Argila, de Werner Schroeter (Alemanha Ocidental, 1967); A Morte de Maria Malibran (Der Tod der Maria Malibran), de Werner Schroeter (Alemanha Ocidental, 1972)

maio 5, 2014 em Em Pauta, Fábio Andrade

A Morte de Maria Malibran (1972), Werner Schroeter

A Morte de Maria Malibran (1972), Werner Schroeter

O sublime em pés de barro
por Fábio Andrade

Werner Schroeter foi um cineasta de difícil enquadramento em gavetas pré-fabricadas, sejam as do mercado de cinema ou as do autorismo crítico. De 1967 até sua morte, em 2010, dirigiu 41 filmes, entre longas, curtas e trabalhos para a televisão. Uma rápida passada de olho por esse conjunto de filmes deixa claro que a dificuldade de decodificar o seu cinema vai além da multiplicidade de formatos: de ensaios estruturalistas a melodramas – passando pelo documentário, o cinema político, a retomada de procedimentos das vanguardas, a ópera, o neo-realismo tardio, o maneirismo – impera, em sua filmografia, a impressão de que tudo é permitido. Mais do que compartimentar cada filme em um nicho específico, porém, Werner Schroeter parece interessado em se colocar como mediação possível à totalidade do cinema – senão da arte e da cultura (como reforça seu status de cineasta transnacional). Embora alguns de seus filmes assumam de maneira mais clara o registro dramático em que se desenvolvem, impera, mesmo neles, uma contaminação irreverente de dentro para fora, que permite largar mão de uma convenção do cinema de gênero em um panfleto político, mas também usar as fissuras de um experimento estrutural para atingir a emoção do melodrama.

Essa impressão de um cinema que se retroalimenta incessantemente é a janela para muitos dos encantos dos filmes de Werner Schroeter. Na combinação do que parece incombinável, o diretor revitaliza ambos os lados da equação, produzindo choques estéticos que parecem efetivamente novos, que se manifestam como produto sintético dessa dialética do incomum. O interesse de Schroeter está justamente em se colocar como catalisador de uma arte horizontal, sucetível às mais variadas combinações que sua poética suscitar.

Argila (1967), Werner Schroeter

Argila (1967), Werner Schroeter

Argila, de 1967, é um exemplo cristalino deste infinito jogo de espelhos que é o cinema de Schroeter. O filme se organiza em cima de uma gag estrutural muito ao estilo de Abel Gance: o mesmo filme é projetado duas vezes, simultaneamente, lado a lado; na metade da esquerda, a imagem é em preto e branco, e totalmente silenciosa; na da direita, o mesmo filme é projetado sonoro e em cores. Há, porém, um detalhe fundamental: a projeção da esquerda – silenciosa e sem cores – começa alguns segundos antes da projeção da direita. Argila é a síntese dessa simetria desconjuntada, entre duas metades que, embora pareçam idênticas, são suficientemente diferentes para se desencontrarem e permanecerem autônomas.

O que poderia ser somente uma curiosidade sensorial avant la lettre – pensemos em filmes que seguem os passos aqui esboçados, como Indio Nacional (2005), de Raya Martin, e sua banda sonora acidental; ou ainda na pesquisa de defasagem sensorial de um artista como Dan Graham – rapidamente se efetiva como dramaturgia. Há diversas relações possíveis no efeito Kuleshov que monta, sempre de maneira efêmera, as imagens das duas telas, mas Schroeter as direciona para o drama de desencontros dos personagens que habitam o(s) filme(s). O cinema não só filma esse descompasso, mas ele também age neste descompasso, a partir deste descompasso. Qual a melhor maneira de transmitir ao espectador a sensação de personagens em desencontro do que expondo-o a uma projeção em si desencontrada? Argila é um filme impressionante por agir, com a mesma intensidade e ao mesmo tempo, sempre em duas instâncias: a intelectual e a emocional. Mais que isso: o faz de maneira transparente, de forma que o espectador esteja igualmente ciente do drama na tela e do drama das telas. Logos e Pathos estão em pé de igualdade.

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As co-incidências permitidas por uma deliberação estrutural abrem Argila para uma infinidade de fortunas dramáticas. A cada segundo, a relação entre as duas telas (previsão do futuro? Projeção do pensamento? Comentário do passado?) parece mudar de estatuto, atualizando o processo intelectual à concretude do drama: na tela da esquerda, Hans “dá as costas” à sua amante que, “por acaso”, está virada “para ele” na tela da direita, e o gesto expande o filme por toda a tela do cinema, planificando o drama e se sobrepujando à diferença de tempo entre as duas projeções; em outro momento, Hans sai pela lado esquerdo da tela direita, e entra pelo lado direito da tela da esquerda, criando uma continuidade fortuita que não deixa arestas, embora ela só aconteça a partir do desencontro das projeções. Argila é todo feito dessas pequenas interações estruturais – uma virada de rosto que sincroniza passado e presente, em uma repetição de gestos que cria um loop dentro de todo aquele descompasso; uma casa cortada ao meio pelo enquadramento, mas que se restitui no espelhamento em preto e branco da tela ao lado; etc – que, por sua vez, adicionam novas camadas ao drama, falando por ele, para ele, sobre ele.

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Há, ao menos, dois efeitos significativos decorrentes desse processo. O primeiro, é dramatúrgico: ao “anunciar”, na tela da esquerda, tudo que vai acontecer na tela da direita, Argila reefetiva uma espiral trágica, atualizando o devir cinematográfico como uma fatalidade. Raras vezes a sensação de que se testemunha a ação do destino foi tão forte no cinema, efeito que se dá pelo trabalho de som: vemos o que vai acontecer na tela da esquerda, mas é somente quando isso acontece novamente, a cores e com som, na tela da direita, que compreendemos plenamente a situação que acabamos de vislumbrar. Mais que um déjà vu, a relação entre antevisão e presentificação promovida em Argila carrega ares de mau agouro.

O segundo efeito é de ordem histórica: Werner Schroeter realiza, em Argila, a súmula do sentimento de atraso do Maneirismo. Mais do que uma negação do melodrama, o filme busca, pela desconstrução, restituir o efeito do melodrama, ciente que ele não se dá mais naturalmente, no simples trabalho de convenções. Poucas imagens foram tão sintéticas do sentimento de se “chegar atrasado”, do Maneirismo, quanto o canto sem som e sem cores que abre Argila. Mas é justamente graças ao procedimento de defasagem entre as duas telas que Schroeter consegue restituir essa cor e essa voz à mesma imagem. Para isso, porém, é necessário antes de tudo reconhecer esta deficiência, este corpo sem canto, e criar novos arranjos cinematográficos que possam devolver a ele uma voz até então dada como irremediavelmente perdida.

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Esse mesmo processo é avançado cinco anos mais tarde, em um dos mais célebres filmes de Schroeter: A Morte de Maria Malibran. A deficiência originária ao Maneirismo (e, neste caso, ao cinema moderno como um todo) é explicitada logo no primeiro plano do filme: uma faca apontada para o olho direito de uma mulher, com o rosto já coberto de sangue, escorrendo do olho. Schroeter não mostra o golpe de faca, é algo que aconteceu antes, começando o filme já com essa deficiência, essa cicatriz, remetendo à perna quebrada de James Stewart, em Janela Indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock.

Em todo o primeiro ato, A Morte de Maria Malibran se efetiva como um conjunto de retratos, de rostos decapitados pelo enquadramento, que flutuam contra o fundo negro. Nestes planos, Schroeter reatualiza a simetria assimétrica da tela dupla de Argila, mas aqui ocorrendo dentro do mesmo plano, na insistência rigorosa da composição sobre dois rostos que quase se equivalem, que quase posam em repouso, que quase sustentam uma composição rigorosamente fixa. A despeito das diferentes nuances, há uma gestalt que se mantém ao longo desses planos, e que aponta sempre para uma verdade inexorável ao cinema de Schroeter: se o cinema é infinito, resta aos filmes apontar para sua própria finitude.

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A Morte de Maria Malibran (1972), Werner Schroeter

Esse gesto, porém, é afirmado sempre como deliberação, ressaltando sua artificialidade. No caso de A Morte de Maria Malibran, isso chega ao primeiro plano justamente no trabalho de som, que retira da maior parte dos planos o som sincrônico e soterra as imagens sob uma grossa camada musical. Como em Argila, não há esboço de desejo de retorno ao cinema silencioso, mas sim a necessidade de encarar de frente a impreterível realidade de um cinema emudecido. Em toda a grandiloquência do drama, permanece um elemento manco, falho, deficiente, trazido à vida prematuramente, ainda não totalmente formado.

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É uma sensação que ganha representação na própria estrutura do filme: não exatamente uma sequência de esquetes, tampouco uma linha narrativa contínua, A Morte de Maria Malibran se fia em um acúmulo de independências, se juntando a uma linhagem potentíssima de filmes órfãos na história do cinema, vários deles seus contemporâneos próximos: Tabu (1982), de Júlio Bressane; Veredas (1977), de João César Monteiro; India Song (1975), de Marguerite Duras; A Cor da Romã (1968), de Sergei Paradjanov; Inland Empire (2006), de David Lynch; a produção de Philippe Garrel da década de 1970. São filmes que parecem decididos a recompor a ausência de causalidade das vistas de Lumière em trabalhos de longa duração, a partir da articulação entre vistas que ora se repetem, ora se repelem, mas que raramente criam uma impressão real de continuidade.

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Esse “defeito de fabricação” ganha, no cinema de Schroeter, um subtexto político. Há algo de mambembe em sua vocação operística, construindo um sublime que sempre aponta para sua impossibilidade, uma transcendência que só pode existir se carcomida por sua própria finitude: uma pose que não fixa, um toque que não se completa, um contato que não se consuma, um sync que não sincroniza, a sombra de uma árvore que se projeta sobre o cenário pintado de uma floresta. O subtexto político está justamente na horizontalidade com que Schroeter olha para a criação artística: da pintura flamenca ao cabaré, da agudez de traços germânica à recomposição desarmônica do rosto dos travestis, da ópera ao music hall, o sublime, em Schroeter, depende necessariamente da exposição de seus pés de barro.

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