in loco
A utilidade de Tudo Azul
por Paulo Santos Lima

Como objeto isolado, ainda que longe da modernidade de um Rio 40 Graus, Tudo Azul já carregava alguns traços bastante louváveis para aquilo que seria apenas mais um filme de estúdio resguardado de uma aventura moderna. A “ousadia” se faz mais pela inclusão de elementos “realistas” dentro de um típico lamê formalista dos estúdios. Produção independente, na qual não resta dúvida de que, ao estar fora de uma casa como a Atlântida ou Vera Cruz, permita algo como o protagonista, Ananias, ser de uma grande ambigüidade. Nefelibata confesso, é amante do ócio criativo, da contemplação do mundo, de um romantismo poético. Essa sensibilidade rende-lhe uma grande impostura, entre ser um péssimo marido e galantear outras e não dar a mínima à penca de filhos, uma vez que ele passa as noites à procura de uma oportunidade no mundo da música, grande compositor que é.

Ora simpático, ora clínico com seu personagem, o filme nos apresenta um duplo olhar sobre o mundo: um que é mais ácido, segundo os olhos de Ananias, e outro amaciado, visto pelo filme (seu chefe no burocrático serviço de contador é mais um conselheiro, quase um pai terno que perdoa as faltas do filho). Nessa multiplicidade na construção da diegese, surge a enorme seqüência do sonho, aquela que abriga os inúmeros musicais e também as fantasias de Ananias: numa desestruturação do esqueleto usual nos musicais clássicos, em vez de números salpicados ao longo da trama, temos um enorme bloco de mais de dez minutos, que é como um LP ilustrado, com os números musicais chegando quase ao nível do esterço.  Aqui, o filme não faz o melhor na estética, mas abre um manancial de “contravenções”: Ananias torna-se uma celebridade musical, mantém-se num belíssimo triângulo amoroso com sua esposa e a amante (sob o mesmo teto e com divisão de atividades entre as moças) e até beijo de boca aberta.

Ademais, se Ananias não é o pobre que tanto arrepiava o cinema “industrial” brasileiro, está longe do garbo: é mais um amarfanhado classe média em busca do sonho impossível. E, em meio a uma ótima decupagem no primeiro terço, com tomadas na rua e câmera em movimento acompanhando as pessoas, vem numa frase de Ananias a síntese de um olhar mais livre: “O mundo não aceita como sou e eu não aceito como o mundo é”. Que mundo é esse, afinal, que se faz belo na azias? Não é propriamente um mundo cosmopolita, encerado, do cinema clássico. É algo, assim, no meio do caminho disso.

Impressionante como o habilidoso Tudo Azul (1951) passeou por alguns assuntos cruciais pautados para as mesas do festival. A restauração, por exemplo, valiosa quando recupera um objeto e o dispõe a leituras contemporâneas – que foi o caso aqui, pois este filme de Moacyr Fenelon traz alguns procedimentos cinematográficos que estariam nas discussões dos congressos nos anos 50. O festival cumpriu, assim, o papel primeiro de uma mostra: fazer com que o tour valha como transformação, renovação e construção do olhar, jamais elencando títulos em dissociação plena, em desconexão reflexiva — ou seja, aprimorar materialmente idéias e objetos. Tudo Azul, útil trabalho na discussão sobre a modernização dos anos 50, sai renovado de Ouro Preto.


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