Costa da Morte, de Lois Patiño, (Espanha, 2013)

março 1, 2015 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

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Tão longe, tão perto
por Juliano Gomes

Não é difícil descrever Costa da Morte: um filme quase só de planos gerais e abertos de uma região específica na Galícia assim chamada, em que o mar, as pedras, a paisagem enfim, são os elementos centrais. Uma certa estabilidade das matérias e do tom do filme esconde uma força de urdidura bastante incomum dentro do registro de filme de paisagem – ao qual sem problemas podemos associar o filme de Patiño. O que poderíamos chamar de distância (mas de quê mesmo?) é um método que tem como objeto algo que de fato não é da ordem individual. O plano cinematográfico sofre de uma certa maldição da escala do corpo humano, uma antropofilia do olhar que se manifesta nessa falsa impressão diante de um plano que nos faz nos sentimos “longe” de algo. Esse conflito é uma das principais questões a serem trabalhadas em  Costa da Morte.

No início, uma epígrafe: “No entrar do homem na paisagem, e da paisagem no homem, criou-se a vida eterna da Galícia”. Portanto o que está em jogo? Um “entrar” mútuo e uma concepção de tempo. As coisas se misturam e o tempo não pára (ou só pára). As maneiras com que o filme será espantosamente fiel a esse enunciado são uma estrutura de montagem associativa por caminhos variados e constituição de elementos-refrões, motivos, que a cada retorno vão tecendo esse processo permanente do entrar um no outro, numa mistura de descrição minuciosa e evocação metafórica permanente. Especificamente o mar e também a fumaça (do fogo, neblina, nuvens) parecem ser esses elementos de síntese de um processo de diluição onde a questão da opacidade, dos contornos, é nuclear. O problema é examinar esse ponto onde as coisas tomam nome e forma, o ponto que divide o pré-pós individual das coisas constituídas plenamente. A morte no título e nas falas dos habitantes que pontuam o filme aponta para ênfase nesse limiar entre ser as coisas e deixar de sê-las em direção a retornar em outro estado ou puramente se desintegrar.

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A cena de abertura que mostra o corte de árvores sob uma pesada neblina e uma cena final de um longo incêndio noturno, por exemplo, são duas claras encenações desse processo de ação da morte nas coisas: derrubar, cortar, queimar, destruir, apagar. A câmera estática é somente um método de fazer imprimir com precisão esse emaranhado de movimentos das matérias variadas do mundo. Costa da Morte é um filme de ação, em escalas variadas. A contemplação e qualquer ideia de passividade estão longe do que se passa aqui. Há sempre algo em movimento no quadro, em direção a outra coisa. 

Na segunda metade do filme, há uma sequência que parece contradizer a afirmação anterior: uma área alagadiça é filmada em plano geral, até que entra uma curta tela preta, uma outra imagem do mesmo lugar aparece em outro momento, mas com o mesmo quadro, só que com mais água, e o mesmo processo se repete por mais alguns planos, constituindo uma série, culminando em um último, no qual essa mesma paisagem volta, mas com um pequeno trator no quadro. No plano seguinte nesse mesmo lugar, surge um homem, daí interrompe-se a série dessa paisagem e passa-se a um plano menos geral, mas com vários homens. Adentramos outra série então. A força do trabalho de Patiño reside nessa habilidade de constituir séries variadas que vão desaguando umas nas outras a partir de uma restrição espacial de só filmar esse lugar que dá nome ao filme. A um possível fechamento monotônico derivado da premissa espacial, o filme responde com esse permanente ímpeto associativo.

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O corpo humano é um elemento entre outros no cosmos aqui narrado, porém sua função é decisiva em alguns aspectos. Há, por exemplo, um uso bastante singular do som: o filme nos coloca na situação contrastante de nos apresentar um plano geral onde o corpo humano ocupa um espaço ínfimo, mas sob um som que nos joga para muito perto do corpo. Falas, respirações e detalhes sonoros são oferecidos quando diante de imensas composições de mar, montanha, vegetação, edificações e pedras. Na segunda cena do filme, dezenas de pessoas parecem pescar algo à beira-mar, junto a uma conversa que fala disso, mas não sem escapar da pergunta “quem está falando?”. O vício da fala sincrônica (intimamente relacionado com a maldição da escala humana citada no início do texto) é alimentado por um valor de escala de plano que permiter faze a ligação direta entre o corpo e o som – não somente os lábios, mas algum corpo em cujo ritmo podemos “encaixar” em nossa percepção as falas que ouvimos.

Na maioria dos casos, porém, o filme não dá o conforto crônico dessa confirmação. Então permanece a pergunta e já se pode esboçar uma resposta: aqui tudo fala. Não importa o valor individual ou de personalidade, ou qualquer ideia de singularidade que passe por tais eixos, mas sim o que humano tem de dimensão coletiva (daí uma certa aparência mitológica dessa “vida eterna”). O filme coloca em jogo justamente esse processo de buscarmos a individualidade da voz, da fala, ao mesmo tempo em que nos põe em outro plano, no qual os nomes das pessoas não importam, mas sim uma coleção fragmentada (mas focada) de narrações sobre e a partir desse lugar. Essas falas, além de uma função informativa sutil – por exemplo, sabemos algumas das razões do nome do lugar – funcionam também como elementos de impureza do registro, já que essa diferença causada pela impressão de distância nos coloca em um lugar hesitante em relação ao registro do filme (as vozes podem ter sido adicionadas posteriormente).

Costa da Morte se debruça sobre um tema eterno e sempre central na humanidade: o que é a natureza? Um filme de paisagem que se ocupa de um lugar como esse, abundante de águas, montanhas, fauna e flora, necessariamente terá que encarar o perigo da rasa resposta que chama de natureza o que vem do mundo orgânico, o “verde”. Patiño constitui seu cosmos fazendo entrar nele motosserras, barcos, motores, câmeras, prédios, carros, igrejas e outros elementos comuns. Essa ideia também se espalha pelo registro, como por exemplo na insistente inserção de um ruído, uma longa nota com timbre de sintetizador que pontua o filme tanto quanto os sinos da costa. Os conjuntos são de trocas mútuas, mas são abertos, e a montagem, variando entre decupagem interna das cenas e associação entre cenas/planos distintos, vai operando essas costuras que já desde a abertura, com a derrubada das árvores, não deixa uma ideia preguiçosa e corrente de “natureza”. A queda da árvore não é filmada como uma violação de um processo da vida, do orgânico, do natural, mas sim como uma mudança de escala, uma passagem.

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A impureza cristalina das paisagens em Costa da Morte resulta desse olhar que justamente não naturaliza nada, que entende precisar operar nas suas descrições justamente a exposição das linhas que passam por ali. Uma árvore torna-se um homem parado no plano seguinte, um homem com uma arma, depois mais um, depois um cachorro, um tiro, outro homem parado, mais um homem, com algo na mão, agora um close de um animal morto, corta para uma igreja e o retorno do som do sino, mas de uma outra igreja, até que no plano seguinte vê-se que é um cemitério. As ligações não pré existem, elas são resultados de ações que o olhar, o filme, precisa empreender. A justa medida dessa tessitura é o que distingue aqui o trabalho de Patiño, que torna um possível filme institucional turístico num habilidoso tratado cósmico e descritivo sobre as ideias de natureza e cultura, de onde ele realiza uma notável pedagogia a partir de uma urgência perspectivista, afirmando que parte essencial é tomar e propor uma posição para olhar.

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