in loco - cobertura dos festivais
Ventos de Valls, de Pablo Lobato (Brasil, 2013)
por Juliano Gomes

Caminho para o nada

Pablo Lobato nos coloca em uma situação bastante difícil como espectador ou crítico diante de Ventos de Valls. O primeiro desafio diz respeito a uma tendência já observada em alguns textos aqui na Cinética de alguns filmes (especificamente Perto de Casa e Otto, filmes feitos por artistas muito próximos ao aqui em questão) que colocam membros da família dos diretores como personagens. E o segundo, decorrente do primeiro, diz respeito à questão do estatuto de o que pode ser arte ou não, quais limites são estes de o que pode ser artístico, de o que diz respeito a uma comunidade ou o de o que só diz respeito a um grupo muito específico de pessoas (no caso destes exemplos, a família).

Dadas tais condições, permanecemos perante o documentário como uma espécie de estrangeiros ao longo de suas imagens de uma viagem de família (que descobrimos ser a da esposa do diretor ao longo da narrativa), em busca de uma origem que já sabemos traumática desde o início. Somos colocados diante de uma sequência de situações que parecem se suceder sob um aparente despropósito: depoimentos de lembranças de família; seu exílio forçado; suas raízes perdidas,  evocadas de uma maneira fragmentária e abrupta. Mesmo quando o foco do filme se dirige ao seu eixo de força de maior “interesse geral” (o drama de uma família exposta à ditadura de Franco na Espanha) há uma espécie de déficit de articulações do qual todo o filme padece, que só nos afasta daquilo que é mostrado.
Neste sentido, é notável a insistência de uma câmera cuja instabilidade só reflete uma postura de uma busca inconsciente que não sabe o que procurar (o exemplo máximo disso é um trecho onde a câmara balança por um longo tempo sob a justificativa de que estava cheia de formigas, após filmar de perto um formigueiro). Não por acaso, o diretor evocou, no debate, a figura do “cavalo” dos rituais religiosos de incorporação. Há aí uma espécie de afirmação desta inconsciência que se orgulha de si (possivelmente em oposição a um suposto excesso programático, de intenções e posições claras diante da matéria do mundo) que só reproduz seu próprio vácuo originário.

A ideia de articulação e de composição em arte e em cinema de fato podem advir de procedimentos variados. Há filmes, por exemplo, em que a montagem, ferramenta composicional por excelência, só exerce a função de ordenação de trechos cuja força autônoma suplanta as possíveis relações entre estas partes, cujo exemplo primordial seriam os filmes dos irmãos Lumiére (não por acaso, os primeiros cineastas a transformar família em grande arte). Mas aí a força composicional está disposta em termos de um extraordinário senso de composição do quadro, que torna as modulações de luz e encenação produtoras de um espetáculo que borra com brilho possíveis divisões entre o real e o artificial em arte, transformando cenas absolutamente controladas em libelos da força originária do aparato cinematográfico e da chamada inscrição verdadeira que a câmera opera “inconscientemente”.

Seguindo a trilha desta produção, chegamos aos exemplos de Jonas Mekas, Andy Warhol, David Perlov, o Cinema Direto Americano, o Jean Eustache de Número Zero ou o recente He Fengming de Wang Bing. Nestes arquitetos da simplicidade da cena, se esconde um trabalho radical de transformação e alteração das matérias que constituirá uma aparência de apreensão direta ou mesmo de aleatoriedade e despropósito. É esta operação que os distingue da banalidade absoluta, e não a origem dos personagens de seus filmes, ou uma suposta adesão a um fluxo maior (seja ele cósmico, religioso, metafísico). A observação não existe como coisa em si (o trabalho de montagem de grande parte destes artistas não raro dura anos a fio). Para “acontecer cinema”, é preciso, antes de tudo, de trabalho, de proposição, de composição de fluxos que, a partir de seu contato, produzam faíscas. A posição da busca, de uma certa atitude de não anterioridade das obras, de ir encontrar um filme, de inventar um filme na edição, de esperar o filme “ir se fazendo” (não por acaso, o diretor afirmou no debate que a montagem aqui foi uma espécie de “salvação”) às vezes pode esconder uma postura de auto-suficiência que não pode compreender o que encontra, pois lhe falta ímpeto que constitua uma hipótese qualquer de seu procurar.

Arte é aposta. Um salto que exige esforço, violência e atenção. Buscar nada tem a ver com passividade; é um verbo de ação. Ação que em Ventos de Valls resulta no encontro com uma grande imagem, que é a da pirâmide humana em uma praça espanhola. Tal sequência representa e metaforiza justamente essa brutalidade da construção e do risco de se almejar erigir algo que exale beleza não vulgar. E esta imagem, e seu isolamento no fluxo do filme, sintetiza o solipsismo estéril que culmina no terço final do filme, onde se agrupam as intervenções de uma criança que faz pequenos números para a câmera, estimulados pelo pai-câmera. A busca do efeito sem construção raramente foi exposta de uma maneira tão frontal e direta no cinema brasileiro recente. E esta abordagem parece amparada por um conjunto de ideias que lhe fornecem um confortável abrigo moral: poético, experimental, sinceridade, registro, reflexividade – tudo isto parece certificar uma marca de nascença que protege a obra, que a exime de articulação qualquer. 

A fobia do maiúsculo é talvez a face visível de um processo de pré-legitimação que contamina as obras e a rede de discursos que as circundam (no caso do coletivo Teia, esta imbricação é notável, como na questão do conceito de dispositivo, por exemplo) e só resta esterilidade nas duas pontas do processo da experiência estética. Não por acaso, meu artigo sobre a produção deste mesmo coletivo, aponta para algo que já se percebe em sua produção recente e que poderia ser sintetizado numa “urgência da ficção”, entendida como processo amplo, como ação de composição propositiva, como artesanato de mundo possíveis. Está em curso e latente justamente esta encruzilhada que muitos filmes do cinema brasileiro recente conscientemente parecem encenar (um conflito de tomada de posição, num sentido amplo, político e espacial). E Ventos de Valls, de uma maneira curiosamente consciente, parece recuar diante desta estrada aberta.

Janeiro de 2013

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