Monumental dialética

janeiro 25, 2016 em Em Pauta, Luiz Soares Júnior

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por Luiz Soares Júnior

“Quando interrogamos a Deus, responde-nos que é Ele o Pobre: Ego sum pauper. (…) A Criação parece ser uma flor da pobreza infinita”.

Léon Bloy, A Mulher Pobre

“Parece-me certo que o homem construiu o céu à imitação dos instrumentos que lhe serviam para observá-lo”

Georges Sorel, Revue de Métaphysique, 1903

Os filmes de Pedro Costa possuem um mesmo ar de família: o portrait dos amigos de Ventura em Cavalo Dinheiro (2014), fotofilmados em sequência, é o arremate de uma obra em que a filiação é o leitmotif secreto; em O Sangue (1989), a tormentosa filiação diegética se reflete formalmente na dívida que o filme trabalha para com a paternidade clássica e expressionista: Murnau, Lupu Pick e Tourneur comparecem ali para nos recordar este saldo impossível; as “comunidades familiares” marginais que se reúnem no quarto da Vanda para dividir um pico e uma palavra; o pai, o filho e a prostituta de Ossos (1997); Ventura e seu cortejo de fantasmas em Juventude em Marcha (2006) e Cavalo Dinheiro; o casal Jean-Marie Straub e Danièle Huillet em Onde Jaz o seu Sorriso (2001); e os recuos e aproximações que modulam as relações da exilada Mariana com uma ilha encarnada, um negro zumbi, uma mãe histérica e um filho esfíngico em Casa de Lava (1994). Os seus filmes são assombrados por estes laços que personagens à sombra e à margem da vida acabam por entreter entre si e de filme a filme; mas esta filiação diegética oscilante se nutre, como é o caso com todo cineasta tardio, de uma filiação, declarada na carne do filme, à grande Maison familiale da História do cinema: o que é um cineasta tardio se não aquele que atesta em sua própria obra uma incomensurável situação – a saber, os veios secretos, as caves subterrâneas, as gangues clandestinas que acabam por ligar o Outro (cada universo particular, toda irredutível ilhota imagética e conceitual) a um Mesmo tentacular, ubíquo Pater famílias, da História do cinema?

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Os filmes destes homens jamais nos abordam frontalmente, jamais são inocentes (em-si, imediato indeterminado: Hegel), mas chegam sempre mediados pelas taras encobertas, pelas deformações congênitas, a herança de uma vetusta Origem. Cavalo Dinheiro fala também disto, e me parece sintomático que o filme possa ser visto como o paradigma tardio de um cinema tardio, e quiçá o corolário da obra de Costa até aqui: Ventura – como os filmes “situados” dos cineastas tardios – invoca, ao inscrever-se no espaço-tempo de um plano de cinema, todo um refoulé de experiências, uma vertiginosa história cujos refrões, cena e bastidores permanecem presentes o suficiente em seu ser para merecerem um lugar no plano. Para Ventura, como para o Costa de O Sangue e Cavalo Dinheiro, o passado não passou, e os clássicos, como naquele dito enigmático de Benjamin, “possuem um encontro marcado com as gerações futuras”. Cavalo Dinheiro é o escrínio onde se exercita esta arte dialética sofisticada: a genealogia.

Para o genealogista, o passado não passa, mas igualmente não se pode dizer que permanece o mesmo: todo este tempo decorrido há de necessariamente diferir a significação, e levá-la a, sob o envoltório do Mesmo, esposar os diapasões de um Outro. É necessário evitar a cinefilia anedótica, a citação pela citação, os ditirambos crepusculares sobretudo: assim, o último plano do filme parece citar a vitrine de facas de Lang, o penúltimo a arcada fúnebre através da qual Murnau enquadra a visão espectral de Nosferatu carregando o próprio caixão, ao chegar a Wisbourg, mas esta vivência do passado (presente) do cinema só merece lugar no filme porque corresponde à experiência de Ventura; Costa não é um maneirista, alguém que adota um motivo magistral e vai trabalhá-lo figurativamente até a exaustão; assim, Cavalo Dinheiro nos fala menos de M (1931) e de Nosferatu (1922) que de uma visão do tempo como labirinto circular, comum tanto ao genealogista como ao esquizo Ventura.

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Mas o que me parece decisivo no filme é como a intersecção entre classicismo – todos estes planos administrativos-penitenciários à la planos-ratoeiras de Lang; o chiaroscuro; o preto e branco das dominantes primárias – e modernismo acaba por suscitar uma impressão de fantasmagoria – ou antes: só se realiza como fantasmagoria. O status ontológico incerto dos personagens de Cavalo Dinheiro (Vitalina, Joaquim, ou mesmo a Revolução dos Cravos: rememorados, sonhados, obra de refoulé ou efeito de culpa expiatória?) corresponde não apenas a uma radiografia expressionista do imaginário de Ventura – que, trêmulo de pavor, se refugia no id da História predatória e de sua própria história -, mas a um paradigma historicista próprio ao genealogista, que Costa traduz aqui de forma muito original (originária): aquele cuja função consiste em encarnar o passado e diferir o presente, conjugando-o sob os modos do pretérito imperfeito – tempo do verbo no qual uma ação anterior permanece vigente, assombrando a ação hic et nunc – só nos pode restituir esta imbricação entre os Pais e os filhos sob o modo do que eu chamaria de ressonância espectral; assim como a onipresença do trauma acaba por desrealizar o presente – tornando-o mais rarefeito ou concentrado, distendendo-o ou expandindo-o, tingindo-o com cores mercuriais ou lívidas -, o classicismo “tematizado” de Cavalo Dinheiro transforma o filme em um bunker quimérico, onde jamais teremos certeza do status ontológico e fenomenológico do que nos é mostrado, assim como do que nos é negado.

Mas atenção: é justamente por se fundamentar na base sólida, infra-estrutural do classicismo (preeminência do plano, trabalhado suntuosamente “em si”) que podemos considerar a noção muito particular de presença do filme como, não devedora de uma rubrica expressionista (transposição na carne da obra dos percalços mentais de Ventura), e sim de uma objetividade de res, muito próxima da clareza e evidência do registro documental; vemos mortos, vivos, virtuais ou atuais não porque “Ventura alucina”, mas porque a temporalidade própria a uma obra ultratardia como esta consiste necessariamente em manifestar o present tense como efeito de uma história muito antiga – lente genealógica superposta à fotográfica, e que necessariamente a deforma ou modifica a perspectiva -, a dos amigos de Ventura como a de I Walked with a Zombie (1943). Costa filma mortos e vivos com o rigor cartorial com que Kafka registra, com sua “escrita cara de pau” (Gunthers Anders), o reductio ad absurdum do cotidiano burocrático: como se nada devesse denotar a diferença, como se pertencessem ao mesmo vetor de presença, como se nada “houvesse acontecido”. O expressionismo – como de regra na écriture genealógica, tardia ou traumática -, “volta”, mas trabalhado pelo tempo que passou – isto é: pelo realismo de detalhe do kammerspiel e pelo realismo neo-expressionista do Rossellini do pós-guerra, por exemplo. Ele, depurado pelas mediações interpostas no decurso de sua posteridade, retorna não como ex-pressão da interioridade paranóica do personagem, mas como revélateur formal das anfractuosidades de um presente que tem de prestar contas ao passado, que não deve passar impunemente.

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Se Cavalo Dinheiro habita um limbo – suas pausas concertantes, seu staccato próprio, o faustoso de seu gesto ebúrneo, designam propriamente um tempo e um espaço intersticiais “sala de espera” -, é o limbo, característico dos modernistas, de quem ocupa sempre os escaninhos ou as coxias da cena, e contempla, como Moisés a Deus no Monte Sinai, a Eternidade passar; mas aqui, quem passa é a História (Lumière, Méliès, nesta condensação do realismo do registro fotográfico – empreinte de realité –, pela féerie da encenação depurada, para-si). Os modernistas são dialetas da tradição, e realizam com este material de base a operação de “conservação e ultrapassamento” (Aufheben) de seus dons; nada é jogado fora, se desgasta ou desperdiça, mas ao mesmo tempo não permanece idêntico ao que era: uma conversão hermenêutica se opera, uma Diferença se instala no seio da Identidade.

Se Cavalo Dinheiro encerra-se com Murnau e Lang, é porque se deu ao luxo de uma indeterminação genética (dos personagens, do espaço-tempo – os flashbacks da Revolução dos cravos não são introduzidos por fondus; estão aí, como os registros clínicos) típica de “quem chegou tarde demais”, e se sabe obrigado não apenas a mostrar as coisas – como aqueles que injustamente são chamados de primitivos do cinema -, como a mostrar o mostrar, maldição moderna de que jamais sanaremos os efeitos devastadores na ordem causal, nas articulações e estrutura das nossas narrativas. Costa nos mostra como demonstra, como nas sínteses tempestuosas que os grandes dialetas operaram (Goethe, Kleist, Proust), o verso como o reverso da História do cinema, reapropriada por alguém que “praticou” tanto a sua vertente encantatória (O Sangue; Ne Change Rien) como seu lado de “olhar ontológico” (No Quarto da Vanda; Onde Jaz o seu Sorriso): Cavalo Dinheiro é um comentário rebuscado sobre a posteridade de Méliès – de Cocteau e Welles a Carax -, mas o mestre de cerimônias desta mise en scène hipnótica são as fotos de Jacob Riis (Lumière). O filme de Costa, tanto pelas heranças que abriga como pelas apostasias que sugere (Lumière, Méliès, Lumière por Méliès), é monumental não apenas visualmente, mas dialeticamente: tem o poder aurático de olhar de volta para nós, e nos dar vertigens.

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