De Palma, de Noah Baumbach e Jake Paltrow (EUA, 2015)

janeiro 25, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

* Cobertura do 53o New York Film Festival

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Histórias de guerra
por Fábio Andrade

De Palma, de Noah Baumbach e Jake Paltrow, é bastante direto em sua abordagem: por mais de 100 minutos, o cineasta Brian de Palma conta sobre toda a sua carreira por um único (muito mal escolhido) ângulo de câmera que de tempos em tempos é reenquadrado na pós-produção para criar variação visual e efeito textual (Baumbach e Paltrow certamente são bons ouvintes, mas esperar deles o rigor de um filme do Wang Bing seria delírio). A fala incessante do diretor é apenas interrompida por ocasionais sequências de montage com trechos do filme que ele calha de estar rememorando naquele momento, adicionando uma veia ilustrativa e pedagógica ao projeto.

O retrato do artista feito por Baumbach e Paltrow permite que nos aproximemos de De Palma não exatamente como amigos, como os diretores parecem ser, mas como ouvintes, como pupilos, como alunos em uma aula que, como muitas outras nas escolas de cinema, é composta em grande parte de histórias de guerra, de rememorações particulares que podem ou não trazer uma pepita de sabedoria sob as muitas camadas de auto-mitologia. No melhor dos casos, um aluno com algum senso de imaginação conseguirá encontrar algo que possa ser aplicado à vida contemporânea – e se essas pérolas de experiência não são encontradas, os estudantes ao menos tem a garantia de entretenimento cinéfilo de qualidade, mesmo que severamente superfaturado. De Palma pode ser desmontado por diversas razões, mas é difícil acusá-lo de falsidade ideológica: a prioridade aqui é sentar e escutar ao que o homem tem a dizer, o que por vezes gera a impressão de que há ouro a ser encontrado em seus contos, e por outras mantém o assento quente o suficiente com o tipo de compaixão que é fruto de respeito e admiração, extraindo prazer no tom familiar da voz quando não há muito a se tirar do sentido real das palavras.

Que a afirmação acima carregue o peso que lhe cabe: é difícil não se ver minimamente seduzido pela simplicidade do dispositivo do filme, e não há razão para evitar tal indulgência cinefílica. Se De Palma jamais encontrar seu espaço em museus – como não deveria ou deverá encontrar – haverá sempre vaga para ele em um prateleira de biblioteca, onde outros tomos tão focados na posteridade quanto este acumulam poeira, esperando que um par de olhos ou mãos seja ativado por uma curiosidade relacional – qual é a aparência dele hoje? Como é o som de sua voz? Como ele constrói uma frase quando está entre amigos? A forma de organizar sua fala remete à forma como estrutura uma cena?

Afinal, Brian de Palma é um artista brilhante que nunca evitou controvérsia, e este traço de personalidade por si só tende a render personagens interessantes. Em Movie Mutations (2003), livro organizado por Jonathan Rosenbaum e Adrian Martin, ele é o grande foco de discordância nas cartas trocadas entre críticos norte-americanos e seus colegas do velho continente quando se fala em definir os cânones de uma nova cinefilia: enquanto Kent Jones e o próprio Rosenbaum parecem pouco impressionados com o trabalho do diretor, Martin e a grande crítica Nicole Brenez advogavam (com razão) que a abordagem esquemática do diretor à construção de cena e ao uso de ponto de vista permitiam ao cinema explorar novas profundidades na experiência humana. A despeito da relativa reavaliação de sua obra em casa (processo que, ironicamente, coincide com o momento em que ele passa a produzir seus filmes com dinheiro francês), a escolha do retratado aqui parece conectada a camadas mais profundas: nunca exatamente o último cavalo da corrida, De Palma é tampouco um invicto da indústria, como alguns de seus colegas de geração (Scorsese e Spielberg, por exemplo, gerariam filmes bastante diferentes, mesmo se filmados exatamente da mesma maneira).

Em Fevereiro de 2014, dedicamos uma pauta aqui na Cinética a cineastas que, outrora donos de certo prestígio na indústria que ajudaram a redefinir, agora dependiam de modos alternativos de produção para continuar fazendo filmes menores, mais pessoais e em nada menos impressionantes. “Faço filmes como vocês, hoje”, diz Brian de Palma aos diretores em dado momento do filme, sobre sua redescoberta independência. Para Baumbach e Paltrow, escolher fazer um documentário sobre ele é certamente fruto de uma amizade improvável, mas o gesto também carrega, mesmo que não intencionalmente, um desejo genealógico neste grifo de dois “novos indies” a um monumento de um finado ethos industrial que eles podem querer carregar em suas respectivas carreiras. Mais do que um esteta sofisticado, Brian de Palma é também a incorporação de uma história da Hollywood moderna, do desafio de se escalar o mais alto dos muros em torno das propriedades cinematográficas (que calhavam de estar esfarelando na mesma época), saltando das garagens independentes aos grandes estúdios, aos louros e ao desespero de ser devorado vivo pelas inconstantes marés de prêmios, sucessos improváveis, grandes fracassos de bilheteria e um reconhecimento crítico tardio pouco mais que suficiente para lhe garantir uma vaga no panteão de autores contemporâneo. Ele viu e viveu de tudo, e um artista nesta posição costuma ter histórias a contar.

É aí que as coisas começam a ranger nesta conversa de uma única poltrona. Quando escolhemos escrever sobre o crepúsculo de uma certa Hollywood aqui na Cinética, De Palma era não só parte deste grupo mais ou menos arbitrário de diretores que escolhemos (junto a Paul Schrader, John Carpenter, Wes Craven, Abel Ferrara, Joe Dante e Monte Hellman), mas o verdadeiro coração de nosso desespero: seu filme mais recente, Passion (2012), à época tinha sido totalmente ignorado tanto por distribuidores quanto por festivais de cinema do país, enquanto paixonites modernas como Frances Ha (2012), do próprio Noah Baumbach, faziam sucesso estrondoso nos cinemas, recebido por público e jovens críticos e cinéfilos com entusiasmo desproporcional. Forçar uma ligação entre esses dois dados talvez seja imprudente, mas as páginas no gosto comum há muito já foram viradas e a rede de segurança dos grandes indies não se arma por conta própria. Embora exista inegável força na reação apaixonada de De Palma à maneira como os blockbusters de hoje são pré-feitos, comparados a seus dias de Missão Impossível (1996) e Missão Marte (2000), há uma afirmação tão eloquente quanto borbulhando logo abaixo da superfície nos trechos de Hi Mom! (1970), Greetings (1968) ou Murder à la Mod (1968) que o filme mostra: não há mais espaço algum para demonstrações de enfrentamento cinematográfico como aquelas nos “indies” americanos de hoje.

Essa ausência de confronto é tão integral à opção por uma entrevista sem perguntas quanto a devoção reverente dos diretores por seu amigo mais velho. Há diversos problemas interessantes há serem desembrulhados na auto-narração de De Palma – o mais provocante envolve uma mulher que trabalhou em Guerra sem Cortes (2007), assunto que o filme rapidamente passa por cima, a despeito da relativa serenidade com que o diretor lida com um dilema ético tão profundo – mas qualquer possibilidade de avançar questões como essa é frustrada pela elegante passividade da abordagem. Em justiça, sempre que Baumbach e Paltrow se arriscam a intervenções um pouco mais agressivas no material, elas resultam em demonstrações bastante embaraçosas de falta de noção cinematográfica – a ilustração da nunca realizada versão hip hop de Scarface (1983), por exemplo, é uma rara ocasião em que a edição voluntariamente contradiz Brian de Palma, e a única impressão que o gesto conquista é o alívio por ele ser um incidente isolado dentro do filme. O fato de o documentário conseguir em boa medida se livrar das fofocas da imprensa marrom pode fazê-lo parecer um objeto mais digno do que Woody Allen: um Documentário (2012), de Robert B. Weide, mas ele é tão raso, tão exclusivamente focado na personalidade do entrevistado e determinado pelos paradigmas do jornalismo televisivo e dos talk shows quanto o filme de Weide. Sou tão suscetível a anedotas quanto qualquer outra pessoa sob o sol, e não há dúvidas de que há algumas muito boas aqui, mas as verdadeiras reflexões cinematográficas são magérrimas e, pior, dependem de uma vontade enorme de escavá-las à superfície. “É sempre os momentos de preparação antes do clímax que são interessantes, e é claro que nos meus filmes esses momentos duram uma vida inteira” é uma grande porta aberta à abordagem maneirista que o diretor fez da linguagem hitchcockeana, mas o filme se contenta em manter essas portas fechadas, empurrando a tendência natural à auto-reflexão do entrevistado para uma lápide em forma de punchline.

Do alto de sua relevância temática, De Palma é certamente um produto com público-alvo claramente definido e que satisfará uma demanda existente nas plataformas de Video on Demand, mas não a tentativa de realização de um projeto de fato cinematográfico. Em Movie Mutations, Adrian Martin define a nova cara da cinefilia mundial citando uma atitude atribuída a Louis Seguin por Ado Kurou, como uma cinefilia que procura “’surpresa, em vez de satisfação’ e que prefere ‘a descoberta à certeza’”. De Palma talvez seja uma vista satisfatória, mas há pouquíssimo espaço ou energia aqui para permitir reais descobrimentos. Com Onde Jaz o teu Sorriso? (2001 Pedro Costa fez o filme definitivo sobre Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, na mesma medida em que proporcionou uma meditação reverente sobre a arte dos diretores. O cinema direto americano redefiniu o documentário ao pintar retratos cheios de vida de artistas como Bob Dylan, Rolling Stones ou Muhammad Ali sem respeitar totalmente as aparentes linhas do contorno. Jonathan Demme e Jim Jarmusch fizeram alguns de seus melhores filmes tentando captar a presença de Neil Young. Embora não exatamente indigno, De Palma mal chega a ser uma tentativa; o filme definitivo sobre Brian de Palma permanece uma história a ainda ser contada.

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