EDITORIAL – Fevereiro e Março 2014

O crepúsculo de uma certa Hollywood
por Fábio Andrade e Filipe Furtado

No final dos anos 1970, o crítico americano Bill Krohn cunhou o termo MIA (“Missing in Action”, no jargão militar) para descrever a produção invisível de realizadores americanos surgidos ainda no sistema de estúdios e que seguiam trabalhando em filmes quase caseiros. Eram o caso, por exemplo, de Filming Othello (1978), de Orson Welles, e Metaphor (1980), de King Vidor. Tratavam-se de obras que prosseguiam mesmo depois de a indústria (e, por consequência, o jornalismo cultural) ter perdido o interesse por eles. Décadas depois, podemos observar fenômeno similar se abatendo sobre muitos dos diretores que estavam em voga justamente no momento de ocaso daqueles veteranos. Para cada Martin Scorsese e Steven Spielberg que se mantiveram nomes fortes dentro do maquinário industrial, é preciso notar sujeitos como Francis Ford Coppola e Brian De Palma, que, por opção ou necessidade, passaram a produzir às margens da mesma indústria que eles ajudaram a redefinir.

O crítico austríaco Alexander Howarth destaca, na sequência em que Harvey Keitel e Robert DeNiro vão ao cinema em Caminhos Perigosos (1973), o momento em que a câmera de Martin Scorsese pára sobre os três pôsteres expostos nas paredes: O Homem dos Olhos de Raio X (1963), de Roger Corman; À Queima Roupa (1967), de John Boorman; e Os Maridos (1970), de John Cassavetes. Ali, em um rápido momento, está a versão de Scorsese para a origem da Nova Hollywood: o filme B (Corman), o filme de arte americanizado (Boorman) e o cinema independente de Nova York (Cassavetes) ocupam o mesmo espaço. Trata-se, afinal, de uma geração de cineastas que se forjou a partir de um desejo de afirmação de autoria muito distante de um cineasta como John Ford, mas que ao mesmo tempo nunca escondeu o desejo de operar dentro deste mesmo maquinário.

De fato, há um efeito histórico, quase cíclico, resultante das próprias rodas da indústria de Hollywood que, de tempo em tempo, reafirma os impiedosos imperativos do capital. Quando Andrew Sarris publica o seminal The American Cinema – proposta de teoria do cinema que amarrava a possibilidade de autoria a uma estrutura de cinema industrial – os autores em seu panteão que àquela altura não estavam mortos – Ophuls, Keaton, Flaherty, Griffith, Murnau – eram condenados a uma produção irregular – Chaplin, Ford, Welles – ou à aposentadoria compulsória – Lang, Sternberg, Renoir – pelas mesmas estruturas que, poucos anos depois, permitiria a chegada de uma nova geração de diretores ao primeiro escalão dos estúdios. Hoje, essa geração conhecida então como Nova Hollywood passa por situação muito parecida com a dos autores eleitos (inclusive como gesto político) por Sarris: se Spielberg e Scorsese permanecem exceções que conseguiram se adaptar (não sem transformações e mesmo eventuais perdas ao vigor de sua obra) aos novos tempos, é notável que diretores como David O. Russell, Christopher Nolan, Alfonso Cuarón e Zack Snyder ocupam, hoje, cadeiras que no passado foram reservadas para Coppola, De Palma, William Friedkin e Terence Malick.

Diante das estreias simultâneas pelos cinemas brasileiros de Virginia, de Coppola, e O Lobo de Wall Street, de Scorsese – e, como contraplano, de Trapaça, de David O. Russell – é impossível não pensar nos diversos caminhos que estes cineastas tomaram para além da presença EM CARTAZ. Monte Hellman, cineasta que surge entre os pupilos de Roger Corman e posteriormente encontra espaço (mesmo que secundário) dentro da indústria, pôde voltar à ativa com Road to Nowhere pelo barateamento do vídeo em alta definição, em um filme produzido por sua filha. Diretores como Brian de Palma, David Lynch e mesmo Woody Allen encontraram sobrevida em produções fora dos EUA, fazendo diáspora oposta aos grandes mestres europeus na aurora de Hollywood. Mesmo um diretor como Malick encontra possibilidade de continuidade em uma mudança radical de posicionamento, saindo da grandiosidade de produção e de ambições comerciais de um Days of Heaven (1978), ou mesmo de um Além da Linha Vermelha (1998), para a lógica do circuito de festivais e do cinema de autor com A Árvore da Vida (2011) e Amor Pleno (2012). Parece-nos oportuno como esforço crítico, portanto, lançar um olhar sobre esta produção marginalizada de cineastas que surgiram ligados mais diretamente à ideia de Nova Hollywood (Brian De Palma, Paul Schrader) ou que começaram no mesmo período, vindo de sistemas de produção mais baratas (George Romero, Joe Dante). Não se trata, evidentemente, de um olhar que se deseja totalizante e definitivo. Ausentes desta edição estão tanto diretores que a revista tratou com atenção num passado recente (Monte Hellman, William Friedkin, Walter Hill), como nomes que produziram pouco ou nada nos últimos anos (Peter Bogdanobich, Bob Rafelson, Michael Cimino).

Se olharmos para a lista de mortos, inválidos e feridos de Sarris, percebe-se que o movimento da indústria permanece igual, mas também que os filmes guardam singularidades que sobrevivem ao rolo compressor do mesmo. Nada mais inoportuno, porém, do que os obituários publicados antes da hora, em especial quando estamos diante de um conjunto de filmes tão vibrante. Interessa-nos, antes de mais nada, perceber como alguns desses filmes – em grande parte ausentes do circuito de lançamentos no Brasil, e que em geral tampouco tiveram melhor sorte em seu país de origem – retratam e reverberam essa mesma condição de artistas “missing in action”, seja pelo olhar distanciado e crítico que eles jogam (intencionalmente ou não) sobre as mesmas estruturas que hoje os empurram para à margem, seja por como eles constatam algumas mudanças de paradigmas dentro dos gêneros que eles ajudaram a reinventar (caso de John Carpenter e Wes Craven, por exemplo). Interessam menos as condições de produção em si e mais o resultado que ela produz na superfície mesma das obras (os distintos usos do vídeo em Caminho para o Nada, de Monte Hellman, Diário dos Mortos, de George Romero, 4:44, de Abel Ferrara, ou em The Canyons, de Paul Schrader) e a influência no universo temático dos filmes. Essa sensação de um certo exílio, da produção de um não-lugar, e a onipresença de uma desconfiança em relação à própria ficção parece atravessar todo esse conjunto de filmes com uma intensidade que não se vê nas produções vindas do centro da indústria, por exemplo.

A ação do tempo no próprio material cinematográfico parece se esparramar, em realidade, por toda esta edição da Cinética. Na EM VISTA, a apropriação de registros presentes de imagens é central para filmes tão diferentes quanto Um Dia na Vida, de Eduardo Coutinho, Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças, de Arthur Tuoto, e Terror!, de Ben RiversA necessidade de repensar certos paradigmas cinematográficos e críticos ao longo do tempo é também questão central para a crítica, historiadora, teórica e curadora Nicole Brenez, com quem fizemos uma longa entrevista, publicada agora na EM CAMPO. Nessa mesma seção – e em parte do EM CARTAZ – é também possível perceber um notável amadurecimento em filmes recentes de diretores brasileiros que começaram a produzir entre o final da década de 1990 e a primeira década dos 2000, e que hoje possuem uma filmografia já volumosa e cristalizada (como Marco Dutra, Ricardo Pretti e Alê Abreu), além da chegada de jovens nomes que, mais do que promessas, concretizam alguns dos filmes mais impactantes exibidos na última Mostra de Tiradentes (caso de Leonardo Mouramateus, Gabriel Martins, Miguel Antunes Ramos, Alexandre Wahrhaftig e Helena Ungaretti), que ganha aqui uma cobertura expandida.

Esta nova edição marca também o começo de uma nova fase na editoria da revista, agora assinada em dupla, por Fábio Andrade e Filipe Furtado. Esperamos que a força redobrada resulte em uma revista com ênfase ainda mais plural em seus olhares e proposições. Boa leitura.