O Céu de Suely, de Karim Aïnouz
(Brasil/França/Alemanha, 2006)
por Paulo Santos Lima

Corpo valioso

O Céu de Suely começa com imagens captadas em Super 8, acompanhadas da narração em off da protagonista, que em tom poético-literário dá contornos românticos à cena, que mostra seu homem e ela brincando. Os tons remetem a um filme caseiro, ou, mais ainda, àquelas fotografias tiradas nos anos 70, aquelas guardadas preciosamente no álbum de família, reservas idílicas de férias que o tempo tratou de tornar ideais. Convidando ao saudosismo, é quase um ponto de partida irônico para aquilo que este extraordinário filme vai discorrer. Ponto de partida, não introdução, porque aquela imagem, de fato, é para ficar num álbum. O que detona o processo dramático do filme está uns 20 minutos à frente, e essa primeira seqüência, portanto, é apenas uma data que só tem sentido como imagem – imagem cinematográfica, no caso. E assim que Hermila toma ciência de que o projeto que tinha com seu marido foi abortado, ela dá as costas para o sonho colorido e tenta seguir em frente com novas regras do jogo.

É a lógica do cinema de Karim Aïnouz. Hermila, assim, é como o João Francisco dos Santos de Madame Satã. Ambos lutam contra as adversidades de um mundo cruel com aqueles que nele sobrevivem. Improvisam escudos de defesa, forjam armas para espadar as ameaças. Conscientes de sua dignidade, lutam por sua manutenção. João Francisco dos Santos luta contra uma ordem de valores segregacionistas para se firmar como negro, homossexual, malandro da Lapa e artista, ou seja, ser o Madame Satã. Mas enquanto a condição natural (econômica, social etc) fecunda a revolta de Madame para ele então firmar sua identidade, Hermila trabalha na correnteza oposta: ela trapaceia sua identidade para arranjar dinheiro e assim sair do sertão cearense para o sul (e quem sabe um dia levar seu filho, tia e avó). Hermila e João dos Santos são a mesma pessoa, uma vez que primeiramente se lutou pela identidade para então, logo depois, trabalhar na lógica do mundo, que (não há como fugir disso) é econômica.

Hermila é a atriz Hermila Guedes. Mesmo nome, uma nascida da outra, o que garante a maior e mais intocável certeza do filme: seu corpo, único, dramático, com uma assinatura que garante o singular de sua identidade – os cabelos avermelhados e com mecha loira. A câmera de Karim continua fiel à essência das ações, usando elipses que deixam o instante encenado em estado de pureza, o que faz nossos olhos terem maior atenção ao que permanece imutável: a presença de corpos nos espaços. É, também, como se o os fragmentos fossem a parte do todo, que é o plano-sequência. O corpo será o instrumento de Hermila para viabilizar o seu salto no escuro, que é retornar para o sul do país. Ela vende uma rifa cujo prêmio, “uma noite no paraíso”, será uma (única) noite de amor com a mesma. Não podendo mudar de corpo, muda de identidade, ou melhor, ficcionaliza-se, virando Suely. Corpo valioso, o de Hermila (atriz/personagem), e por isso a câmera (na mão), sempre que enquadra dois personagens, mantém o foco fiel à sua mulher.

Apesar do vigor em ir escalando vivências no correr da história – algo bem traduzido pela montagem soberba -, as manobras de Hermila serão para um destino incerto. Incerto porque maior, existencial. Isso está no plano final do filme, primo do também take final de O Anjo Nasceu, de Bressane, com uma estrada cujo fim está para além da tela. Plano alongado – porém bem mais ligeiro que o de 1967, pois o filme de Karim Aïnouz está interessado no movimento, no avanço, e não numa estrada vazia, desolada, longe daquelas fotos e, pior, sem a presença de Hermila.


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