in loco
Diário de Santa Maria da Feira
por Leonardo Mecchi

Eu já havia sido avisado por aqueles que freqüentaram Santa Maria da Feira antes: trata-se realmente de um festival sui generis, um festival eminentemente cinéfilo (algo mais raro do que pode parecer). Nada de discussões sobre políticas governamentais, nenhuma busca de financiamento ou co-produções, nem mesmo debates entre realizadores. Em Santa Maria da Feira, a única coisa que importa são os filmes: filmes a serem descobertos, filmes a serem revistos, filmes a se discutir na mesa do bar. Em função de suas características peculiares (um festival sediado numa cidade pequena, que prima pela informalidade e que convida uma dúzia de cineastas brasileiros – novos e consagrados – a conviverem juntos durante oito dias, vendo e discutindo os filmes uns dos outros), Santa Maria da Feira permite uma integração e aproximação raras entre esses cineastas, numa troca de experiências e visões sobre o cinema que só tende a render belos frutos e parcerias futuras.

Em relação à programação, como já tinha comentado, a competição de longas metragens não trouxe grandes novidades para os brasileiros. Com exceção de Transe, de Teresa Villaverde, que representou Portugal na Quinzena dos Realizadores do último Festival de Cannes, os demais filmes em competição já haviam sido exibidos aqui no Brasil e foram foco de análises pelos membros da Cinética: Proibido Proibir, Crime Delicado, A Concepção, Incuráveis, Wood&Stock e O Céu de Suely. Em função disso, meu foco transferiu-se para a competição de curtas metragens, e essa decisão rendeu gratas surpresas.

De uma maneira geral, a seleção de curtas brasileiros foi homogeneamente superior à produção portuguesa que, se apresentou grandes obras (como Rapace e Perímetro), na média se mostrou bastante irregular. É curioso notar também certas características e estilos que diferenciam essas cinematografias. As obras portuguesas tendem a ter uma mise-en-scéne bastante rígida, de enquadramentos fixos e fotografia seca, criando um clima pesado, lento e melancólico, como que a corroborar um certo clichê sobre o espírito português. Já os filmes brasileiros, em especial dos jovens realizadores, buscam atingir, com resultados variáveis, uma espontaneidade e frescor na linguagem, mesmo no trato de temas mais densos, que deixam claras as diferenças de olhar em relação aos realizadores lusitanos.

Abaixo o leitor poderá conferir análises e comentários curtos sobre cada um dos curtas-metragens em competição. Como muitas vezes a curadoria de Américo Santos (idealizador e organizador do festival) permite uma aproximação e diálogo entre os filmes programados para uma mesma noite, foi mantida a ordem cronológica de exibição. Em anexo, ainda poderá ser encontrada a lista completa dos premiados desta 10a edição do Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira.

Dia 04/12:

Aranhas Tropicais, de André Francioli (Brasil, 2006, 19 min) - Neste seu novo filme, Francioli (de O Mundo Segundo Sílvio Luiz e Veja e Ouça – Maria Baderna no Brasil) assume desde o início a influência de Sganzerla e Ivan Cardoso em seu cinema. Aranhas Tropicais trabalha a visão crítica e desiludida do diretor sobre o mundo (e o Brasil em particular) através de uma estética deliberadamente fake e um humor escrachado e irônico (“Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha”, já dizia O Bandido da Luz Vermelha).

Com sua narrativa frágil, quase inexistente, o filme é baseado em seu trabalho de montagem e som. Entretanto, quando abre mão da esculhambação geral para tecer, através de seus personagens-clichês (Homem-Aranha, clones-mirins de Michael Jackson, Estátua da Liberdade, garota da MTV, cowboy etc), um ataque pontual ao alvo eleito – a colonização intelectual, cultural e científica imposta pelos EUA –, o filme perde sua força por se reduzir a uma crítica vazia e generalista, onde se aponta os males do mundo como se de posse de uma lucidez exclusiva, sem com isso se revelar nada de novo ou apontar novos e possíveis caminhos. Como nos lembrou a retrospectiva de Edgard Navarro exibida durante o festival, o humor só é revolucionário quando seu primeiro alvo é ele próprio.

Manual Para Atropelar Cachorro, de Rafael Primo (Brasil, 2006, 18 min) - Já comentado na revista por Marcus Mello em sua cobertura de Gramado (de onde o filme saiu levando três prêmios, incluindo melhor curta pela crítica e júri popular), o filme também trabalha na chave do humor as neuroses e vicissitudes do mundo urbano e contemporâneo. Para além do visual pop (de cores fortes, narrativa fragmentada, montagem ágil e trilha sonora envolvente), o que chama a atenção no filme, entretanto, é a força da linguagem visual de Rafael Primo, num domínio aparentemente instintivo desse universo audiovisual que lembra o cinema de Tarantino.

Os posicionamentos inusitados – porém precisos – da câmera, a atenção aos planos-detalhe, o uso de diferentes formatos de captação em sintonia com a estética e narrativa do filme (e não como um simples exibicionismo técnico), seu ritmo preciso e as brincadeiras com clichês do cinema tornam Manual um filme extremamente interessante e, por que não dizer, divertido. A única coisa que enfraquece a obra, sem com isso comprometer seu resultado final, é a forma como a estrutura em que a narração em off foi construída impõe ao filme um certo estilo claramente derivado de Jorge Furtado e seu jogo com o espectador, que acaba por tirar em parte o frescor e originalidade da obra. Um diretor que, se não ficar preso a uma fórmula que rapidamente se esgota (a do filme “moderno” e ágil), merece ser acompanhado de perto.

Rapace, de João Nicolau (Portugal, 2006, 25 min, assista a trechos do filme aqui) - Um dos dois representantes portugueses na Quinzena dos Realizadores do último Festival de Cannes (o outro é o longa Transe, também exibido no festival), Rapace é um filme de mise-en-scène e trabalho com o espaço do quadro impressionantes. É também um filme que trabalha com humor, irônico e afiado, a tal melancolia blasé da pós-modernidade. De João César Monteiro, de quem João Nicolau foi assistente de montagem, Rapace herdou a precisão da mise-en-scène e a ironia fina; do primeiro Godard, a anarquia do olhar e do som.

Com uma narrativa livre e criativa, João Nicolau constrói um retrato de uma certa juventude portuguesa que, devidamente formada e bem criada, encontra-se repentinamente sem horizontes e motivações. Diferente da grande maioria da produção portuguesa recente, que reserva um olhar duro, amargurado e melancólico para essa juventude, Rapace opta pelo humor inusitado e absurdo de quem não vê a contemporaneidade como um mal irremediável, mas que tenta romper essa inércia para seguir um novo caminho, referindo-se sim ao passado (Monteiro, neste caso), mas sem com isso abrir mão de uma linguagem própria e nova. Com uma obra de porte nesta sua estréia na direção, João Nicolau se coloca desde já como uma das grandes expectativas do novo cinema português.

Dia 05/12

Perímetro, de Miguel Seabra Lopes (Portugal, 2006, 24 min) - Perímetro também se impõe desde o início por sua mise-en-scène extremamente rígida, pesada e formal. A câmera sempre fixa – enquadrando ora espaços vazios decadentes, ora o protagonista inerte e moribundo (quase nunca frontalmente, aproximando-se dele pelas costas ou num perfil fora de foco) –, o som ambiente realçado, a fotografia seca e sem filtros, tudo contribui para a sensação de incômodo causada no espectador.

Entretanto, mais do que uma provocação gratuita (comum a certos filmes brasileiros ávidos por chocar o “espectador de classe média”), tais opções se mostram indispensáveis na (re)criação do sentimento de deslocamento do personagem diante do mundo e de seu próprio corpo, potencializado pela ausência de qualquer possibilidade de comunicação (seja com seu filho – talvez já morto? – ou com o pai à beira da morte). Um filme sem concessões que, ainda assim, deixa alguma saída para seu personagem, mesmo que dúbia. O que parecia ser a preparação para um suicídio, mostra-se na realidade uma última e extrema tentativa de deixar o peso de seu passado e de um certo determinismo hereditário para trás para poder quase que se sublimar no mar. Uma explosão que quebra a imobilidade e liberta – o personagem, a câmera e o espectador. Um filme difícil, em seu extremo rigor e precisão.

Parte de Mim, de Margarida Leitão (Portugal, 2006, 14 min) - Parte de Mim é mais um filme que, como a maioria das produções portuguesas, possui um tom solene, pesado, amargurado. Assim como Perímetro, o filme de Leitão também trata da incomunicabilidade entre as pessoas, do peso imobilizador das decisões e da imprevisibilidade do futuro. Aqui, entretanto, a gravidade da encenação não se basta. Temos entre os protagonistas (e, conseqüentemente, entre a diretora e o espectador) um jogo de verdades e mentiras, ocultações e revelações que, ao se revelar, acaba por esvaziar o filme e expor aquela estrutura como um frágil castelo de cartas. A melancolia humana é algo muito mais etéreo e difícil de retratar do que a direção de Leitão parece supor.

Cântico das Criaturas, de Miguel Gomes (Portugal, 2006, 24 min) - Um verdadeiro pout-pourri de estilos e estéticas, Cântico das Criaturas é uma obra, no mínimo, estranha. Inspirado na oração homônima de São Francisco de Assis, o filme começa com imagens documentais em Super-8 de um trovador cantando a oração pelas ruas de Assis, na Itália, focando a oposição entre o caráter histórico da cidade e os turistas que invadem suas ruas. Em determinado momento, o curta muda completamente de registro, passando abruptamente para uma encenação teatral, propositadamente artificial e artesanal, de uma passagem da vida de São Francisco de Assis e de sua relação com Santa Clara. Por fim, o filme rompe, repentinamente uma vez mais, com sua linguagem, passando agora para cenas documentais da natureza – por vezes retratando momentos belos e delicados dos animais e em outros momentos registrando a violência da vida selvagem –, com a oração de São Francisco de Assis sempre presente, em off, na voz de crianças.

Pouco fica deste filme para além do estranhamento dessa sobreposição de linguagens e registros, uma vez que elas não parecem encontrar um fundamento, uma razão de ser dentro da proposta do filme, para além desse choque estético e estéril. O que vale destacar, isso sim, é o quanto esta obra se diferencia dentro do cenário da produção contemporânea portuguesa. Não por sua estrutura ou linguagem, mas por ser um filme de louvor à vida, à sua alegria e beleza, em contraposição a uma produção marcadamente pesada, melancólica e sombria.

Dia 06/12

De Glauber Para Jirges, de André Ristum (Brasil, 2005, 18 min) - Em suas imagens em Super-8, que ora aparecem com cores saturadas, ora aproximam-se do registro abstrato, De Glauber Para Jirges é uma homenagem do diretor André Ristum à amizade entre Glauber Rocha e seu pai, Jirges Ristum. É também um filme sobre a memória, por vezes carinhosa e afetiva – como as imagens que remetem à melancolia de vídeos-caseiros –, por outras conturbada e fragmentada – como a montagem de Eryk Rocha. Um filme que, se nem sempre alcança o tom poético proposto (em muito, justamente pelo excesso de intervenções nas imagens), ainda assim deixa transbordar essa melancolia afetiva existente na relação entre Glauber e Jirges (ou ao menos na memória que resta dela, o que nem sempre é a mesma coisa) e na do diretor com seu falecido pai.

Ao Fundo do Túnel, de João Pupo (Portugal, 2006, 16 min) - Assim como De Glauber Para Jirges, Ao Fundo do Túnel também é um filme sobre a memória, a melancolia e a saudade. Filme-painel que se foca em Antônio, um velho senhor prestes a realizar uma cirurgia para recuperar a visão (e poder assim voltar a enxergar a foto de Ana, sua falecida amada), e as pessoas que gravitam ao seu redor: o filho (diretor de teatro que está a montar uma peça justamente sobre o encontro de seus pais), a nora (que passa o dia a cuidar dele) e uma atriz que, ao final, descobrimos que interpretará Ana na peça escrita por seu filho (ou, aos olhos de Antônio, a encarnará).

Apesar de construído com precisão, ainda que de maneira simples e evitando o risco a qualquer custo, Ao Fundo do Túnel não consegue criar com o espectador a empatia necessária para conseguir nele a emoção que busca. Isso ocorre principalmente por depender muito de uma estrutura frágil que desaguará em um final que, se permite ao protagonista uma esperança possível, o faz às custas de uma previsibilidade para o espectador que resulta piegas.

Maria Ana Maria Mariana, de Paulo Halm (Brasil, 2006, 23 min) - Maria Ana Maria Mariana parte de uma estrutura semelhante ao longa Casa de Areia, que abriu o Festival de Santa Maria da Feira: presas a um ambiente específico (lá os Lençóis Maranhenses, aqui um velho sobrado), acompanhamos três gerações de mulheres que vivem a solidão, a melancolia e o isolamento. Assim como no longa de Andrucha, aqui também temos uma mesma atriz se revezando nos diversos papéis exigidos pela passagem do tempo – mas, por mais que alguns possuam sérias ressalvas a Casa de Areia, o filme de Andrucha se resolve muito melhor do que novo curta de Paulo Halm.

Não se trata aqui de comparar filmes com propostas estéticas e orçamentos completamente díspares, mas sim do cuidado e planejamento da produção dentro do que cada filme se propõe. Halm parece querer impor ao filme uma poética e leveza que o simbolismo excessivo, as atuações tatibitates e o didatismo com o qual constrói a narrativa acabam por inviabilizar. Nesse sentido, Maria Ana Maria Mariana é um filme que quase nasce morto, asfixiado pela mão pesada do diretor, mais preocupado com os sentimentos que queria transmitir do que com o modo como fazê-lo.

História Trágica com Final Feliz, de Regina Pessoa (Portugal, 2005, 8 min, assista a trechos do filme aqui) - Depois da seqüência de três curtas que olhavam para o passado de uma maneira saudosista e melancólica, onde o presente parece ser apenas um fardo a se carregar enquanto se lamenta a passagem do tempo, História Trágica com Final Feliz surgiu como um bálsamo na programação deste terceiro dia (e seu título como um irônico presságio). A animação de Regina Pessoa carrega em seu traço singelo uma poesia e beleza ímpares, que fazem desta simples fábula sobre diferenças, identidade, tolerância e amadurecimento uma experiência encantadora, uma profissão de fé na possibilidade de se transcender o cotidiano sem que, para isso, se precise negar a própria identidade. História Trágica deixa claro que a leveza e a poesia são características que nascem naturalmente quase se acredita na história que se está contando, e não algo que pode ser imposto a fórceps em um filme.

Dia 07/12

Jonas e a Baleia, de Felipe Bragança (Brasil, 2006, 19 min) - Os enquadramentos precisos, a construção rígida da mise-en-scène, a direção racionalista dos atores, a utilização minuciosa da música. Em Jonas e a Baleia, tudo exala o inegável controle de Felipe Bragança sobre aquele universo e sua narrativa. Bragança parece querer deixar claro para o espectador que aqueles personagens projetados na tela não são seres com vida e vontades próprias, e sim figuras dramáticas a serviço de uma proposta estética. É assim que, por exemplo, o silêncio surge para aqueles personagens como opção (imposição?) narrativa do diretor, e não como uma questão própria a eles, algo que fica claro na cena do jantar em família.

O mesmo ocorre na relação do diretor com o público: ciente das expectativas e das emoções que pode suscitar com sua narrativa, Bragança opta conscientemente por negá-las ao espectador – como ao optar por concluir o filme com uma cena de animação e não com a cena anterior, uma experiência metafísica/sensorial construída através de um plano fixo de um pé de jaca que remetia ao cinema de Apichatpong. O diretor assume também uma posição de refutação direta a uma certa onda naturalista do cinema contemporâneo recente. Embora faça parte do projeto estético do diretor, esse controle extremo sobre a narrativa, seus personagens e, indiretamente, o espectador, corre o risco de sufocar a obra, por negar-lhe uma existência própria e viva. Talvez antecipando essa encruzilhada, Bragança parece tentar injetar um pouco de ar no filme, seja através das suítes para violoncelo de Bach ou do background psicologizante criado para os personagens (que acaba por aproximá-los estranhamente do melodrama).

É nessa indefinição entre a racionalidade de um projeto estético rígido (e frio) e a tentativa emocional (e talvez até inconsciente) de uma aproximação mais humana dos personagens que Jonas e a Baleia tenta encontrar seu frágil equilíbrio. Uma contradição que, ao mesmo tempo em que torna interessante acompanhar o desenvolvimento da carreira deste diretor (que, não é preciso reafirmar, também edita a Cinética), parece clamar por uma resolução, sob risco de encurralar e esgotar sua proposta.

Joyce, de Caroline Leone (Brasil, 2006, 14 min) - Ao contrário de Jonas, em Joyce o interesse da diretora recai, prioritária e carinhosamente, sobre suas personagens. Focando em duas irmãs da periferia paulistana, Leone cola a câmera na mais velha e a acompanha em uma noite pela cidade, interessada especialmente no misto de sexualização precoce e inocência infantil que convivem conflituosamente num mesmo corpo de menina.

Ao contrapor essa inocência supostamente intrínseca das crianças a um ambiente externo opressor e corruptor (a TV, os bares e as ruas da cidade à noite), a diretora se aproxima perigosamente do clichê estereotipificante e moralizador da periferia, mas consegue escapar dessa armadilha pela aposta numa narrativa de poucas falas, balizada na atuação precisa das duas meninas e no olhar extremamente carinhoso que Leone reserva a suas personagens. Na cena final, com a menina a pentear o cabelo com a cidade enquadrada ao fundo em sua janela, a diretora parece apontar para a possibilidade de uma integração harmoniosa entre esses dois personagens principais de seu filme – a garota e a cidade.

Beijo de Sal, de Fellipe Gamarano Barbosa (Brasil, 2006, 18 min) - Primo próximo de Lucrecia Martel, Beijo de Sal assume sua filiação a esse cinema naturalista, de personagens, um cinema quase documental na sua busca por uma verdade, uma fagulha vital no seio daquele universo retratado. Neste seu segundo curta-metragem, Barbosa mantém o olhar apurado que já demonstrava em sua estréia (La Muerte es Pequeña, encenado com apenas dois atores em uma locação claustrofóbica), expandindo-o para uma produção mais elaborada, com fotografia bem cuidada, diversas locações e múltiplos personagens (ainda que focando prioritariamente na relação entre dois deles).

E é dessa relação sempre conflituosa e multifacetada entre os personagens, e deles com seus sentimentos, que vem a força do cinema de Barbosa. Por mais que o protagonista Rogério aja de maneira no mínimo repreensível ao longo do filme, o diretor não permite que ele caia em uma caricatura unidimensional, reservando-lhe ao menos duas cenas (uma de reflexão isolada em seu quarto e outra de deslocamento e desconforto entre os amigos no sarau) onde, sem nenhuma palavra, matiza-lhe a personalidade e dá-lhe uma maior profundidade e complexidade, ações fundamentais em um cinema de personagens.

Se Beijo de Sal é uma clara evolução em relação ao curta de estréia do diretor (por confiar mais em suas imagens e personagens, prendendo-se menos a uma estrutura visível de roteiro e diálogos), ainda repete algumas características que acabam por enfraquecer o resultado final, como a insistência em sublinhar excessivamente alguns traços da personalidade de seus personagens (como a atitude agressiva da garota em La Muerte ou a imaturidade bonachona e sexista de Rogério em Beijo de Sal) ou explicitar motivações de seus personagens que ficariam melhores se deixadas ao espectador (como o mal entendido que leva a garota a deixar Paulo no final de Beijo de Sal ou o voice-over que domina os dois últimos atos de La Muerte es Pequeña). Tratam-se, entretanto, de pequenas ressalvas que não tiram o mérito de um diretor cujo cuidado no trato com a câmera e com os personagens se revela bastante promissor.

Realce, de João Carrilho (Portugal, 2006, 13 min) - Se alguns filmes conseguem sair do particular para atingir o universal, outros se tornam uma incógnita completamente indecifrável para aqueles que não compartilham de parâmetros de avaliação comuns. Esse parece ser o caso desta comédia de erros portuguesa. Fosse ela exibida no Brasil, o filme seria rapidamente rechaçado como uma obra de visual desleixado, personagens caricatos e um humor parvo baseado na repetição de pequenos (e aparentemente despropositados) diálogos e situações que, a nós brasileiros, remetem a algo próximo a um Zorra Total. Entretanto, como toda comédia busca uma relação menos racional e mais instintiva com seu público – e não posso senão assumir, em função das risadas causadas em parte do público na projeção do filme, que tal reação foi atingida na parcela portuguesa da platéia – fica a questão em aberto: terá Realce um apelo imperceptível que escapa ao espectador brasileiro, seja por diferenças culturais ou por dificuldades de compreensão impostas pelo acento lusitano, ou será o público português tão suscetível a um humor simplista e simplório quanto o espectador do programa semanal da Globo?

Dia 08/12

Alguma Coisa Assim, de Esmir Filho (Brasil, 2006, 15 min, assista a trechos do filme aqui) - Se há algo que chama a atenção desde o início em Alguma Coisa Assim é o fato do filme voltar sua câmera a um universo praticamente invisível no cinema brasileiro recente: os adolescentes de classe média. Nada de favela, pobreza ou do tão proclamado “Brasil profundo”. O que temos aqui são dois jovens, curtindo a noite de uma grande cidade e envolvidos com dilemas clássicos dessa idade, como a descoberta da sexualidade  ou o fato de se gostar de alguém que não lhe corresponde. Não deixa de haver nisso uma certa dose de coragem, ao não se filiar a um acordo implícito e silencioso que parece definir quais seriam os temas “dignos” a serem retratados pelo cinema. O resultado final é um filme que busca (e muitas vezes consegue) recriar o espírito dessa geração nascida no final dos anos 80. Não à toa seus melhores momentos são aqueles onde há uma profusão de sons e signos visuais bombardeando os personagens (como nas cenas na danceteria) ou onde as cenas exigem ritmo e movimento (como o passeio no carrinho de supermercado).

Quando a câmera se aquieta, entretanto, e a cena precisa se sustentar apenas nos dois personagens e seus diálogos, o filme perde claramente sua força, em grande parte por não conseguir tornar crível os dilemas daqueles jovens através de diálogos que, ao buscarem uma profundidade quase filosófica, resvalam no artificialismo. Apesar desses “pontos cegos” em seu filme, que demonstram a necessidade de um maior amadurecimento de sua linguagem, Esmir Filho demonstra aqui possuir uma sensibilidade rara entre nossos diretores para retratar essa juventude que já nasceu entre videoclipes, Internet e celulares – e o sucesso de Tapa na Pantera, co-dirigido por ele, demonstra que essa mesma juventude se interessa pelo que ele tem a mostrar.

A Vida ao Lado, de Gustavo Galvão (Brasil, 2006, 12 min) - Como bem observou Cleber Eduardo quando da exibição deste curta no Festival de Brasília, é claro o diálogo de A Vida ao Lado com um certo cinema asiático, de encontros fortuitos, isolamento crônico e comunicação impossível, diagnosticados em personagens urbanos e contemporâneos através de enquadramentos elaborados e seletivos. É curioso nesse sentido comparar uma característica comum a este filme e Jonas e a Baleia, de Felipe Bragança: a ausência de diálogos. Se no filme de Bragança esse silêncio é imposto aos personagens como projeto estético do filme, aqui ele surge organicamente daquele ambiente, como sintoma a ser observado e retratado.

Apesar da inegável qualidade técnica e artística do filme (algo que fica claro na construção precisa da excelente cena do metrô), fica no espectador um certo estranhamento por seu caráter impessoal. Ao invés de partir do particular para atingir o universal, Galvão parece ter feito o caminho inverso, reclamando para si a filiação a uma certa corrente do cinema mundial contemporâneo, sem contudo lhe imprimir uma marca própria. Fica a sensação de um filme genérico, resultado de um molde pré-fabricado que poderia ter sido preenchido por qualquer outro com o mesmo domínio técnico.

Vermelho Rubro do Céu da Boca
, de Sofia Federico (Brasil, 2006, 18 min) - Neste seu segundo curta metragem, Sofia Federico aposta no realismo fantástico para contar a história de uma garota que se apaixona por um suposto pretendente que estaria lhe enviando rosas rio abaixo. Com boas atuações (de Flávia Marco Antônio e Paulo César Pereio), há momentos em que essa aposta funciona e o filme atinge um ar lírico e poético, como na cena em que, para não se perder na busca por seu amado, a garota se amarra a um fio de tricô que, a medida em que ela se afasta da casa, desfaz o vestido pendurado em sua janela. Na maior parte do tempo, entretanto, o filme não consegue se desvencilhar de um tom solene e pesado, em parte devido à busca por uma beleza “excessiva” na fotografia, que acaba por sabotar as intenções da diretora.

Noite de Sexta, Manhã de Sábado, de Kleber Mendonça Filho (Brasil, 2006, 15 min) - Kleber Mendonça já comprovou em seus filmes anteriores (em especial Eletrodoméstica) seu domínio da linguagem cinematográfica. Com Noite de Sexta, Manhã de Sábado, entretanto, o diretor vai um passo além e, onde antes predominava a técnica, introduz uma nova variável que torna seu cinema ainda mais forte: o sentimento. Abandonando o controle cartesiano da mise-en-scéne presente em seus curtas anteriores e buscando um contato mais direto com o emocional (seu e do espectador), Kleber Mendonça arrisca-se e, com isso, permite que seu filme respire de uma maneira mais livre e viva, projetando-se para uma existência própria para além da tela e através da experiência do espectador e de sua relação emotiva com o filme.

Não que a técnica não esteja presente – ela se faz notar claramente, em especial no trabalho de som do filme (uma característica fundamental do cinema do diretor) –, mas aqui ela possui um papel coadjuvante, ainda que essencial. O que está em evidência em Noite de Sexta é a relação entre aqueles dois personagens, seus sentimentos, suas dores. “Nunca fale de amor em lugares públicos”, nos diz um dos personagens, e ao contrariar tal filosofia, o filme corria dois sérios riscos: tornar-se algo piegas ou um simples objeto para saciar o voyeurismo do espectador. Mas justamente por seu domínio sobre a linguagem, Kleber Mendonça soube evitar essas armadilhas, primeiro ao manter a simplicidade do registro, dando uma importância muitas vezes maior ao silêncio do que aos diálogos, e depois ao respeitar a privacidade daqueles personagens, negando ao espectador – ora pela montagem, ora através do som ambiente – o acesso a seus momentos mais íntimos. O cinema de Kleber Mendonça parece estar se encaminhando a um novo patamar.

* * *

No âmbito geral do sucesso do festival, fica apenas uma observação: como os diretores brasileiros permanecem na cidade ao longo de todo o festival, mas os portugueses comparecem apenas nos dias em que seus filmes são exibidos, a integração entre os realizadores desses dois países, que poderia ser o grande trunfo e diferencial desse festival, acaba não ocorrendo em todo seu potencial. Seria interessante talvez organizar pequenos eventos ou debates que permitissem essa troca de idéias e experiências entre os dois países, mesmo que comprometendo em parte o caráter informal do qual tanto se orgulha o festival, pois caso contrário corre-se o risco do evento se tornar uma espécie de colônia de férias para diretores brasileiros.


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