Adeus à Linguagem (Adieu au Langage), de Jean-Luc Godard (França/Suíça, 2014)

setembro 18, 2015 em Em Cartaz, Juliano Gomes

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Suicídio como otimismo ou outra aprendizagem
por Juliano Gomes 

“Imagine um olho não governado por leis de perspectiva criadas por homens, um olho não influenciado por lógica de composição, um olho que não responde ao nome de tudo mas que deve conhecer cada objeto encontrado na vida através da aventura da percepção. Quantas cores há num campo gramado para o bebê que engatinha, ainda não consciente do ‘Verde’? Quantos arcos-íris a luz pode criar para um olho desprovido de tutela? Imagine um mundo vivo povoado de objetos incompreensíveis e cintilando ao longo de uma gama infinita de movimentos e de inúmeras gradações de cor. Imagine um mundo ‘anterior ao conhecimento, antes de a palavra ser.’”

Stan Brakhage, Metaphors on Vision

O múltiplo e o multiplex

Fui em duas sessões do filme no Rio de Janeiro, em sala de uma famosa rede de cinemas multiplex. Desde o princípio, havia claramente algo de impróprio nesta experiência: a entrada do shopping, as lojas, os ruídos, os olhares, a lisura das paredes, dos espelhos das vitrines, o cheiro único e múltiplo que sintetiza todas as lanchonetes da praça de alimentação. A fila única que reunia espectadores de franquias diversas (uma exibição de cinema é, de alguma forma,  uma franquia? Ou: Godard é hoje, em 2015, uma marca?), onde pude comprar, além do ingresso, um suco que vem num balde (descobriria a seguir). Ao final do processo um papel como uma nota fiscal me dá acesso a sala, caminho povoado de letreiros luminosos, telas, displays e sorrisos.  Sim, a armadilha godardiana já estava em curso. Isto é, Adeus à Linguagem já havia começado.

Peguei os óculos, sentei. Na tela, uma seqüência interminável de peças publicitárias. Um mesmo produto foi anunciado duas vezes. Um filme teve exibido seu making of, e, dez minutos depois, seu trailer. Parei de contar o tempo quando vi que havia passado já vinte minutos. Tela preta, silêncio (nada mais chamativo nesse ambiente), alguns ruídos atípicos e pronto: “começava” o filme. Os ataques ao que soava como um violino eram combinados com um seqüência de letreiros que eram, sem dúvida, o que de mais “amador” havia aparecido naquela grande retângulo à minha frente neste vinte e cinco minutos: fonte tipográfica comum, cores básicas, nenhum efeito de transição. Nada que diferencie os textos de epígrafe das informações sobre as produtoras ou o número de registro. Nas publicidades, gigantes esforços em direção a uma “identidade” das marcas por uma idéia de beleza de um certo “incomum” médio. A seqüência de abertura do filme mais parecia uma espécie de transmissão pirata de conteúdo amador numa sala tão acostumada a uma certo profissionalismo sensorial (as vinhetas dos sistemas de som são um exemplo belamente ostentatório dessa retórica técnica de uma sensorialidade programada, como se os fabricantes soubessem tudo o que os objetos que eles produzem podem fazer).

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A distinção do conteúdo principal (trata-se sempre de uma imagem entre outras. Telas mudam) é justamente abrigar um contra-uso de todo este aparato: o shopping, os letreiros, o cheiro, o acolchoado, as caixas de som, a arquitetura vertical. Jean-Luc criou provavelmente o verdadeiro showcase do que este dispositivo técnico espacial pode fazer. O silêncio é rasgado pelo violino e pelo que soa como uma cantiga em italiano: tudo é continuamente interrompido – nunca se sabe se o que interrompe o fluxo principal é o silêncio ou sua ausência. Godard usa constantemente variações no fluxo sonoro: sons diferentes vindo de direções diferentes, e variações de intensidade, saturações e dessaturações operados de forma brusca. Na primeira, tive certeza ser um defeito da sala, quando, repentinamente o mesmo som, que antes só estava na caixa frontal esquerda, se abre em intensidade para os outros falantes (sim, neste ambiente o que é “falante” são os objetos). A dramaturgia técnica de Adeus à Linguagem estava em curso.

A mudez e a nudez

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A obra do Godard pós-1968 coloca o problema da palavra como imagem em evidência. O vocábulo é matéria de investigação. Não é injusta uma sensação de tagarelice. São filmes nos quais se ouve e se vê muitas palavras. Uma desorientação se produz se entramos no jogo habitual de um código: a decifração. Há algum tempo (talvez desde o primeiro momento), um dos eixos da obra de Godard é exaurir o desejo de interpretação. Isso fica mais explícito a partir das História(s) do Cinema nos anos 1990. São filmes que se formam de fluxos paralelos de imagens e som variados, que desafiam e, de certa forma, sacaneiam nossa percepção. Esta tem sido sua pedagogia. Obviamente há muito o que “interepretar”. É possível encontrar as “origens” de grande parte das frases e materiais em outros textos e filmes, e é inegável que os filmes, e este mais recente não é diferente, se apóiam nesta deslumbrante constelação que vai de Simondon a Howard Hawks, de Pierre Clastres a John Carpenter. A obra é apoiada por esta nuvem brilhante que se forma ao seu redor, em níveis variados, dependendo do contato prévio do espectador com estes intercessores. Porém, é enganoso pensar que se “perde” o que é central sem conhecer as referências. De certa forma, em Adeus à Linguagem, o objetivo, a utopia é exatamente esta condição: de um olhar que veja as coisas como coisas, de um olhar que “veja” a visão, ouvidos que ouçam o som, em sua presença e materialidade (a língua dos “falantes”).

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Num texto aqui na cinética sobre Filme Socialismo (2010) se fala do potencial autocrítico da obra de Godard. Por esta chave, o filme de 2010 parece ter intensa ligação com sua produção recente, especialmente com este último longa (poderiam formar uma espécie de díptico), que mais parece avançar em direção a um certo contraponto dessa tagarelice à qual estamos acostumados e que é sem dúvida um de seus motores. Dos longas de Godard, Adeus é o mais leve, mais cristalino, no mínimo desde Elogio do Amor (2001), não só pela duração curta, mas por uma certa dessaturação da profusão dos textos em som e imagem e de uma descentralização desta operação. A sensação do personagem mastermind Godard (sim, é uma marca) se dissipa aqui, e estabelece-se uma sensação de maior igualdade entre as partes e os elementos. Há um jogo do dentro do filme – dois (ou três) casais, duas (ou três) partes, dois ou três peidos, dois ou três sangues na pia – mas, de maneira geral, o jogo das matérias do filme está mais descentralizado que nas obras anteriores. Os dados estão na mesa, sobre a superfície da tela, para serem vistos. A expressividade corporal (dimensão sempre intensamente explorada em sua obra) adquire um protagonismo notável. A literalidade do título se traduz não numa vontade de falar menos, mas de “falar” através de outros meios. Nada de novo no front: cor, corpo, textura, figura, disposição, ritmo, silêncio, apagamentos e saturações; pintura, música e literatura, ou, memes de bichinhos, “lixo” pop ou quotes mal copiadas e coladas de um site de listas.

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Num filme onde os apocalípticos podem ver só morte (ela está lá – mas onde?), é espantoso como as operações convivem harmonicamente em um ambiente perceptivo pós-internet. Seu cinema é um dos profetas do transtorno de déficit de atenção como meio de exploração estética. O mundo se tornou godardiano: barbáries, bundas e letreiros. Uma estética da indecisão liga Manet aos vídeos de animais viralizados (para onde devo olhar, o que é dominante? Com tantas janelas, onde está o fundo e a figura? Onde está o retângulo original que vai me dizer o que é imagem e o que não é?). Trata-se de uma comédia adolescente, onde o adolescente é o filme: bichinho, gente pelada e canções que nunca chegam ao final. E, claro: encanto com os aparelhos, com os objetos técnicos. Aquele momento depois da festa onde experimentamos os brinquedos, (importante) antes de ler o manual (e já não há mais manuais). Brinquedo é também o filme, este doce Frankenstein, feito de remendos e espelhamentos –  e amor. O bem cultural mais rasteiro (histórias de amor não resolvidas) se torna o mote que performa e multiplica a operação dramatúrgica dessa arquitetura de relações de duplicidade, triplicidade e diferença. É um desejo de combinar, de fundir, de espelhar, pulsão de ser um, que não se realiza, nem se desrealiza, pois o que importa é a existência de uma tensão, de um tensionamento. Se o conteúdo das palavras os separa (os casais não são casados, são amantes, parecem “ter problemas”), há a sua presença, há uma partilha de espaço e de tempo que indica uma permanência e um laço.

“Ou” ou “au” (au) 

Fabrice Aragno (parceiro técnico e estético de Godard com diversas funções no filme) e Godard criaram algumas traquitanas não convencionais para a criação do efeito 3D. É notável, por exemplo, o uso das câmeras de baixa resolução, criando um dos paradoxos na apreensão do filme, na medida em que o 3D se torna um “a menos” de realismo. Godard-Aragno chapam as imagens, evidenciam sua natureza intrinsecamente superficial e tornam o filme também um documentário sobre sua própria técnica. Cada imagem parece falar também de sua própria resolução, de sua materialidade técnica. Em sua insistência numa estética da simultaneidade, o filme nos pede que acompanhemos também esta história – uma história de pixels e pincéis (as tintas se tornaram sólidas em uma das cenas). Há uma narrativa dos objetos técnicos, uma espécie de “assinatura”, que, em certa proporção, é autônoma, involuntária, é própria dos objetos, de uma combinação de sensores ou da química dos pigmentos com o ar. Os enquadramentos injustificados (enquadramentos à altura dos nossos olhos parecem padecer de uma justiça eterna) parecem uma espécie de tentativa de investimento perspectivista. O verdadeiro olhar “da câmera” é aquele quando apertamos o rec sem querer? Quais são as condições de negociação desse desejo: do homem, da câmera? O filme insiste em enquadramentos instáveis (para quem?) indicando esta alteridade sem nome. Um outro ponto de vista parece rondar, uma outra órbita, mais muda que a dos autores e artistas, e uma dramaturgia possível aqui é o caminho que leva de uma a outra, desse campo dos nomes, à altura dos homens, a um campo dos sem nome, dos sem altura e “sem linguagem”.

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O 3D é uma mecanismo que evidencia que nossa visão; é uma operação de síntese múltipla,  entre dois olhos e um obturador interno. As duas câmeras paralelas que filmam o 3D de Adeus à Linguagem são realistas na medida em que imitam nossa anatomia: no sentido de uma mimese técnica, o 3D via duas lentes paralelas é o verdadeiro dispositivo homem-olho. Porém, no mesmo sentido de uma exploração do arbitrário, os objetos que são destacados pela operação do 3D o fazem, dentro de uma dramaturgia obscura dos acontecimentos, por uma flagrante inutilidade: uma cadeira no centro do quadro; um vaso de flores. O destaque dado aos objetos parece afinal objetificar os corpos na imagem, e, ou, corporificar os objetos em direção a uma superfície comum (a floresta citada no filme). Todo adeus é olá. E quando o corpo é elemento principal ele parece se desmembrar: quando Ivitch (Zoe Bruneau) estica seu braço em direção a uma grade em primeiro plano, o braço se desnaturaliza pela sua extensão, fica longo “demais” para um registro mimético. Como todo grande artista, tecnicamente Godard (Aragno) é um sabotador, um hacker. O inventor é aquele que revela o potencial oculto das ferramentas do mundo. A “pobreza da linguagem” é a linguagem como acontecimento, como matéria, que conjuga sua natureza narrativa (que mostra algo que não é ela mesma) e sua presença “em si”, como matéria muda, como buraco. Uma palavra, um som, um latido. A anatomia do sentido é toda feita de buracos: olhos, ouvidos, salas, falantes, zeros, ós, infinitos, cavernas e cavidades.

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Há uma “traição” sonora também em curso. À medida em que vemos o filme numa sala “melhor”, “pior” o som fica. Aumentam as diferenças, as variações. Quanto menos comprimidos forem os falantes, mais ampla é a diferença, seus efeitos e defeitos. A sala é um amplificador. Adeus à Linguagem é um exemplar raro de exploração direta deste aparelho-sala, que se dobra ainda mais na situação-multiplex, na medida em que dá uma volta na vaidade técnica do som “mais real”, da imagem “mais nítida” do slogan do anunciante. É um arqui-blockbuster (site specific). Godard alforria as máquinas do julgo das corporações ao explorar e ao se interessar no que elas podem realmente “dizer”. Consequentemente, elas liberam este pobre corpo que há mais de cinco décadas não cessa de “dizer”. Este gesto constitui sua autocrítica e este investimento além de si, em direção a esta parte de fora, a esta constelação que não é a dos autores-artistas mas dos objetos e dos animais. “Deixar o não pensamento invadir o pensamento” é o que diz uma das cartelas iniciais. Trata-se afinal de explorar formas de pensamento e expressividade não individuais e identitárias – o que não soa estranho a um artista que nunca parou de dizer e desejar que uma coisa seja ela mesma e outra, e mais outra, e mais outra.

O uivo e o choro

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Nos créditos finais, após os nomes dos escritores e das câmeras usadas no filme (com a mesma fonte), surgem os seguintes sons: à esquerda o uivo de um cão, à direito o choro de um bebê. A semelhança sonora é evidente destes sons não conversíveis em palavras, porém de grande expressividade e reconhecimento (não são em nada abstratos. Este uso é que evidencia sua natureza abstrata). Após a repetição dos casais, das unidades do filme (Natureza, Metáfora), há uma espécie de resto, de fuga. Nesta parte, o centro é a cadela Roxy, metaforizando, transportando este estado de expressividade sem compreensão (“como não amar uma imagem de um cachorro?”). O filme evoca esta operação básica, de um ver não interpretativo porém não abstrato. Talvez, a última seja a porção mais concreta do filme. O investimento sensorial do mundo não humano toma a frente após a odisséia dos duplos que não se encaixam, mas se relacionam. Um uivo assim como um choro é uma forma de comunicação cujo interlocutor não é antevisto precisamente. Um bebê não necessariamente chora “para” seus pais. Chora para quem o acudir, chora por alguém por vir. Assim como o uivo. Trata-se de uma comunicação dirigida a uma espécie de além, indeterminado, portanto, voltada também para si mesma. Ambas são lamentos, um blues, uma espécie de canção da dor. E são, igualmente, a esperança de superação desta. São contra e favor de si mesmas, são a expressão do desejo de sua própria inexistência posterior: se chora para que seja a última vez.

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Numa fala de Acossado, um escritor, interpretado por Jean Pierre Melville, diz: “meu sonho é ser imortal e morrer logo depois”. Godard é aquele que já morreu algumas vezes. E que não cessa de retornar modificado e modificando, duplicando a si mesmo, em um movimento espiralado. Adeus à Linguagem é um aceno a todo um modo que sempre esteve aí, de certa maneira pré-linguístico, que, sob determinado prisma ressignifica toda sua obra, cuja chave de leitura que superestima seu alterego que se materializa em um corpo ranzinza entre máquina de escrever e livros parece dominar. Godard, aprendiz de Bresson (A Grande Testemunha – 1966 é um filme que ilumina este), é um artista da sensualidade, do sensório, um explorador das plasticidades. E, como um grande artista, radicaliza sua pesquisa em direção a uma sensualidade dos signos, dos traços das letras, dos sons das palavras, dos metais dos falantes e do vidro das lentes. Este seu filme mais recente é a encenação mais clara da morte desta sua vertente “interpretativa” e o aceno a esta dimensão mais muda, ou mais “uivada”. Mas em Godard nunca se trata de exclusão e sim de simultaneidades. Então, seja o que for: que seja bem vindo.

 

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