Fiat Tenebrae! A imago de Pandora

julho 16, 2013 em Em Pauta, Luiz Soares Júnior

Cura (1997), Kiyoshi Kurosawa

Cura (1997), Kiyoshi Kurosawa

O “lugar” do fantasma em Kiyoshi Kurosawa: Cura, Pulse e Retribution
por Luiz Soares Júnior

“A imagem fotogramática entregue a si mesma manifesta (…) também outra coisa que não quer dizer mais nada e que quase já não tem nome”

Sylvie Pierre.

“O Nachträglichkeit ( a posteriori, retrospectivamente) seria um modo de compreensão ‘retardada’ ou atribuição retroativa de significado sexual ou traumáticos a eventos ocorridos num passado distante no psiquismo do indivíduo. (…) Nele, pode-se dizer que  a memória é ‘reimpressa’ de acordo com a experiência posterior”.

Sigmund Freud e Josef Breuer, “Estudos sobre a histeria”.

“Kent: Is this the promised end?
Edgar: Or image of that horror?”

William Shakespeare, “King Lear”, Ato V.

1. Da estranha inquietude (Unheimlich): O horror nosso de cada dia.

Se, como nos ensina Freud, “quanto mais um conteúdo psíquico é recalcado, mais ele se torna presente”, o cinema de Kiyoshi Kurosawa é um ominoso reservatório de fantasmas impenitentes, renitentes, resistentes a qualquer forma de exorcismo. Mas esta ubíqua presença do fantasma não se limita à mônada do Ego; ela o dilacera com suas convulsas garras e se projeta em direção a instâncias sociais, culturais e finalmente cósmicas de proliferação epidêmica. Toda a esfera do Ser é afetada, todos os solilóquios da Idéia o reverberam; a pressuposição metafísica de um dualismo constitutivo entre dois princípios irredutíveis e quiçá irreconciliáveis – Eros e Thanatos, Apolo e Dionísios, Hybris e Areté – é finalmente ultrapassada  em um monismo niilista, que vê o verso e o reverso do Ser como instrumentos de um mesmo obscuro encarniçamento em eternizar o Mesmo e magnificar a Danação. Retribuição (2006), Cura (1997) e Pulse (2001) nos contam três histórias de fantasmas que percorrem trajetória semelhante, com repercuções progressiva e agonicamente mais amplas – do kammerspiel do Ego destroçado pela culpa e abandonado pela bênção de Mnemosyne (Memória) até o Apocalipse de uma geração que trocou a presença pelo espectro (o atual pelo virtual).

Noboru, o policial assombrado por um fantasma em Retribution; o detetive Kenichi às voltas com sua esposa mentalmente perturbada em Cura; e o grupo de jovens fascinados e finalmente tragados pelos reflexos do monitor na fábula moderne, trop moderne, Pulse: três experiências da entropia que ilustram a clareira que o fantasma escolhe para habitar – uma cratera no Ego, uma “quebra” no circuito do cotidiano, um déficit do “meu mundo”. O Mal é um Outro que encontra o indivíduo (ou grupo de) imunodeficiente demais para lhe resistir – para atualizar nele e por ele um ethos da regeneração -, e  então se instala senhorial na ferida narcísica, vampirizando-a, recitando o Tartuffe: “La maison est à moi; c’est à vous d’en sortir” (“A casa é minha, e vós é que deveis sair”).

Retribution (2006), Kioshi Kurosawa

Retribution (2006), Kioshi Kurosawa

Mas esta cisão do “Dentro” é inserida como rasura ou traço, infinitesimal. Unheimlich (Estranha inquietude): Freud, inspirado em Schelling  e pela boneca autômata de Hoffman, elaborou este conceito, com conotações ontológicas e fenomenológicas aterradoras. No unheimlich, percebe-se a estranha imbricação entre o casual e o extraordinário, o natural e o metafísico, o familiar e o Totalmente Outro. Uma imagem recalcada, que não deveria estar ali – e no entanto insiste  em voltar à consciência, em voltar a ser presente -, acaba por colorir dialeticamente os eventos mais anódinos com uma aura de alucinação e fantasmagoria vertiginosas: os faux-raccords em Kurosawa, contrapostos contra a neutralidade pastel de seu mundo “ordinário”, assinalam este território onde mexer uma colher na xícara de açúcar ou vasculhar uma poça d’água podem ser meios teletransportadores para dimensões inimagináveis, porque esquecidas ou diferidas: a tela do computador em Pulse, um raio de sol que brinca no fundo do campo em Sessão Espírita (2000), a repartição em Guarda do Subsolo (1992), o isqueiro do hipnotizador em Cura, a poça d’água em Retribuição. Tudo é chão e raso, in-significante; e não é que os objetos e situações sejam encarados como suportes simbólicos para significados alheios ou transcendentes; o unheimilich consiste justamente no contrário: considerar que o estranho reside na imanência (como imanência), que estranho é o mundo ser como é – ou antes: que o mundo seja.

O significativo a se reter é isto: esta ontológica dialética, mercurial e comezinha, entre um décor “qualquer” e um evento ou personagem escandalosamente Outros, que não deveriam estar ali – que não pertencem àquele mundo ou dimensão -, e no entanto estão, e nos são sinalizados através da profusão, observada com escrupuloso e andante tempo sedimentado, das atividades comuns. O sobrenatural aqui (quando se mostra sobre-Natura) não reside na intrusão de uma sobre-dimensão alien, mas na maioria dos casos pela emergência na camada presente da consciência de camadas de tempo ou Desejo que até então estiveram sepultadas (encobertas, veladas) sob o istmo radioso da faina minha e qualquer: a culpa, sopesada pela amnésia, pela mulher assassinada em Retribuição, mulher passada e enterrada que volta a se presentificar no fantasma do hospital de alienados; O Ressentimento e a culpa pelo suicídio do amigo, vítima de um isolamento radical, que volta a ser reencenado no tête-à-tête com o computador de cada adolescente em Pulse, estendendo a teia do Recalcado por sobre a órbita da superfície terrestre; a ânsia pelo assassinato da mulher, responsável por seu achatamento espiritual, no policial de Cura, ressentimento secreto de que o assassino hipnotizador se serve para estabelecer um circuito serial de pulsões de morte, dirigidas contra os entes queridos ou próximos dos outros personagens. O horror vem desta emergência diegética (no filme) do fora de campo da pulsão de Morte, que acaba por transformar as trajetórias em necessárias reconstitutições-enquètes analíticas e policiais, puzzles perversos em que o homem comum reconhece horrorizado no espelho a fímbria do lábio de um monstro.

Cura (1997), Kiyoshi Kurosawa

Cura (1997), Kiyoshi Kurosawa.

O que Kurosawa não cessa de nos sussurrar (sim, o ritmo ciciante e em surdina de seu cinema) é que não é que a realidade está sendo perturbada ou acossada por outros mundos ou seres – hipótese paranóica mais do que explorada pelo terror americano. A realidade é que é constitutivamente Outra – sob o Mesmo; nela pairam e pairarão possíveis mundos, encobertos agora pela desatenção ou alienação perceptiva do homem, demasiado ocupado consigo mesmo para ser alterado (alterizado) pela maravilhosa presença do Mundo, em seu horror e delícia. Negação radial do solipsismo: sendo o homem parte indissociável da realidade (e não um ente diante de, à parte de), é possível que estes trechos inomináveis do Real estejam sob o capacho de seu medo ou de sua culpa, sob ele (e fora do campo do filme, pelo menos até nos aparecerem como fantasma, do grego phantazein: tornar visível). Não Outro Mundo, mas o Outro que jaz sob o Mesmo: o possível. Seus fantasmas não padecem da anemia que um uso venal do digital vem impondo a um cinema infantilóide: são istmos de presença cinematográfica pura, feitos de espaço, tempo, corte, campo e contracampo. Nada além. O Nada é coisa deste mundo. Seus truques pouco diferem dos “maravilhamentos” do cinema primitivo, do seu bric-à-brac ontologicamente vigente e intensivo, no qual se  sentia ainda o cheiro de cola, palha, pano de cortina; em suma: de cinema , filho bastardo e  compósito da pintura, do teatro e do mafuá.

Se o horror é coisa deste mundo – e só não aparecera até então por alienação do homem nos escombros do cotidiano, por sua inadequação perceptiva de vidência do Real -, então, dia ou outro, ele (que é o Real) fatalmente vai voltar a se presentificar – e se as consequências serão geralmente  trágicas, é porque este não se colocara na posição e no tempo adequados à sua acolhida. Daí a importância do ponto de vista (posição) e do tempo – cadenciado e em stacatto – em Kurosawa, cineasta empenhado em desvelar estas experiências radicais da Alteridade que desde sempre esteve ali – era o ali -, mas sem que eu estivesse à altura de sua manifestação, que “me desse conta”. Há toda uma vindicação cosmológica aqui: o Mal consiste nesta incapacidade do homem de se abrir ao cosmo – de sair da copa e cozinha do ego -, e  finalmente situar-se em, e ver; constitui uma carência de ser (como em todo grande insight metafísico); aqui, carência de vidência: o sujeito não vê mais, preocupado como está consigo mesmo, o o que é, à sua volta ou sob o seu passado. E quão extraordinário, perturbador, aliciante, inebriante!, em suma: sublime é.

Mas o Sublime em seu cinema constitui não a epifania de um outro Estado de coisas ou Cosmo, Natureza enfim revelada a um ser de cultura; o Sublime é o Real visto como se deve ver, isto é: visto por um olho autômato e maquinal, que a tudo acolhe e integra sem ver a que, inclusive as réstias do imaginário e as agruras  do inconsciente, presentes  em detalhes “que nada significam”, em frestas e esbarrões:  unheimlich; um olho aberto à totalidade do Real, em seu horror de mormaço ou de tempestade. O olho da câmera é este deflagrador de Sublimes em cada esquina ou esbarrão – entre os interstícios do contracampo ou espraiando-se pela viração do plano seqüência – Loft (2005); Carisma (1999). Em Loft, aliás, uma operação paradigmática do poder “des-velador” deste olho onívoro: Kurosawa intersecta constantemente – criando crateras perceptivas no filme – um ponto de vista que não tem lugar ali. (A mesma estratégia em Carisma: uma inserção de planos-seqüências com câmera na mão que perverte a ode metafísica com a integração do slapstick e do cinéma verité). Ao “faux-raccordar” atabalhoada e subitamente, ele torna visível a “perspectiva do fantasma”, que passa a se mesclar, sub-reptícia e venenosamente, ao universo afetivo da história. Mas não só: o ponto de vista “disléxico” vira também, como afirma em entrevistas, uma espécie de documentário inserido na diegese, uma “filmagem da filmagem”; aqui, todas as potências e diapasões do Ser são chamados a comparecer diante da representação, revolvendo-a e distendendo-a (diferindo-a) para que ela abra espaço, maior e mais concêntrico, à intrusão do mundo, aríete à porta.

2. O Mal como Energeia: Potências do vampirismo.

Pulse (2001), Kiyoshi Kurosawa

Pulse (2001), Kiyoshi Kurosawa

O Mal aqui, – como no cinema de John Carpenter, aliás -,  não é uma substância (indivíduo vilão ou alien encarnado), mas uma força; uma energia. Daí seus poderes demoníacos de propagação, sua ubiqüidade. Ele não se localiza em ou no quê; constitui a textura do próprio Ser. Em Carpenter, este pessimismo ontológico – esta radical porosidade e coalescência do Nihil – se traduz como contaminação (inflexão política considerável); o seu “meio de cultura” fundamental é a encarnação, o travesti filogenético: o ser um Outro. O Mal possui um poder de anamorfose extraordinária; ele “se metamorfoseia” em tudo justamente por não ser nada de específico, de “ente”: carros, neblinas, máscaras (Halloweeen), ou, como na obra-prima Príncipe das Sombras, toda espécie de manifestações fenomenológicas – de um enxame de formigas a uma gangue de punks zumbis. (Se nos debruçássemos seriamente sobre uma genealogia aqui, o filme a ser assinalado como o Pater familias desta tendência do horror contemporâneo em ver o Mal como energia é o Testamento do Doutor Mabuse, de Fritz Lang).

Em Kurosawa, há a dimensão existencial desta política ontológica de extermínio disseminado: o Mal aparece sob a forma da transferência. O Mal pega. Em Cura, é pela mediação da hipnose, meio aquoso para a ciranda da aniquilação; em Retribuição, por intermédio do recalque: a história do policial, que sofrera uma amnésia após assassinar a  mulher, se torna o instrumento psicótico para um fantasma que anexa o ressentimento particular a um cultural e epocal, a uma culpa coletiva: fora esquecida e soterrada sob um hospital psiquiátrico, destruído para dar lugar ao porto da cidade; em Pulse, o caráter virtual da Internet já não necessita de nenhum pretexto diegético para revelar a Natureza de inextricável réseau (rede) do Mal, seu pertencimento a  todos e a ninguém. Basta existirmos para já e desde sempre sermos cúmplices deste Fatum – que nem por isso deixa de nos implicar em um ethos: assim como para o Id (que desconhece o Não e o Tempo), nada será esquecido.

Nada passou nem passará, tudo é presente – imagens fugidias da infâncias, a primeira bulinação e o último suspiro ressoarão pelos séculos e séculos. Não é necessário que tenhamos sido nós os agentes do horror, os delegados da aniquilação; tudo há de ser liquidado, de uma forma ou de outra, por intermédio de mim ou de todos. Kurosawa – um intérprete anti-expressionista de Dostoievski e um hermeneuta low profile da Gênesis – sabe burilar meios, mais ou menos perversos, de implicar o particular no universal, o solilóquio no comunicado oficial, o Eros na Polis. Como o horror é constitutivo do Ser, toda dicotomia é superficial, toda diferença, ociosa: particulares versus universais; hecatombes históricas contrapostas a psicopatas “du village”. De uma forma ou de outra, tudo há de se encontrar, tudo há de retomar a mesma fonte e desterrar-se na mesma foz de culpa e recriminação.

Cura (1997), Kiyoshi Kurosawa

Cura (1997), Kiyoshi Kurosawa

A lógica do fantasma se alimenta do ressentimento: em Cura, Retribuição e Cairo ele exige o preço do resgate, a expiação da sua dor – de quem  quer que seja, de qualquer modo. O caráter “de série” dos crimes mostra bem esta indiferenciação fantasmática, este “pertencer a todos e a ninguém” – o fato, reconhecido pelo Laplanche de “Fantasma das Origens”, de que, para um fantasma, nada passa, tudo permanece presente – mas não necessariamente na mesma ordem ou em qualquer ordem de significante:

“Um pai seduz uma filha, este seria o exemplo resumido de um fantasma de sedução. A marca característica do processo primário do inconsciente não é aqui a ausência de organização, como às vezes se afirma, mas a natureza particular desta estrutura: ela constitui um roteiro com múltiplas possibilidades, no qual nada permite afirmar que o sujeito encontraria seu lugar necessariamente no termo ‘filha’; ele pode se fixar igualmente no termo ‘pai’ ou mesmo no verbo ‘seduz'”. (“Origens do fantasma, fantasma das origens”).

Em Retribuição, não foi o policial Noboru (Kôju Yakusho) quem esqueceu encarcerada e quiçá matou a alienada; a sua vítima é outra, o seu Oblivium mais recente e tópico; em Cura, o desespero caseiro do policial, obrigado a “carregar” uma mulher paranóica, se refrata e multiplica, gerando uma epidemia de crimes que possuem a mesma estrutura: alguém que é levado pelo hipnotizador a presentificar um ressentimento secreto por ente querido ou próximo, e o destrói, atualizando o “desejo latente” do personagem principal em relação à mulher; em Pulse, o stimmung do garoto suicida acaba, tempos depois e por espaços múltiplos (lacerados e reconstituídos por um uso “suprassumido” do faux-raccord), por disseminar-se pela comunidade de todos os internautas. Ou seja: ao fantasma, indifere quem me matou ou quando, as circunstâncias diegético-narrativas do ser, sua situação diegética, digamos. O fantasma consiste numa necrose da temporalidade – a sabedoria popular mesmo o designa… Assombra uma casa quem nela foi morto, quem neste décor foi extinto. E nela permaneceu fixado, eternizando o momento do trauma supremo… Como ele implica num distúrbio da temporalidade – metamorfose da sincronia “evolutiva” do tempo em diacronia expiatória – , a sua relação com a  memória é terrivelmente problemática: quem ou onde já não importa; a ordem dos significantes inexiste, o espaço se condensou ou rarefez, a hierarquia dos valores foi revogada: todos devem pagar, onde e quando for. Quaisquer. E ad eternum…

3. A fresta de Pandora: Mysterium tremendum.

Retribution (2006), Kiyoshi Kurosawa

Retribution (2006), Kiyoshi Kurosawa

Erwin Panofsky, em seu livro clássico sobre Pandora, reconstitui-nos o mito de Hesíodo:

“Pandora era a imagem de uma bela mulher, feita de água e de terra por Prometeu, o pai de todos os homens; (…) esta imagem foi animada ou por Atenas ou pelo próprio Prometeu, com a ajuda do fogo que roubara do céu, e foi aperfeiçoada pelos outros deuses, que lhe trouxeram presentes. Como os presentes de Hermes e Afrodite foram prejudiciais (…), o produto final foi um ‘belo Mal’. (…) Trazida para a Terra, tornou-se mulher de Epimeteu, irmão de Prometeu, a despeito das advertências deste; (…)trouxe ao mundo o vício e  a doença ao abrir uma urna que continha todos os males, que se precipitaram a fugir para o céu, enquanto a Esperança permaneceu ao fundo”.

O pecado de Pandora – à imagem e semelhança do de Eva, com quem foi identificada por Tertuliano – foi desterrar o homem da sua unidade com o mundo, ao implicá-lo na maldição do conhecimento – ao “separá-lo de”: Exílio e expropriação ontológicos. O Paraíso perdido aqui tem sua primeira intrusão no mundo da Cultura – a intuição de fecunda posteridade de que, ao adquirir consciência, o homem perdeu plenitude e integridade de ser. “O comentador clássico Babrius interpreta o mito não como uma ilustração da fatuidade feminina, mas como um comentário sobre a trágica escolha humana entre conhecimento e felicidade; diz-nos ele: ‘Deus reuniu todos os bens numa caixa e selou-os, entregando-os aos homens; ma só homem, incapaz de restringir sua ânsia de conhecer, perguntou-se: ‘O que poderia haver aí dentro?’”

Os enquèteurs dos três filmes analisados aqui – os investigadores de polícia em Cura e Retribuição e os internautas que vasculham os labirintos do virtual em Pulse – estão em busca de, e acabam por ser encontrados. Ao errar e rondar em torno do mistério, glosam o irônico ditirambo de Nietzsche, quando escreve: “Se você olhar longamente para o abismo, o abismo também olha para dentro de você.” E quem ganhará esta partida, afinal?

Cure (1997), Kiyoshi Kurosawa

Cure (1997), Kiyoshi Kurosawa

Em Retribuição, Pulse e Cura, a imagem do fantasma está encapsulada em uma dobra ou invólucro, contida por; como no mito de Pandora, o fantasma é um “conteúdo contido por um continente”, uma potência de destruição protegido do mundo pelos limites de um invólucro. (Caberia aqui outra lembrança do Príncipe das Trevas de Carpenter, no qual a caixa conservada pelo padre desempenha o mesmo papel). O crime do homem consiste em insistir em conhecer o que está reservado (preservado) dentro da caixa, em devassá-lo – e assim “presentear o mundo com ele”, como os presentes malditos com que Hermes e Afrodite “adornaram” Pandora.

Em Cura, a caixa de Pandora é o corpo do jovem hipnotizador, veículo de propagação do horror. Ao matá-lo, o detetive Kenishi acaba por liberar o “conteúdo maléfico”, circunscrito – protegido por, limitado a, resguardado em – à presença catatônica de Kunio Mamiya (Masato Hagiwara). Até então, era necessário entrar em contato com o jovem hebefrênico, ser por ele aliciado, seduzido, para que Thanatos se desencadeasse, enfim achando um “fio-condutor” – o ressentimento secreto de cada personagem para com um conhecido próximo ou ser amado. Sem esta pré-condição afetiva e existencial, a que o gênio mediúnico do hipnotizador tinha acesso, não haveria como o Mal, “energia dissipada”, se difundir. Ao destruir o continente da entropia, Kenishi transforma um uso tópico e reativo do Mal em uma hecatombe ontológica que o leva a dominar a vasta circunferência do Ser. É admirável de se observar o gênio minimalista de Kurosawa – debruando a elipse com o “sal ático” do trágico – quando nos descreve, em planos breves e mortificados, a trajetória deste desastre (que já anuncia, em chave camerística, o apocalipse de Pulse): o travelling dianteiro de um corpo degolado; uma enfermeira que se volta; a faca casual depois do café…

Em Retribuição, a urna maléfica é a poça d’água. Traço mnemônico do fantasma: ali era afogada em água salobra pelos funcionários do hospício. Ali permaneceu: todos deverão morrer da mesma forma. Todos os meios de “reflexão” são, por analogia ao irisado espelho da água, istmos onde ele se incrusta: superfície ondulada, coruscante e buliçosa da água; superfícies envidraçadas, beijadas de sol e vibradas pela água do rio (a casa de Noboru, o píer que construíram no lugar do hospício). Quando Harue (Maname Konishe), a mulher fantasma do policial – a quem ele vê do fundo de um pretérito imperfeito que se projeta no Infinitivo da Memória que o filme tenta capturar -, se deixa acariciar pelos raios de sol filtrados pelas frestas na janela, sabemos que ela e a louca assassinada são uma só, que o “meu” fantasma pertence também à Cidade e ao cais. Este tête-à-tête entre reflexos presentes e passados -, entre o fantasma de ontem e o de hoje, o que “poderia ter sido” e o irrevogável – transforma Retribuição numa medusina e concertante quadrilha entre a rarefação e a densidade, a Aurora e o Crepúsculo (da alma). Ao final, o espelho que suga o policial para o mundo dos fantasmas  remete-nos ao espelho-cápsula multidimensional de Cocteau, portal e mestre de cerimônias do reino da Morte.

Pulse (2001), Kiyoshi Kurosawa

Pulse (2001), Kiyoshi Kurosawa

Em Pulse, a caixa de Pandora é, evidentemente, o monitor. A idéia do mal como contaminação encontra na Internet um meio de cultura (de contato, de coalescência) particularmente apto a narrar um processo entrópico como o manifesto em tantos de seus filmes. A metáfora aqui adquire uma contundência escatológica paradigmática: quem ligar o computador sabe-se destinado a um pacto faustiano com o Totalmente Outro. A imagem assume o seu poder expresso – Pandora era uma imagem – de designação e deflagração do interdito; a imagem, como bem nos revela a etimologia, é o fantasma, o que “nos aparece” – aquilo que jamais está plenamente presente, aquilo que permanece (?) ancorado no limbo, rarefeito e oscilante, entre o pretérito imperfeito e o futuro do subjuntivo; ela revela a incapacidade onto-fenomenológica destes adolescentes de constituírem um “si mesmo”, de habitarem um Eu. 0 é um filme no qual o status da visão é problematizado até as raias do delírio paranóico e da dispersão hebefrênica (forma de esquizofrenia que acomete sobretudo os jovens). O fantasma é aquilo que se dá a ver, mas de forma fugidia e fulminante- ele é temporal. (Dai a importância “metodológica” de seu estudo no cinema).

Se ele “nos aparece rapidamente”, suscita a necessidade de uma confirmação retrospectiva, um “voltar-se para”, um contracampo que nos reconduza ao campo, que me ratifique perante mim mesmo como senhor de minhas representações, como uma consciência na qual a verdade como adequatio (adequação da idéia à coisa) se elabora. Quando pintou seu célebre “Embaixadores”, Holbein escreveu que seu fito era que as pessoas que chegassem pelo museu à esquerda tivessem a  visão fugidia da caveira anamorfizada ao chão (em aparência, trata-se de um portrait de nobres; mas é um memento mori, com a  figura de uma caveira deformada por anamorfose, no chão da sala onde posam os embaixadores). Segundo ele, elas deveriam se voltar, intrigadas, olhar a pintura novamente, vasculhá-la. O seu status é flou, qualquer: alucinação? impressão? Não; o Outro sob o Mesmo, que as alegorias fúnebres da anamorfose des-figuram.

O fantasma no filme (no cinema) é este ente que sofreu uma anamorfose no tempo; é preciso que encontremos uma perspectiva adequada de visão para reconstituir a figura original, mas que leve em conta a relação campo e  contracampo, o devir de que esta se nutre. Daí a importância do faux-raccord numa “economia do espectral”.

O faux-raccord aqui curto-cirtuita esta confirmação a posteriori “de que vi um fantasma”, e ao fazê-lo desqualifica o ser do próprio vidente – fantasmagoriza-o também. Se aquele que viu já não está lá (é diferido pelo faux-raccord), como pode voltar-se e confirmar o que viu? Aquele que vê um fantasma está destinado a tornar-se um; mas o faux-raccord, a multiplicidade dos pontos de vista,  insinuam-nos antes esta hipótese: aquele que for visto por um fantasma “já não seria” um fantasma? Descartes questionava-se na aurora da modernidade filosófica: “Para que exista num ente finito como o homem a idéia de um Ser infinito como Deus, é preciso necessariamente que este Ser exista, visto que o homem não poderia encontrar em seu ser finito um lugar para o Infinito”. (“Du Dieu qui vient à l’idée”, “Méditations”).

Kurosawa atualiza perversamente esta inferência metafísica: um mundo que vislumbra presenças como espectros (o mundo da Internet), que não concebe os entes senão sob os modos do virtual e da potência; um mundo para o qual o atual, o tète-à-tète com o Outro consiste “apenas” na transposição para o present tense do pretérito imperfeito das redes sociais – não seria este um mundo “já fantasma, já morto e desaparecido” sob o influxo vertiginosamente Outro do circuito de IPs?

Mas há um espaço, estreito e fugidio, para uma possível reconciliação nestes filmes. São as viagens de carro ou ônibus; os “devires” materializados nestes veículos. Transparentes, envoltas em música diáfana, sob filtros elegíacos; um limbo, uma Distância. Sua visão me lembra a “promesse de bonheur” de que Proust se servia para falar da arte. “Apenas” uma promessa. Uma imagem sobre o horizonte, enfim apaziguado. Ao fim da viagem, teremos a aniquilação, o Totalmente Outro (mesmo que sob o capacho do “mais do mesmo”). Mas até lá…Se a infiltração de fantasmas por todos as canyons do Ser – sua concentração e mimético veneno – dá aos seus filmes uma pátina de unheimilich (de casual e comum, de qualquer), nestas viagens em que nos livramos do fantasma é que tudo parece embalsamar-se no perfume de sua Memória. Quando o fantasma desaparece, a imagem destila enfim a quintessência do monstro – uma doença do tempo, um Luto do Ser, uma Clareira de Morte na manhã que surge; mas esta dor e esta ausência não seriam aquilo sem o qual a vida “nada é” senão a sequência, monótona e monocromática, de percepções e sanções in-significantes? O leito do fantasma também é o lugar da epifania e do sagrado no mundo.

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