Lincoln, de Steven Spielberg (EUA, 2012)

abril 8, 2013 em Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

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Crise e revelação
por Luiz Soares Júnior

“O profeta que tem um sonho, conte o sonho; e aquele que tem a minha palavra, fale fielmente a minha palavra.”

 Jeremias, 23:28

“Tanto quanto posso ver, toda a função destes magistrados resume-se sob o tacão da palavra tão idiota e covarde de conciliação.(…) o jugo mecânico (…) aplica-se invariavelmente a estabelecer uma balança, uma espécie de solução de compromisso entre a demanda injusta e a recusa indignada”.

Léon Bloy, “O Mendigo Ingrato”.

“A idéia de Pátria é ligada à de guerra. Dado o que se tornou a guerra (…),  esta transforma a Pátria na força mais imediatamente perigosa que circula entre nós”.

Pierre Drieu la Rochelle, “De Genève a Moscou”.

A proposição clássica de Clausewitz, segundo a qual a guerra é a continuação da política por outros meios, encontra em alguns filmes a sua inversão: em Othon, de Straub e Huillet; Tempestade sobre Washinghton, de Otto Preminger, e este Lincoln, de Steven Spielberg, é a Política o campo de batalha, a arena da Guerra – do discurso, já sabemos -, e mais sangrenta trincheira não há. Nestes petardos logofílicos, não há plano que não seja bombardeado pela iminência de uma emboscada do contracampo, um instante de cadência que não preceda o shot fatal.

Mas ao contrário dos filmes anteriores – em que todos eram implicados no jogo da guerra discursiva, seja pelos reenquadramentos languianos e o cooper discurso em Othon, ou pelo aerodinamismo da câmera de Preminger, Blitzkrieg do Logos sobre a infantaria dos corpos -, em Lincoln há uma reserva de silêncio e de penumbra, ao longo de todo o filme, que permanece à espreita da ação “do discurso”- da ação, tout court. Há um “fora de campo” que se encarna no Presidente – e nos décors que habita, seus gestos estacados, o cadenciado de sua voz, seus relicários secretos e aconchegantes, como a chaise-longue, a criança e o filho morto; a consangüinidade mediúnica com a criada (“Ela sonhou com o senhor?”) – mas também num uso particular, “ancestralmente” idiossincrático, da palavra, sob a forma de parábolas e digressões, nem sempre de inspiração bíblica (a piada escatológica sobre George Washinghton)… estes usos do Logos abrem uma cratera puritana de sub species aeternitates na azáfama taquigráfica e telegráfica dos poderes democráticos em ação.

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Estas suspensões e retenções, que a presença do Presidente e seus atos (lingüísticos inclusive) “em pianinho” instalam, seqüestram as rédeas da chibata do Poder institucional. Mas não para renegá-las, retorcê-las, desregrá-las; afinal, Lincoln é este Poder. Sem este, ele não teria sentido nem posteridade para nós. O que se manifesta aqui é uma operação dialético-messiânica com longa posteridade na história do Ocidente, e que, na América Republicana e puritana, encontrou um locus particularmente eficiente de intensidade escatológica. Trata-se da katargein messiânica, operação mística e política, por meio da qual São Paulo tentou reconciliar a comunidade judaica e os gentios, os não-judeus recém-convertidos ao cristianismo.

O que significa exatamente este estratagema genial? A katargein não consiste em anular a Lei judaica para satisfazer aos gentios, e assim integrá-los à neo-comunidade cristã (ou seja: não circuncisa). Agamben:“Como bem viu São Jerônimo (…), este termo não significa ‘anular , destruir’. (..) Ora, o conhecimento mais elementar do grego é suficiente para nos fazer saber que o correspondente positivo de katargeõ (…) é energeõ, ‘eu ponho em obra, eu ativo’”.  O que busca São Paulo não é erradicar a lei judaica, mas situá-la dialeticamente num horizonte maior e mais sublime: o da caridade e da fé. Aquilo que a Lei não conseguiu, por tornar-se demasiado fundamentalista – atenta à la lettre -, a fé em Cristo Jesus realiza. E qual era o propósito da Lei, fito a que esta não esteve à altura? A redenção do pecado. A Lei permanece necessária – como, sem o risco de recair no barbarismo, uma nova religião pode prescindir da ética? -; necessária, mas não é suficiente; é preciso algo mais, um plus. A Lei, então, segundo uma expressão hegeliana, é “suprassumida” (conservada e ao mesmo tempo ultrapassada) num domínio superior, que são o amor e a caridade em Cristo – a “cola” da Reconciliação entre o crente e o Infinito (aqui, o Norte e o Sul, o Negro infra-estrutural, a superestrutura branca fundiária).

O modelo é o mesmo. Se Lincoln manobra, negocia, joga com os Democratas – se é evasivo e reticente para com a negra e a mulher, com razão ressentidas e justiceiras, é porque sabe que para governar não os pode “jogar fora” ou afrontar diretamente; é preciso saber jogar. Mas este é o gênio do filme de Spielberg: o saber reivindicado aqui não pertence (ou não apenas) à ordem da estratégia ou da ruse, e sim da profecia e da inspiração sapienciais – a Grande Política. Se Lincoln se entrincheira, se embosca (a contra-luz na janela, durante a aprovação da Lei; com os brinquedos do filho; nos seus percalços pela noite e pelos escaninhos dos aposentos), é porque a política na qual crê se projeta em direção a vôos outros, por-vires: sim, a Estátua do Congresso americano com que se encerram os melhores Bildungsromans dedicados ao jovem Lincoln (o filme de Griffith e o de Ford) acertaram na mira sem o querer, ou dizer; é diante deste patriarca, talhado no alto-relevo do Direito Secular, que a América se prostrará.

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Disse acima do “gênio” do filme, que consiste no estratagema de travestir uma trajetória messiânica e profética numa crônica hebdomadária – a pequena Política. E disse mal. Como na katargein paulina, o gênio é de ordem dialética, vai e vem. Spielberg nos mostra, em um mesmo e outro diapasão, o Profeta por-vir e o rábula que nunca deixou de ser; a ave de rapina e o metódico almoxarife. E estas rasantes de Americana pelo mundo “de fora” do Congresso?, o tiro que não deu certo no bêbado camarada, as corridas sem fôlego, os tragos e os tráfegos esbaforidos – esta miscelânea de cartoon e épica que foi o talento americano, e que reencontramos em tantas e tão variados  registros, das rapsódias fordianas com Will Rogers às screwball comedies? E estes huis-clos solilóquios do ressentimento (Sally Field) com o Lirismo (a criança) que em nada deixam a dever aos Broken Lulabby e A Loja da Esquina, que carregam o rastro dolce amaro de McCarey e dos melodramas de Minnelli, em unção camerística? … e esta História, espúria e nossa, que insiste (no pasará) em macular os limiares sagrados do Congresso e da Casa patricarcal com os mortos despedaçados – cena magistral, com o escrutínio biomédico de seu campo e contracampos à la Painlevé, e o plano telescopiado do filho mais velho; e sobretudo por uma sequência que julgo ser a reinvenção da Pastoral americana mais comovente dos últimos anos: o passeio primaveral pelos campos semeados de cadáveres…

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Há de se ressaltar, com enfado especial, no entanto, o flerte com o academicismo a que cedem os rebarbativos concílios das sessões do tribunal – gênero mais do que consagrado, só que em iluminura, na história do cinema americano, pelo bico-de-pena, pela vinheta humorística e estudo de caráter sardônicos destes discípulos de Grosz e Karl Kraus que foram McCarey, Ford, Preminger e Capra em seus melhores momentos… Tribunal spielberguiano tanto mais enfadonho pela pompa Ora pro nobis da música de Williams… Mas há uma cena chave na qual estas duas personas – a místico-hagiográfica, a histórica – se revelam em um único Abre-te sésamo: Décor, figura (cabisbaixa e retesada, como o abutre crucificado com que Ford o representou à porta dos jovens acusados de assassinato), distância do cadre, coalescendo agora prudentemente entre proximidade e distância – até então, alternava-se entre o plano médio meditabundo e o plano geral agorafóbico das assembléias blábláblá. A Reconciliação que o personagem representara ao longo do filme encontra um equivalente espaço-temporal e um contracampo enfim adequado em matéria de interlocução – o da mulher geralmente era apenas uma das alternativas do jogo, reativa e melodramática; não por acaso, ela se “confessa” culpada para o marido em seu último passeio de carruagem.

A cena que cito é quando da espera pela contagem dos votos, junto aos dois telegrafistas, numa sala na semi-obscuridade. Lincoln divaga diante dos dois jovens sobre Euclides – sobre o conceito (experiência? credo?) de “Igualdade” em Euclides. “Vocês são engenheiros. Vocês devem conhecer os axiomas e noções de Euclides. A primeira noção de Euclides é esta?: Coisas que são iguais a outras coisas são iguais umas às outras”. (…) Isso é verdade porque sempre funcionou. Em seu livro, ele diz que isto é auto-evidente. Vejam, até num livro de 2000 anos de leis mecânicas isto é auto-evidente que as coisas são iguais (…) Começamos com a igualdade. Esta é a origem, não?”.

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Aqui, o credo místico e a proposição democrática mostram-se istmos de uma mesma experiência, comunitária e individual – e haveria diferença? Ser iguais é ser Uno, o democrata é o travesti do Messias… O credo místico consiste em integrar a todas as diferenças – acidentes, rastros e retalhos da História – ao Uno Primordial, a uma Origem… Qual o diagrama geométrico, o cálculo matemático ancestral que não liga estas duas pontas, que não vive desta morte, sublime embora?

Se a Ford e Griffhth bastou (bastou?) o intróito desta trajetória – a descrição da mocidade e do aprendizado de Lincoln -, no entanto sempre lhes foi necessário (indispensável, aliás) terminar seus filmes com o lentíssimo travelling na Estátua do Congresso. Ou antes: começá-los sempre já sob a égide da Estátua (da hagiografia), pois não só na Dialética, mas sobretudo na vida, o Fim Reencontra o Princípio… é preciso, aliás, exercer-se metodicamente uma genealogia sobre os insights dialéticos sofisticados encontrados pela mise en scène americana – e não só soviética, gráfico-construtivista – ao longo de seu percurso… O que lhe interessa aqui é animar esta Efígie sob os auspícios da qual a América cresceu e morreu… e voltou a renascer? É imprimir-lhe um caráter “romanesco” – e aí já me pergunto o que querem dizer as retomadas destes velhos novos containers de mise en scène e de significação – destas novas velhas centralidades, centrífugas e digressivas embora (mas todo o Ford não é sobre isto?); deste fausto teatral que também recicla as coxias (mas Busby Berkeley, Minnelli, só não fizeram isto? – sim, mas em stimmung espetacular e “valor de exposição”)…

Lincoln nos dá o homem, ou o que restou dele, enviesado entre tantas coxias; o cenário e o figurino de suas últimas (únicas?) batalhas – lembremo-nos da silhueta desenhada pelo chapéu em bico-abutre, no plano subjetivo do negro, última testemunha; mas nos nega o tiro fatal, o “Corta!” que um classicista jamais nos negaria… Spielberg cresceu? Ou, desde o petardo nauseabundado que me inspirou o cromo Cavalo de Guerra… mudei eu?

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