordurados, que demarcam aquele espaço, sobretudo nos momentos em que Yanne está no carro e Jobert fora.

Começamos por uma descrição de sequência e é mais que justo que terminamos por outra: próximo ao final do filme, a esposa de Yanne lhe informa que Jobert se casara com outro homem; ele abandona a loja, sai à rua e olha; a montagem corta para um plano da rua seguindo com seu movimento habitual. É o plano mais doloroso de todo o cinema de Maurice Pialat, brutal na sua completa banalidade, com uma geometria que aumenta a agressividade do plano. É o outro extremo da dualidade que guia o cinema de Pialat: ao drama que acompanhamos até ali, o mundo responde dando de ombros. O desespero daquele homem, porém, pertence somente a ele.

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