Eu e Você (Io e Te), de Bernardo Bertolucci (Itália, 2012)

dezembro 17, 2013 em Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

ioete

Nós, os outros
por Luiz Soares Júnior

Quem não viveu os tempos anteriores a 1789 não sabe o que significa o prazer de viver”

Talleyrand em Mémoires pour servir à l’histoire de mon temps, de François Guizot.

(…) Mas as metáforas populares (ça baigne) dizem também o espanto de não ir ao fundo, e, apesar da água engolida, a euforia resignada de se manter, graças a alguns movimentos limitados, à tona da água, longe das praias e das pedras da calçada dos anos setenta”.

Serge Daney, O cinema e a memória da água.

Romances de formação (Bildungsroman) sempre infiltraram a história do cinema com este olhar – entre perverso e delicado, rancoroso e secreto – que o adolescente devolve ao mundo; neles, este olhar ganhou uma ressonância libidinal, modulou-se num diapasão perverso, celebrou-se num spleen decadentista: O Jovem Torless (Schlöndorff, 1966), Alemanha Ano Zero (Rossellini, 1948), De Punhos Cerrados (Bellocchio, 1965), Antes da Revolução (Bertolucci, 1964), Os Incompreendidos (Truffaut, 1959). O Bildunsgroman também cristalizou a detecção de atmosferas espirituais e sociais gangrenadas (Jovem Torless; De Punhos Cerrados; Alemanha Ano Zero); foi um sismógrafo moral privilegiado, um conto de fadas para adultos desencantados, pós-edipianos (Pele de Asno, de Jacques Demy, 1970; Édipo Rei, Pasolini, 1967).

E o que está em jogo aqui? A inervação do espaço e pelo tempo por uma sensibilidade privilegiada – a captura do ar, da luz e dos corpos por um container energético que sofre e reage, de forma particularmente agônica, ao impacto dos elementos. Bertolucci, especializado até então em Bildungsromans com o suporte da História (Antes da Revolução) ou do mito (La Luna, 1979), aqui regride e finca o pé na cave (uterina) de um sótão, no limiar de uma subjetividade que em nada parece ceder aos seus próprios limites. Um partis pris expressionista como princípio dá as cartas; mas não nos basta isto. É preciso sugerir uma reconciliação, aspirar a um Outro – o Bildungsroman exige o mundo como o protótipo de uma Diferença, à sombra e com o auxílio da qual a Identidade do personagem vai se revelando (des-velando). Cá e lá, ida e volta. Uma experiência não se revela a si mesma (e eis o fito do percurso: uma auto-revelação) senão com o concurso, mais ou menos tenebroso, traumático ou delirante (alternativa barroca) do Outro – Mundo, Feminino ou Natureza.

ioete1

Lorenzo (Jacopo Olmo Antinori), como o diretor, é um autista, e ao final do filme não deixa o seu cerco de afasia e imobilidade (as tomadas expressionistas em que o som do walkman escutado pelo garoto se tornam música diegética); o close fotográfico com que o filme se encerra, pastiche de Os Incomprendidos, não nos oferece o instantâneo de uma experiência que, apesar do filme e contra o filme (para além e aquém do filme), continua a perseguir-se; ele é um artifício fajuto, uma mediação retórica esvaziada que tenta eternizar aquele momento de passagem “como um momento de passagem”. A chegada de Olívia (Tea Falco), a meia-irmã drogada, ao universo concentracionista de Lorenzo (sua cave uterina, como disse acima), em nada serve para trabalhar uma experiência – para conduzir o sujeito para fora de si e, no horizonte desta distância, finalmente tornar-se um si-mesmo: os “escândalos ontológicos”, as excrescências do Desejo e os anátemas do Caos, representados pela droga, pela ópera e pelo incesto em La Luna, aqui apenas roçam a epiderme do filme, excitando-nos com aquela imprudência pérfida e interesseira que Adorno denunciou nos filmes do mainstream hollywoodiano:

A indústria cultural não cessa de lograr seus consumidores quanto àquilo que está continuamente a lhes prometer. A promissória sobre o prazer, emitida pelo enredo e pela encenação, é prorrogada indefinidamente: maldosamente, a promessa a que afinal se reduz o espetáculo significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o convidado deve se contentar com a leitura do cardápio. Ao desejo, excitado por nomes e imagens cheias de brilho, o que enfim se serve é o simples encômio do quotidiano cinzento ao qual ele queria escapar. (…) A indústria cultural não sublima, mas reprime. Expondo repetidamente o objeto do desejo, o busto no suéter e o torso nu do herói esportivo, ela apenas excita o prazer preliminar não sublimado que o hábito da renúncia há muito mutilou e reduziu ao masoquismo”.

ioete3

Io e Te seria assim a versão concentracionista, brochante e filistéia de La Luna – deste tortuoso devaneio sobre a Mãe, as anfractuosidades do Desejo e a Perda (do Si-mesmo) que a idade adulta nos lega como luto. No filme de 1982, um adolescente precisava aprofundar a monstruosidade inerente à filiação – enlear-se e macular-se nas provas do incesto, da homossexualidade e do delírio – para reemergir à superfície renovado pelo face a face com a Górgona, o embate corpo a corpo com o Minotauro. Um pai o esperava à saída do labirinto – um futuro se sagrava ali, um Destino se consumava. Mistificador (La Diva, os travellings vertiginosos, embriagados pela música de Verdi), demagogo, capitoso e histriônico, La Luna é o filme em que as obsessões de Bertolucci encontram, na personagem da mãe cantora de ópera, um cadinho envenenado para a sua concentração magnífica, o seu Angst em estado puro. Io e Te evoca uma démarche fantasmagórica semelhante; mas o que em La Luna era amplidão, desvario e transfiguração, aqui se resolve na mediocridade de um itinerário balizado por um huis clos regressivo, o combate entre duas personagens anódinos e insignificantes, uma construção dramática convencional; os travelings precisos e aerodiâmicos, o ritornello de planos que estruturam o seu fechamento (o plano exterior do sótão onde os dois se abrigaram; o close onívoro nos olhos do adolescente demiurgo, a quem nada escapa do mundinho que cabe na palma de sua mão) revelam-nos um filme excessivamente controlado e refletido – à imagem e semelhança do domínio maníaco (a contagem dos refrigerantes em lata; o giro ao redor da sala) que o personagem tenta estabelecer sobre o mundo.

Bertolucci parece não ter entendido uma velha lição grega: a diferença entre Techné (tradução livre: Técnica, Artesanato) e Poiésis (Poesia). À arte é indispensável o domínio de seus meios, uma base artesanal sólida, sobre a qual assentar sua construção “invisível”. Uma base. A partir disto, a diferença é irredutível: o artista deve “servir-se” da técnica (Welles: “este vil instrumento tem de ser violentado; o que importa é a poesia”), usá-la como suporte para transcendência. Io e Te fetichiza os planos bem enquadrados e os travelings trânsfugas, assim como as performances escatológicas daquele que não se sabe visto (o vômito na roupa) e a obscenidade do olhar daquele que tudo deseja ver; mas cinema é uma arena onde olhar e ser visto descrevem movimentos inversamente proporcionais, delineando uma curva sinuosa que parece separá-los para mais adiante reafirmarem sua consangüinidade numa gloriosa perpendicular. Em Io e Te, estamos num panóptico, possivelmente o modelo de representação mais obsceno que jamais existiu: aquela onde só existe o olhar altaneiro e aglutinador daquele que vê, do diretor que transforma cada plano e toda ação do ator em elos de uma cadeia demonstrativa; aqui também Bertolucci parece estar emulando a tendência do adolescente a ver o mundo como um meio de cultura laboratorial (as formigas que observa, o rosto da mãe durante o sono escrutinado por Olívia). Bertolucci insiste em permanecer na órbita daquele punheteiro-mor- daquele que jamais crescerá, pelo menos enquanto não aprender que viver é ver e ser visto, é ser sujeito e objeto em um mesmo e outro movimento.

ioete2

Sylvie Pierre escreveu um curto e lapidar texto sobre Le Père Noel a les Yeux Bleus (1967), de Jean Eustache: “Presente já em Les Mauvaises Fréquentations, o primeiro filme de Eustache, esta complacência para com o irrisório parece ser a mais evidente constante de sua visão. Mas daí a lhe atribuir a função de uma definição de tonalidade consistiria em um mal-entendido sobre o propósito de Eustache. Para que a imersão no irrisório possa desempenhar este papel, era preciso que ela fosse a chave do filme – a armadura da chave, como se diz em música -, seria preciso que Eustache a promovesse, à maneira de um Fellini por exemplo, no essencial de uma mensagem. Não há nada disso. Filme sobre a derrisão, a complacência para com o derrisório (que arrisca-se a ser qualificado de filme derrisório e complacente). O ‘Papai Noel’ é um filme do orgulho”. Io e Te parece aspirar ao telos contrário do filme de Eustache; é um filme que permanece ainda no limiar expressionista da indistinção entre a visão do personagem e do diretor – um filme complacente e narcisista sobre a complacência de um adolescente para com seu próprio narcisismo. O credo místico de Olívia, expresso durante um papo com Lorenzo, parece esposar a “inocente” transparência a que o filme se dedica. “É como se deixássemos de ser você e eu e nos tornássemos novamente um, como no começo. Você conhece o budismo?”

Io e Te é um filme “que se quer” inocente e inofensivo – em suma, um filme criminoso, pois se recusa a crescer; numa época que há muito perdeu a inocência, aliciada pela exploração e espoliada pelo consumo, sofrer da síndrome de Peter Pan é ser cúmplice do Mal – é regredir e regredir em direção ao ocaso da palavra e do Desejo, as armas que nos restaram. 

Share Button