in loco - cobertura dos festivais
Colando
espelhos
Os 10 anos de produção da Teia exibidos no
Cine BH
por Juliano Gomes
Pela
sua compacta duração e formato (com uma grande quantidade
de filmes de interesse exibidos na maior parte apenas uma vez,
de maneira simultânea), a sexta edição do
Cine BH trazia um certo desafio à ideia de uma cobertura,
já que obrigava a fazer opções que implicariam
em perder algo importante para se dar uma ideia do todo.
A opção, então, foi se concentrar em duas
mostras retrospectivas bastante especiais - aquela dedicada ao
cineasta francês Leos Carax (que dará motivo para
um outro futuro texto) e a do coletivo mineiro Teia, na qual se
foca esse texto aqui.
A oportunidade de ver uma programação selecionada
pelo grupo para marcar os dez anos de suas atividades pareceu
um bom momento para refletir sobre esta produção
que já se apresenta como uma realidade constituída
- no sentido de que podemos sentir seus efeitos e desdobramentos
em muitos outros filmes, e também podemos refletir sobre
o trajeto estético do grupo em obras que guardam uma margem
razoável de diferenças mas, também, uma bastante
sensível área de interseção de procedimentos
e intenções. Assim, a proposta aqui é navegar
por alguns pontos destas áreas para tentar encontrar ecos
internos, entre os próprios filmes, e traçar pontos
de inflexão desse instigante conjunto de filmes que é,
sem dúvida, parte decisiva da produção de
cinema no Brasil nos últimos dez anos. Se há uma
progressiva solidez da produção documental brasileira
ainda em curso (escrevo no momento em que se anuncia que, na próxima
mostra Aurora, de Tiradentes - ótimo termômetro de
nossa produção contemporânea - 5 dos 7 filmes
selecionados são documentários), trata-se de um
processo desencadeado em boa parte por filmes como Acidente,
de Cao Guimarães e Pablo Lobato, e O Céu sobre
os Ombros, de Sergio Borges, por exemplo.
Armadilhas do olhar
Definitivamente, o traço que sobressai da visão
do grupo de filmes realizados pela Teia é justamente a
ideia da presença, de um olhar que tende a se impor sobre
as coisas. Uma visão que, como gesto, cria deliberadamente,
intervém e realça esta intervenção.
Há algo que se coloca neste espaço de mediação
que é a tela, que se coloca entre, e que concebe um espaço
que tem como premissa esta consciência da dimensão
imagética.
Em
primeiro lugar, isto se dá pela maneira de enquadrar e
constituir as cenas. Há uma espécie de afirmação
do espaço da tela na medida em que se ressaltam suas possibilidades
plásticas de maneira muito diretas. Em filmes como Acidente,
Bronze Revirado (foto), O Céu Sobre os Ombros,
Nacos de Pele e Silêncio, prevalece uma
espécie de força de atração para as
unidades, no sentido do primeiro cinema. Os segmentos têm
uma força própria que chama atenção
para si antes de maneira isolada, na qual o conjunto desses efeitos
se dá em nível secundário. São cenas,
fragmentos que apontam para si mesmos, para dentro, para sua força
plástica, para suas variações de cor e luz,
num movimento em direção a uma possibilidade de
abstração bastante direta, pictórica, fusional
até.
Há uma constituição de um repertório
muito marcado de formas visuais e sonoras que estabelecem um regime
de relações bastante visível. A operação
de superação da transparência, de uma acintosa
negação do cinema como espelho do mundo, do documentário
como lugar de grandes temas e dramas, se deu a partir de um processo
de construção e mesmo tematização
do olhar do olhar. Notas Flanantes, de Clarissa Campolina,
é bastante direto neste sentido: a cidade só existe
a partir do meu olhar; o que vejo é fruto de uma criação.
Mesmo que o recurso da aleatoriedade aja em direção
a uma força dessubjetivante (não sou “eu”
quem escolhe), permanece uma espécie de ação
de verificação das possibilidades de intervenção
visual e sonora sobre as coisas: o mundo como uma espécie
de reserva de elementos que a percepção ativa, transforma
e dá vida.
Um elemento como a água vai se tornar uma espécie
de refrão entre os filmes, assumindo seus mais diversos
estados e formas, metaforizando esta tendência a uma translucidez
que distorce as coisas, mas cultiva igualmente sua opacidade.
As cenas muitas vezes são justamente este ato de transformação
se dando na imagem, este trabalho do olhar que busca no mundo
uma possibilidade de representação de si mesmo,
não só nas superfícies translúcidas
mas, no foco geral, nestas “ações criadoras”
(na carta do segmento de Descaminhos, nos dispositivos
de Acidente e Notas Flanantes, na geometria
e na luz de Outono, na dissociação
entre som e imagem em Trecho, no trecho de penumbra em
Girimunho, na autorreflexão final de A Falta
que me Faz, para citar alguns exemplos).
Talvez
Acidente (foto) seja o ponto marcante deste processo,
no qual prevalece um dimensão conceitual na ordenação
da obra que não se deixa abalar por suas unidades menores,
mas que escapa na maioria das vezes de uma postura reiterativa
de seus próprios procedimentos de intervenção,
alteração e ruído. Na contramão do
acaso, está um desejo de unificação que se
reconfigura mas persiste. Cada segmento busca sua regra, ou seu
tom, ou mesmo sua dissonância, de forma que a armação
exterior (poema, cidades) funciona como base para armações
“interiores” que esboçam articulações
e modulações de conjunto. Em outras palavras, a
anterioridade conceitual não é a base única
na qual o filme se desenvolve, mas é uma ferramenta de
exercício de articulação dos pequenos circuitos
dos segmentos-cidade. Nos momentos em que esse processo perde
força, há justamente esta reiteração
da ferramenta expressiva, da busca pelo efeito em detrimento de
sua construção, em especial na banda sonora. O jogo
entre cena e conceito se desequilibra no momento em que as dimensões
tendem a um caminho único e esperado, sem negociação,
repisando terrenos e assumindo rótulos, como no canto lírico
sobre imagens do rodeio, e em grande parte dos recursos sonoros
do Grivo - que ao longo dos vários filmes acabam por muitas
vezes constituir uma atmosfera absolutamente segura de um cinema
"experimental" a partir de timbres que, logo na primeira
repetição, já nos soam absolutamente marcados
neste registro.
A
questão que se coloca é justamente a da negociação,
da troca e disputa entre as forças que formam os filmes.
Trata-se desta medida em que o autor e a obra se dissociam para
reinventar-se mutuamente, como em, por exemplo, O Céu
sobre os Ombros (foto), onde há uma predominância
da força das formas visuais no quadro como instância
organizadora, mas esta é combinada com uma articulação
narrativa que constitui e coaduna opacidade e fluência entre
os trechos. Há um jogo de expectativas constituído
pelos fragmentos que modula a atenção no nível
da construção/desconstrução dos personagens.
Se essas pessoas são o que elas são na tela, se
elas são a própria presença, há uma
força no filme que resulta de uma imprevisibilidade que
não se uniformiza. Não é de surpresas arbitrárias
que seus méritos advêm, mas sim da possibilidade
de ressignificação que os trechos têm em relação
aos anteriores, sejam eles das mesmas pessoas ou dos outros personagens.
E a opacidade do conceito que reúne mantém sua força
propulsora porque joga com ela, armando e desarmando possíveis
lógicas, modulando suas relações internas.
Essa dimensão do artifício toma uma forma mais “tradicional”,
tratando a imagem como um lugar de múltiplas camadas visuais
e sonoras, nos filmes de Leonardo Barcelos (Nacos de Pele
e Balança Mas Não Cai) - ainda que
se faça presente, em menor medida, em alguns outros filmes,
como Silêncio. É justamente o contrário
à uniformidade de um jogo mutante que não deixa
decolar narrativamente Balança Mas Não Cai,
por exemplo. Há ali uma espécie de prisão
conceitual que, mesmo que aparente certa amplitude de ações
e registros, não cessa de reiterar um mesmo regime, uma
mesma relação com suas próprias questões.
Jardins fechados
O plano aproximado feito por lente teleobjetiva, uma das marcas
visuais mais fortes do conjunto geral dos filmes, apresenta em
si um paradoxo simples: para se aproximar é preciso estar
distanciado. Trata-se de uma forma de olhar que pressupõe
distancia. Não por acaso, uma forma de olhar que se dá
indiretamente, mediada pela imagem, pelo aparato. Esses detalhes,
ao mesmo tempo em que nos apresentam texturas, relevos, superfícies
e consistência, nos dando um acesso íntimo por este
caminho, realizam uma operação extramente violenta
com a matéria filmada: o plano arranca os seres e os objetos
dos teus contextos, grupos, fundos.
O
close é um ferramenta de isolamento e também
de taxonomia. Ele joga as matérias em um espaço
abstrato e conceitual, onde as ligações são
imaginadas mais do que verificadas. É como se o mundo tivesse
explodido e os filmes fossem remontando os cacos à sua
maneira, um de cada vez. As imagens ocupam um certo nível
homogêneo, equivalente, equiparado pela dimensão
plástica. Se tudo é imagem, tudo se equipara, e
todas as ligações são possíveis. Se
esta liberação das relações do mundo
é extramente potente como horizonte de criação,
por outro lado ela exige que as ligações construídas
tenham solidez para restituir-lhes o pertencimento a este território
agora inventado. É preciso um meticuloso esforço
de articulação e construção (na linha
de Vertov, Pelechian, Mekas, Hitchcock, entre outros cineastas
da fragmentação) para erigir este novo mundo.
Jardim Fechado, um dos primeiros curtas de Marília
Rocha, parece encenar frontalmente esta questão do isolamento
e de seus efeitos. Há um combinação entre
o que são nitidamente experiências individuais e
pequenos fragmentos, visões desse ambiente que criam um
sistema, um pequeno cosmos que liga estas duas instâncias.
De certa maneira, está em jogo uma vontade de fusão
(de novo, a água), de pertencimento, de religação
pela experiência, pelo toque, pela imersão. A câmera
se torna parte do corpo, se torna uma espécie de ação
entre outras que o filme apresenta como possibilidade das mãos.
Esses dois regimes vão se direcionar a este estado fusional
que se dá via fragmentação e coleção
de pequenos contatos e visões. Esta poética das
matérias quer, curiosamente, atingir esse estado pré
ou pós individual via separação e isolamento,
via ideias e montagem. A construção deste organismo,
desta ligação vital entre personagem e matéria
do mundo é uma experiência que nasce deste terreno
individual e subjetivo. É algo que se faz só. Para
descobrir este fundo comum das matérias (o que liga tudo
que pode ser tocado) é preciso se afastar, se recolher,
se isolar para olhar melhor e daí reconstituir esta experiência
de pertencimento (também Aboio, Trecho, Nascente,
Acidente, Adormecidos, O Céu Sobre
os Ombros). Criam-se então pequenas constelações,
partículas de luz combinadas que vão se reconectar
neste espaço etéreo do pensamento e das sensações.
Um sentimento de suspensão é percebido na experiência
desses filmes citados aqui acima. Há um vôo que estes
fragmentos realizam a partir do momento de sua aparição,
pois em sua primeira dimensão são forma e cor, e
como a ligação não será por contiguidade
e virá somente na próxima imagem, há um certo
estado de leveza sugerido nessas imagens. Não só
a forte presença de elementos orgânicos, mas principalmente
esta força de separação acaba por criar esta
linha de dissipação, como que restituindo um ambiente
onde as partes possam viver como que por si só, sendo somente
sua presença e manifestação na tela, sem
laços anteriores.
O caminho desta reconstituição suprime em grande
parte a possibilidade de choque, de confronto direto. Neste ambiente
gasoso, dessas imagens flutuantes, tudo é móvel
e combinável.
Há
então um processo de desintegração da possibilidade
das forças contrárias, do embate direto, na tela,
de forças concorrentes. A própria ideia de conflito,
drama, acaba por desintegrar-se em nome da constituição
destas delicadas composições indiretas. Ocorre uma
espécie de supressão da violência na imagem,
das afetações de alta voltagem, ou mesmo dos diálogos.
Se eles aparecem, há sempre um movimento de fuga, apaziguamento
ou dissipação. Essa linha se dá com um pouco
mais de relevo na convivência entre o discurso do amor e
seus vestígios no corpo, na presença marcante de
gestos violentos nestes dois domínios. Ali, percebe-se
um desvio e uma busca de embate, de um cara a cara que se dá
em um nível terreno, imanente. Neste sentido, também
se direciona O Céu sobre os Ombros ou Nem
Marcha nem Chouta (foto), nos quais podemos sentir a entrada
de elementos patológicos, como uma espécie de visada
da morte, ou de sua possibilidade. Muda-se então o eixo
da dissolução, do pertencimento.
É
Girimunho que vai encarar de frente este problema na
morte, colocando-o no centro de sua dramaturgia - pois é
a morte concreta e seus ecos que dão forma ao filme. Trata-se
de um exercício de variações sobre o tema
da morte, do desaparecimento (e do aparecimento). Não por
acaso, é um dos filmes onde podemos ver mais interação
direta, cenas com mais de um personagem, e uma dramaturgia mais
límpida, que gira em torno de um centro específico,
mas redundando em poucos momentos. De certa maneira, a negação
de uma forma mais direta de encenação que
a primeira geração de filmes da Teia e que seus
membros individualmente adotaram (com exceção de,
por exemplo, Dois Homens) começa a ser flexibilizada
e repensada nos últimos três ou quatro anos de sua
produção. O isolamento dá lugar ao contracenar
e ao diálogo, e a inserção do homem no espaço,
à perspectiva, a uma clareza que escapa da banalidade justamente
por ser formada a partir de um amplo leque de experiências
de fragmentação. Esse escopo permite que os filmes
(também O Céu sobre os Ombros) mantenham
uma duplicidade em seu desenvolvimento, no esmero de uma construção
espacial complexa fragmentada, mas que não se esgota em
si mesmo, impulsionando um drama que é da vida dos personagens
entre si e de seus choques, desencaixes, e do que resulta
de seus atritos. O movimento do céu até a pedra
que vemos em A Falta que me Faz parece apontar neste
sentido de um desejo de concretude e densidade. O Céu
sobre os Ombros dá mais um passo neste caminho e Girimunho
confirma este percurso, assumindo uma transparência de intenções
e referências, e trabalhando a partir dos desdobramentos
dessa matriz essencialmente partilhada.
Cerrar a porta
Procurei
traçar aqui algumas linhas de força que, mas do
que constituir semelhança, possam confirmar a possibilidade
deste grupo de realizadores manter a conexão fértil de
sua obra com seu tempo também no próximo decênio
e para além. De fato, é neste sentido que a questão
do pertencimento é chave, na medida em que o momento do
cinema brasileiro é de fato outro, onde a retórica
dos coletivos parece começar a gerar a obras que falam
por si e diminuir a suposta necessidade desse “suplemento”.
A Teia parece ser parte essencial nesta constituição
e nessa correção de rota, percebendo a importância
de sair de si, de ocupar a mesma posição de destaque
na medida em que expõe as obras a um movimento maior, mesmo
que superficialmente pareça um passo atrás, em direção
às convenções. Esse caminho tortuoso é
provavelmente o trunfo do estrangeiro, do invasor, daquele educado
em outra língua, que num misto de ignorância e coragem
percebe a força dos seus erros e dessarranjos e os reverte
em domínio próprio. É neste sentido que é
preciso destinar a força e atenção necessária,
investir num desconforto de criação, que possa transformar
a divergência em mola propulsora, mesmo que desague surpreendentemente
em águas límpidas. Aguardemos.
Dezembro de 2012
editoria@revistacinetica.com.br
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