Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton (Brasil, 2006)
por Cléber Eduardo

Muita tortura, pouca força

Adaptação do livro de Frei Betto, que relata as ações dos frades dominicanos em apoio a resistência armada ao regime militar, Batismo de Sangue é parte de um processo. Quase Dois Irmãos, Cabra Cega, Araguaya, Sonhos e Desejos, 1972, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias – estes são alguns filmes de ficção brasileiros dos últimos três anos a tratar de temas relacionados com o período da ditadura militar (se citarmos documentários, há outros tantos). Claro que é uma época hiper-presente no imaginário brasileiro, mas ainda assim a extrema recorrência mais recente traz dúvidas à mente se há algo que a explique.

O jornalista mineiro Marcelo Miranda, do site Cinequanon e do jornal O Tempo (de Belo Horizonte), por exemplo, levanta uma hipótese óbvia, mas que, justamente pela obviedade, pode passar em branco para os críticos: como a produção no Brasil sofre constantes atrasos, adiamentos e interrupções, alguns projetos chegaram com atraso, mas talvez haja um reflexo dos 40 anos de aniversário do golpe em 2004 (o mesmo aconteceu, em escala menor, nos 500 Anos do Descobrimento, que inspiraram – não sem alguns atrasos – filmes sobre nossa fundação/formação – Desmundo, Brava Gente Brasileira, Hans Staden). Como conhecemos a dinâmica de editais e leis de incentivos, pautadas em alguma medida pelo apelo e oportunismo de um tema em determinado momento, é presumível que a escolha dos “verdes (oliva) anos 60/70”, de alguma forma, leva em consideração este facilitador de captação de recursos. Esse contexto aqui levantado diz algo de nosso sistema de produção, modelador das características de vários projetos a serem apresentados em concursos, o que, segundo o crítico Inácio Araújo, é um aspecto estrutural a ser discutido de forma mais ampla e profunda.

Não se está vetando a possibilidade desses filmes, nascidos com maior ou menor influência de determinadas datas, chegarem à tela com energia na encenação e convicção na aproximação com o passado. A questão é verificar, na tela, como se dá essa relação: o que se filma desse período? Com qual proposta? Para extrair quais sentidos? Filmes empenhados em representar circunstâncias ou acontecimentos caros à nossa recente História não são relevantes cinematograficamente apenas porque propõem um registro de nosso passado. O documentário O Engenho de Zé Lins, de Vladimir Carvalho, por exemplo, não é forte porque constrói e restaura memórias, mas pela sua dinâmica de organização de sons e imagens. Nenhum assunto é blindado por conta de sua importância. Sentidos são construídos por soma de planos, por tempos de enquadramentos, por estruturas narrativas, por um sistema elaborado pelos realizadores. Sem essa organização, temas definham na tela.

Batismo de Sangue nos coloca diante de todas essas reflexões e, se não resulta em exemplar particularmente bem sucedido desse segmento contemporâneo, ao menos estimula questionamentos a partir de suas opções. Dividindo a narrativa em alguns núcleos condutores, que se desdobram em frentes paralelas diluidoras umas das outras, o filme concentra-se em um grupo de padres dominicanos que, ao colaborarem com um grupo dedicado à luta armada (comandada pela ALN/Maringhela), pagam o preço no pau de arara e tomam bordoada das forças de repressão (comandada pelo delegado Fleury). Não é preciso muitos minutos para se perceber o caráter pedagógico de Ratton e sua maneira ilustrativa de transmitir as características e a atmosfera de um período. Os letreiros de contextualização histórica no início estabelecem uma ponte didática entre o espectador de hoje e o Brasil de 1968, colocando, a partir dessa opção pela ponte, uma distância entre o período e o Brasil de 2006 contra o qual o filme parece empenhado em lutar.

A aproximação dos dois tempos, o do filme e o dos fatos, vai se dar na própria mise-en-scéne: o filme começa em cima das árvores, com a câmera em uma grua, e chega até seu personagem no solo, que caminha em direção ao nosso olhar. Vemos um movimento de descida do filme até o chão e uma aproximação da lente com a ação. Adentramos em 1968. Uma manobra quase idêntica àquela feita por Bernardo Bertolucci na introdução de Os Sonhadores (a câmera está na Torre Eiffel, desce até o narrador, também em 1968, e deixa-o se distanciar). No restante do filme de Bertolucci, a voz e o olhar, sem disfarçar sua lógica retroativa, ficará fora de 68.

Em Batismo de Sangue, no entanto, a distância é maior. Um flashback ligeiro, que se apresenta como trauma do personagem, nos oferta a imagem de um sujeito branco, em pose autoritária. Essa informação é ignorada por nós até ali, impondo uma distância entre personagem e espectador, um desconhecimento do que estamos a ver. Após o enforcamento desse personagem, a câmera acentua essa distância novamente. Vemos um plano geral do corpo pendurado na árvore, ele lá, nós aqui, sem termos um contato mais próximo com seu fim. Não se está afirmando aqui uma intencionalidade do diretor em executar essa operação para obter o efeito descrito acima, e é até bastante provável que, nessa construção de sentido, nada disso tenha sido racionalizado. No entanto, está na tela como tal, e nos parece uma imagem muito precisa para traduzir o olhar do filme para seus acontecimentos e para o momento histórico enfocado.

Isso porque Batismo de Sangue, nessa relação de aproximação e distanciamento com seus personagens “de” 1968 (e não “em” 1968), não se instala nunca em seu mundo. Ratton faz alusões e apóia-se em conotações, com diálogos, cenografia, figurinos e personagens extraídos da realidade, mas, apesar desses sinais todos de época, nada disso é necessariamente real à nossa percepção. Por que? Essas questão é uma batata quente porque uma ou várias respostas a ela podem pavimentar um regra de como se deve e não se deve filmar determinados circunstâncias. De qualquer forma, para um filme aparentemente pouco interessado em trabalhar com o distanciamento crítico e com a reflexividade de sua linguagem, uma crise se coloca. Seja pela forma burocrática de organizar as cenas dentro de uma dinâmica de narratividade convencional, seja pela formalidade das interpretações e dos diálogos, Batismo de Sangue está sempre ameaçando a suspensão da descrença e deixando à mostra as operações da representação (não seus efeitos de real).

Seria necessário, então, adotar os travellings e cortes agressivos de um Querô, exibido aqui em Brasília, para se obter uma imagem autêntica de algo do qual estamos distantes? Haveria uma necessidade de se tirar a câmera rapidamente dos atores, como notou em conversa recente o roteirista Luiz Bolognesi, de modo a não se evidenciar a representação?A percepção da representação, segundo Bolognesi, é hoje algo a ser evitado, já que poucas propostas desejam escancarar seus mecanismos de produção de sentidos e de emoções. Deixar o plano por mais tempo passa a ser um risco segundo esse raciocínio – daí, talvez, a recorrência de uma determinada maneira de se produzir autenticidade e efeitos de real. Batismo de Sangue evita a chave do realismo de impacto (adotada em Querô), mas não encontra outro registro adequado à sua proposta. A representação está ali ameaçando a ficção, ao invés de construí-la – como é o caso de alguns travellings frontais de aproximação com os atores. Vemos e ouvimos “os signos 68”, o trabalho de reconstituição, mas não há o que nos transporte até lá.

Uma tentativa de se colocar mais voltagem no quadro, para compensar a anemia da mise-en-scéne e da montagem, é a reincidência das situações de tortura física. A violência contra o corpo passa a ser uma muleta estética, não apenas uma reivindicação da dramaturgia ali desenvolvida. Quando o filme começa a girar em falso, recorre-se às agressões dos militares, que retornam em flashback. A tortura do espectador, cruel, quase sádica, torna-se saída fácil, um forma de lembrá-lo da gravidade do material exposto, de sacudi-lo Sem procurar o impacto na linguagem, tenta encontrá-la dentro do plano, junto aos atores (Caio Blat, Daniel Oliveira), também apoiado no maniqueísmo caricato dos torturadores, que, se não está longe da verdade dos fatos, carrega na imagem uma banalização da situação. Eis uma diferença, nem sempre problematizada por Ratton: a imagem tem outro estatuto, que não é a do fato, e há que se levá-lo em conta. Apoiar-se no maniqueísmo como forma de representar o mal não é necessariamente a melhor maneira de criar uma imagem poderosa do mal. Pode ser apenas clichê. Embora se possa entender a recorrência das torturas, como forma de aproximação entre personagem e espectador pela dor, cabe lembrar que o torturador, na lógica diegética do filme, é a própria instância narradora. Quem nos obriga a ver as imagens não é Fleury: é Ratton. E dele é a responsabilidade pelo que faz com os espectadores diante de seus personagens.

Essa é apenas uma entra tantas questões levantadas por Batismo de Sangue. Questões a serem pensadas a partir do filme – mas não, necessariamente, que sejam pensadas no filme e pelo filme.

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