Crime Delicado, de Beto Brant (Brasil, 2005)
por Fabio Diaz Camarneiro

A representação violada

Crime Delicado
, como os demais filmes de Beto Brant, parte de um ato de violência. Mas, se nos longas anteriores a violência era um ato presente, uma afirmação que exigia respostas dos personagens, em Crime Delicado a violência se transforma em interrogação – e o motor do filme não é mais a ação dos personagens, mas suas dúvidas.

O crítico de teatro Antonio Martins é um homem pleno de certezas. Domina com desenvoltura seu métier, sabe utilizar a ironia e o sarcasmo. Mas suas certezas (e sua empáfia) caem por terra depois de um encontro casual com Inês, mulher muito bonita, com uma deficiência física: falta-lhe uma perna. A dúvida se instaura. Martins também se descobre incompleto: falta-lhe aquela mulher. Ele a persegue. Surgem incômodos, no personagem e no público. Após ver o corpo de Inês retratado em quadros numa exposição, Martins foge do mundo controlado em que vive. Tomado por ciúme, loucura e desejo, ele a violenta. Vemos a cena do estupro sem cortes, mas ela causa novas dúvidas. A cena não “convence”.

O crítico, aquele que tem domínio sobre as artimanhas da narrativa, aquele que não é ingênuo sobre o que lhe é apresentado, é também aquele que sucumbe frente às ambigüidades da imagem. O que o personagem de Marco Ricca deseja é um ponto de vista privilegiado. Quer ter o poder de contar sua história como quem escreve uma crítica, mas, no mundo em que vive, a narrativa (herdeira de padrões teatrais, a ele tão caros) está em decadência. É uma decadência da palavra falada, decadência do relato jurídico que pouco parece acrescentar, que parece patético em si. Soberana em Crime Delicado não é a palavra, mas a imagem, com sua força e seu mistério.

Brant coloca em questão suas próprias escolhas estéticas. O crítico de teatro e o artista plástico são alter-egos do diretor de cinema, faces complementares de uma arte que é narrativa (como o teatro), mas também pictórica (como as artes plásticas). Brant realiza um filme fortemente visual, com enquadramentos sempre fixos. Como ele muitas vezes exclui o espaço off, suas imagens remetem ao mesmo tempo aos limites do palco italiano e à moldura das artes plásticas. O filme fala de teatro e pintura para falar de cinema ou, mais exatamente, dos limites (e intersecções) do cinema com outras artes. O universo teatral surge desde a primeira cena. Vemos um palco e uma primeira questão se instaura no espectador: estamos diante do universo do filme ou de uma representação dentro do filme? Tem início o jogo entre o “real” e o “representado”.

Logo, outra questão se impõe: quais os limites do “realismo”? O cinema de Brant (apesar de todas as limitações dessa classificação) aproxima-se a uma tendência realista, o que nos leva a pensar no estatuto de verdade das imagens do cinema contemporâneo. Brant usa longos planos-seqüência, buscando um mundo que se manifesta por si. No improviso dos atores nas cenas do bar, Brant busca a espontaneidade, mas também o acaso. De tão raros, os cortes se tornam mais “explícitos”. A montagem, essa grande violência do cinema com as imagens capturadas pela câmera, esse procedimento que Bazin “interditou” em seus textos. A montagem em Crime Delicado, como os faux raccords do início da carreira de Godard, serve para explicitar a “violência” da construção cinematográfica.

Tudo em Crime Delicado gira em torno dessa “violência”: a violência da representação e as dúvidas que surgem daí. À cena do estupro, falta o toque realista que Brant realiza tão bem em, por exemplo, O Invasor. Mas, mesmo nesse filme, o delírio começava a se impor na cena em que o personagem de Marco Ricca (ele novamente) anda de carro por uma grande avenida ao som de rap. Cena sem sentido dramático, além de representar o limite entre razão e loucura atravessado pelo personagem, esse momento marca um primeiro passo de Brant rumo à questão central de Crime Delicado: a dúvida da representação.

As certezas que se esfacelam frente ao mundo não são apenas as do personagem principal, mas toda uma idéia de fazer cinema. Brant parece querer filmar como um artista pinta seus quadros. O pintor mexicano Felipe Ehrenberg, interpretando José Torres Campana, toca o corpo de Inês, interage com ele, ambos nus. Depois, ele cria um esboço, ele continua o trabalho, refaz traços, escolhe cores, conclui os detalhes. Campana é o oposto de Martins: nessa relação corporal (e não intelectual) com a arte, as ambigüidades que tanto atormentam o crítico tornam-se harmoniosas. Há apenas um homem e sua arte, um artista e uma representação possível daquilo que o move. Uma relação que se admite, desde o início, incompleta.

Todas as buscas dos personagens estão personificadas na musa do filme: Inês e seu olhar, sua presença — e sua ausência. Martins ama Inês porque falta-lhe algo, porque ela é, em algum sentido, incompleta. Ou porque na incompletude dela é que Martins encara seus próprios limites, sua própria finitude. Assim também é a narrativa do filme. Crime Delicado é cinema que não se quer “completo”, mas que busca a lacuna que levará o espectador a perseguir suas próprias respostas e encarar suas próprias falhas. É a frase do ator Adriano Stuart que resume a beleza do filme: “Eu errei”. Não há, no cinema brasileiro recente, “erro” mais necessário e esclarecedor que este Crime Delicado.

 

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