Edifício Billy Wilder

julho 16, 2013 em Em Campo, Raul Arthuso

Avanti! (1972), Billy Wilder

Avanti! (1972), Billy Wilder

O cineasta dos roteiristas
por Raul Arthuso

Em cinema, adoramos rotular os diretores como “o cineasta da luz”, “o cineasta das mulheres”, “o cineasta da violência”, assim por diante. No caso de Billy Wilder, poderia, sem medo, chamá-lo de “o cineasta dos roteiristas”. Isso soa, a princípio, como ofensa, para uma arte cuja história, principalmente a partir do cinema moderno, foi escrita pelos autores, que, no senso comum, são os diretores. Mas quem além de Billy Wilder ganhou tamanha reputação a ponto de tornar-se o modelo acabado de um grande roteirista, ao mesmo tempo que tornava-se um dos grandes da comédia clássica? Quem além de Wilder vem à mente quando se define um diretor como “aquele que traduz o roteiro em imagens”? Tirando a cena da saia de Marylin Monroe alçando vôo em O Pecado Mora ao Lado (1955), o plano final da loucura de Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses (1950) e algumas porções de gags visuais, o mais marcante no cinema de Billy Wilder, aquilo que levamos para casa após a sessão e fazemos nosso souvenir, a roupa nova, são seus diálogos, as cenas, a estrutura da história como um todo. Isso requer do realizador um alto grau de precisão, de tempo cômico, noção de ritmo e movimentação, o que por si só conta admiravelmente a favor do reconhecimento de Wilder como um bom diretor, para além do roteirista por excelência.

O Pecado Mora ao Lado (1955), Billy Wilder

O Pecado Mora ao Lado (1955), Billy Wilder

Sua construção dramática é tão perfeita e encaixada que seu cinema parece tê-la como princípio e fim. Wilder filma, em essência, seu edifício, sua obra arquitetônica engendrada nas minúcias da estrutura do drama, da fonética das palavras, dos blocos de ação. Assim, se falamos em “o cineasta das mulheres” porque Dietrich brilha nos filmes de determinado diretor como em nenhum outro, ou “o cineasta da violência” pelo papel crucial desempenhado na obra de tal realizador, não parece equívoco nem demérito chamar Wilder de o diretor da estrutura dramática, da cena, do diálogo, das grandes punch lines. Se não foi visualmente inventivo, foi um bom cineasta de ritmo, um dos mais eficientes, sem significar com isso acomodação ou academicismo.

E mais ainda a seu favor: Wilder parece o ancestral de uma corrente contemporânea de cineastas que criam um universo tão particular e fechado que parte importante de seus esforços está em mantê-lo de pé. Cineastas como os Irmãos Coen e Quentin Tarantino herdaram de Wilder o gosto por universos muito bem desenhados, particularmente medidos, mas, diferente de Hitchcock, fantasiados com loucuras, detalhes picarescos e gags aparentemente fora do controle. Se o mundo de Hitchcock é um trem avançando cada vez mais rápido contra o muro, o de Wilder – levado ao exagero pós-moderno por seus herdeiros – está mais para um carrossel, um ferrorama: o quiproquó inicial gera a base para gags que re-alimentam esse quiproquó. Seus melhores filmes – Quanto Mais Quente Melhor (1959), Se Meu Apartamento Falasse (1960) – tendem à irresolução, uma sensação não propriamente de um “fim do mundo”, mas de deixá-lo a partir de então para o fora de campo, como a manter a estrutura num eterno devir.

Quanto Mais Quente Melhor (1959), Billy Wilder

Quanto Mais Quente Melhor (1959), Billy Wilder

Essa construção é claramente mais bem fundamentada quando Wilder trabalha com trios. Jean Luc-Godard certa vez afirmou que todo grande humorista é um geômetra. Os melhores momentos de Billy Wilder acontecem no cômico – e não seriam Crepúsculo dos Deuses e sua “refilmagem” Fedora (1978) dois exemplares de humor negro? – em triângulo dramático cujo estopim é o disfarce, o fingimento, o velado. Seus filmes e o ritmo de seu humor partem sempre de algo escondido que, quando revelado, precisa de reparação, num triângulo de trocas entre o malandro que forja um parceiro e faz alguém de vítima. Quando tomamos O Pecado Mora ao Lado ou Um Amor na Tarde (1957), quase inteiramente de casal, a narrativa manca, algo falta no espaço e a encenação de Wilder perde um eixo evidente, arremedado eventualmente por um terceiro personagem que vem “salvar o plano”: em O Pecado Mora Ao Lado, é o zelador buscando forçosamente invadir a cena; em Um Amor na Tarde, é Maurice Chevallier ou a banda de ciganos onipresente no quarto de hotel de Gary Cooper. Em Farrapo Humano (1945) e Águia Solitária (1957), nos quais o protagonista está sozinho e este tipo de triângulo nunca acontece, o ritmo é frouxo e alongado, diferente do espírito de seus melhores filmes, que correm a galope cada vez mais acelerado.

Seu lado brilhante é mais evidente com este triângulo da malandragem, especialmente quando seus vértices trocam de lugar ao longo do filme. No exemplo mais bem acabado e habilidoso desta marca de Wilder, Se Meu Apartamento Falasse, Jack Lemmon é o parceiro de crime extraconjugal do presidente da empresa onde trabalha e Shirley MacLaine é a vítima, a garota amante que sonha ser esposa, por quem Lemmon depois se apaixona. As trocas no triângulo são de várias naturezas: em dado momento, Lemmon passa a malandro, quando ganha a promoção, depois vira vítima quando apaixona-se. Fred MacMurray, o presidente da empresa, passa de malandro safado a ficar na mão no fim do filme quando, após o beijo automático de ano novo, é deixado por MacLaine que, por sua vez, inverte o papel no amor com Lemmon no último instante. Não apenas há um triângulo amoroso no qual as personagens querem trocar de lugar – a amante quer ser esposa; o escrivão quer ser executivo; o presidente quer ser o galã – como há a troca de lugar físico que reflete o status social, manifestando-se no espaço do trabalho – um triângulo com a sala da presidência como vértice superior, o escritório de Lemmon e o elevador onde trabalha MacLaine como base. É a troca de espaços físicos, de lugar social e de relacionamentos amorosos que movimenta os disfarces, os enganos, os sentimentos e o humor irônico-melancólico de Wilder. A mise en scène da troca, na qual comércio, malandragem e relações sexuais se incluem, é o ideal do cinema de Wilder.

Daí talvez o afamado cinismo do cineasta. Suas personagens querem, essencialmente, dinheiro, fama, status social, um cargo importante, o gozo… enfim, motivações “mesquinhas” dentro de uma moral burguesa que vive no seio das relações de trocas, mas estabelece um código de conduta em que tomá-las como fim em si é pecado. Enquanto Capra encena certo sentimento do homem diante dessa moral, agenciando alguns predicados como correção, simplicidade, amor, Wilder se interessa pela razão prática jogada debaixo do tapete por essa moral. Seus filmes são povoados, no centro, pela plebe, mão-de-obra não-especializada, prostitutas, mercenários, diletantes e roteiristas – curiosamente, diretores de cinema estão em outra alçada – personagens cujo trabalho pode ser comprado por boa quantia pelos patrões, empresários aproveitadores, ricaços safados e espertos de ocasião que os rodeiam. Se existe uma possibilidade de sentimentalismo, ela é rapidamente guilhotinada por uma tirada de efeito, como as famosas punch lines de Quanto Mais Quente Melhor (“Nobody’s perfect”), Se Meu Apartamento Falasse (“Shut up and deal”) e Beija-me, Idiota (“Kiss me, stupid!”). Uma declaração de amor nunca se concretiza com uma resposta no mesmo tom – suas tiradas cínicas ao “eu te amo” sincero são uma chamada aos “pés no chão”. Wilder é um materialista incorrigével.

A guerra dos sexos

Cameron Crowe: Você acha que merece o estigma de “misógino”?
Billy Wilder: [academicamente] Eu não faço a menor idéia se eu sou ou não.
Audrey Wilder: [da outra sala]: Sim!
BW: Não sou! Eu não acho!
AW: Ele é!
BW: Ok, então, eu sou.” 

Cameron Crowe, “Conversations with Billy Wilder”.

Diferentemente de Cuckor ou mesmo de seu mestre confesso Lubitsch, Billy Wilder nunca se interessou profundamente sobre a questão dos gêneros e a guerra dos sexos, a complexa relação entre eles e a discussão dos papéis de homens e mulheres na sociedade. Se, por um lado, sua visão materialista carrega seus filmes de uma ironia bastante lúcida, por outro torna a busca de mulheres e homens pelo sucesso a qualquer preço algo bastante funcional. Com a diferença de que os homens em seus filmes buscam vários tipos de sucesso – profissional, financeiro, de status social, sentimental, sexual – enquanto as mulheres só querem amor e/ou dinheiro.

Os homens de Wilder são máquinas sexuais em busca do gozo e a diferenciação dos tipos de homens passa sempre entre aqueles que o conseguem ou não. Muitas vezes, esse gozo é perverso – principalmente no caso das ambiguidades do aproveitador, como William Holden em Sabrina (1954) e Inferno Nº 17 (1953); mesmo em Crepúsculo dos Deuses, sua morte não é senão uma espécie de gozo do defunto-autor completando sua mais importante narrativa. Em outras, o gozo é conquistar a garota e corrigir seu pecado original – A Mundana (1948), O Amor na Tarde, Humphrey Bogart em Sabrina.

Sabrina (1954), Billy Wilder

Sabrina (1954), Billy Wilder

Contudo, é só com Jack Lemmon que o homem encontra certa complexidade, muito devido ao próprio ator, figura chave no cinema de Wilder. Lemmon é um everyman: não tem a pinta de galã para ser puramente um conquistador, mas não é propriamente um loser. Há uma dignidade em sua persona da qual os protagonistas de Wilder tirarão proveito para atingir uma nova camada que Bogart, Gary Cooper e Tony Curtis não faziam. O cinema de Wilder após Jack Lemmon como braço direito ganha em significados da alma masculina apenas por sua presença em cena, seja fazendo um trabalhador comum em Se Meu Apartamento Falasse, um jornalista viciado em notícias sangrentas em A Primeira Página (1974) ou um marido suicida em Amigos, Amigos, Negócios à Parte (1981). Não mais o homem é um bloco sólido em busca do gozo ou o marido traído ou o perdedor que não pega ninguém; com Lemmon, por procuração, o macho ganha certa sensibilidade e opacidade.

As mulheres, por sua vez, cumprem dois papéis básicos: a esposa e a puta. Em grandes momentos, como em Se Meu Apartamento Falasse e Avanti! (1972), Wilder vai trabalhar no limite entre os dois papéis. Em Se Meu Apartamento Falasse, Fred MacMurray, para se livrar rapidamente do constrangimento de não ter comprado presente de Natal para sua amante Shirley MacLaine, dá uma nota de cem dólares à mulher logo após o encontro amoroso. Essa nota deixa de ser apenas um presente mal-colocado, demarcando a fronteira entre o romance proibido e a prostituição. Em Beija-me, Idiota (1964), a fronteira é mais evidente, pois é espacial: a esposa vai viver uma noite de puta enquanto a puta assume o lugar da esposa em sua casa. Nada, porém, vai além da combinação esposa-puta, e parte da questão masculina gira entre ficar com a mulher que é “pra casar” em oposição às outras – estopim de A Primeira Página.

A Primeira Página (1974), Billy Wilder

A Primeira Página (1974), Billy Wilder

Seria então Billy Wilder um misógino? Ou esse traço é apenas o calcanhar de Aquiles do diretor, denunciando seu lugar no tempo e na História do cinema? O principal é aventar a possibilidade de, ao contrário dos homens, Wilder não ter seu “Jack Lemmon de saias”. Marylin Monroe é um furacão sexual, Kim Novak foi sexualizada ao extremo em Beija-me, Idiota, Audrey Hepburn ficou a bobinha apaixonada. O mais próximo de repetir no feminino a presença de tela de Jack Lemmon foi com Shirley MacLaine, conseguindo graça e doçura sem cair na mera inocência ou no sentimentalismo do clichê romântico em Se Meu Apartamento Falasse; e um lado sexual sem perder a ternura em Irma La Douce (1963).

Curiosamente, quem paga o pato nessa guerra dos sexos mal-resolvida é o homossexual, o motivo mais recorrente de piadas de seus filmes – mesmo em Quanto Mais Quente Melhor, o bufão da história é o personagem apaixonado por Jack Lemmon travestido. E o desastre de A Vida Íntima de Sherlock Holmes (1970) não parece vir de outro lugar senão de Wilder não ter muito tato em deixar no ar a possível homossexualidade do protagonista.

Uma exceção que confirma a regra: Avanti!

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Avanti! é o único filme de Wilder em que a construção narrativa vai se desfazendo quanto mais se coloca, como areia escapando por entre os dedos enquanto a mão se fecha. São várias pontas soltas que, em vez de demonstrar os furos do roteiro, abrem possibilidades ao imprevisto, a certo destempero emocional e a piadas que são tão laterais à trama, mas lhe dão força como descrição colorida do cotidiano da Itália, que não é exagero ver o filme como uma viagem fora de rota.

Sobressai o clima de melancolia e certo estado de vigília no trato do relacionamento amoroso, uma reminiscência de outro que parece onírica e diabólica, mas que, como sonho, é uma possessão. Avanti! é também a obra mais sentimental do cineasta. Se em geral a técnica do humor de Wilder é irônica-melancólica, há aqui o reverso da moeda. Jack Lemmon e Juliet Mills estampam o amargor de existirem, algo bastante alheio ao universo de Wilder onde as pessoas apenas vivem suas vidas: “Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo / mas estou cheio de escravos / minhas lembranças escorrem / e o corpo transige / na confluência do amor”.

Talvez por esse roteiro menos amarrado, as locações modeladas pelas pegadas da História da Itália e este peso trágico dos atores, Avanti! é o grande feito de Billy Wilder como diretor. Existe uma imprevisibilidade nas escolhas de planos – há, especialmente, um plano do casal após a primeira transa, deitados na cama, filmado pelo espelho na parede, tão expressivo e barroco que está mais para Welles que para Wilder – pouco habituais em seu cinema. O tom parece ditado menos por um sentido de “eficiência” dos planos para manutenção da estrutura dramática da cena, e mais um trabalho com o tempo e o lugar do plano, como na bela cena do amanhecer com os dois nus conversando numa rocha na beira da água, ou o achado no necrotério, que, longe de ser apenas uma cena mórbida, transita de certo constrangimento inicial a uma das gags mais interessantes de todo a obra de Wilder, e disto para uma profunda tristeza sincera, contrariando a tendência cínica do cineasta quanto ao sentimentalismo. Avanti! é a obra de Wilder cuja fluidez é a mais imprevista e ao mesmo tempo mais sentida, não percebida, como em geral acontece em seu cinema.

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A cena final se distancia da interrupção da concretização do amor corrente do cinema de Wilder apenas pela interdição do “eu te amo” mútuo. Aqui, Wilder nega ao casal terminarem junto – um gesto de confissão íntima antes da despedida derradeira marca uma possibilidade de futuro e a troca de sorrisos é o “eu te amo” que Billy Wilder sempre evitou. Ancestral da emblemática cena final de Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola, o tom “into the blues” de Avanti! que essa cena sintetiza antecipa em alguns anos a tendência de parte do cinema americano independente nos anos 1990 de apostar na melancolia e no fardo trágico de existir no tratamento do amor, do desejo e da felicidade.

Por sua vez, Avanti! é tão alienígena na filmografia de Billy Wilder – e saber que o cineasta não apreciava em nada o filme indica o porquê de suas obras seguintes não guardarem nenhum traço advindo dele – que acaba por confirmar como características da obra do diretor, por exclusão, muitas das coisas ausentes aqui.

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