in loco - cobertura dos festivais
Plano de conjunto
por Fábio Andrade
A primeira pessoa dos textos desta cobertura não
é um hábito, tampouco um esforço de estilo.
Ela é a tentativa de expressar uma necessidade. No caso
de As Horas Vulgares, esse aspecto revisionista, mencionado
no primeiro texto, ganha um outro sentido: afinal, ao lado de
Strovengah, de André Sampaio, As Horas Vulgares
é um dos filmes a que eu já havia assistido. Ou
quase, uma vez que, desde meu contato preliminar com o filme em
DVD, ele ganhou toda uma edição de som e perdeu
alguns planos. Perdeu também, como em quase toda revisão,
muito do estranhamento diante de seus limites, intenções
e incômodos (parte deles muito bem registrada na
crítica de Juliano Gomes, aqui na Cinética),
a tal palavra que vai e volta aqui pela Mostra, tentando dar conta
do inexplicável.
Mas, sobretudo, As Horas Vulgares ganhou o cinema. O
cinema, primeiramente, como espaço físico de exibição:As
Horas Vulgares depende de maneira vital da escuridão
da sala, da luminosidade da projeção, da possibilidade
de concentração e atenção cuidadosamente
aprimorada ao longo dos anos para permitir o máximo de
concentração. Mesmo com ela, é sempre possível
que a experiência se quebre antes de acontecer. É
um filme, afinal, feito em película – mesmo que exibido
em digital – e que usa os grãos do 16mm preto e branco
como um dado tão importante quanto os atores em cena. As
Horas Vulgares é um filme de cinema e pro cinema,
e ali, naquele espaço, o filme propõe ao espectador
um pacto que, como o firmado pelos personagens no silêncio
da convivência, demanda um sacrifício. Para que o
filme aconteça, é preciso estar disposto a sucumbir
sob seu peso.
Por
cinema, também, penso o fato de As Horas Vulgares
ser um filme de mise en scène como poucos visto
no cinema brasileiro recente. Esse dado talvez já tenha
sido carimbo qualificativo para a crítica, em especial
a partir de Jacques Rivette, mas hoje, no cinema brasileiro, a
mise en scène parece ser menos uma necessidade,
e mais um traço de estilo. Construir planos onde a posição
de cada elemento no quadro é determinante para a compreensão
do filme – mais até do que o que eles falam; mais
do que como eles agem e o que fazem – é algo muito
mais raro no cinema brasileiro (mas não só) contemporâneo
do que os críticos e cinéfilos tradicionalistas
gostariam de admitir. Essa clareza de trabalhar e se expressar
pelo plano, em nome e em busca do plano, não é,
porém, uma fuga anódina por um atalho formalista.
O plano, em As Horas Vulgares, é uma unidade de
dureza impressionante, mas que, ao mesmo tempo em que dá
conta de tudo e suga toda a energia das personagens, aponta sempre
para a fora. As Horas Vulgares é um filme de closes
em busca do plano de conjunto.
Em dado momento do filme, um plano estranho nos tira do penoso
transe que o filme constrói de forma pregnante e igualmente
repulsiva (pois trata-se de um filme que dispensa nossa empatia
pelas personagens; importa mesmo é que sintamos o seu peso).
É um plano do grupo de amigos reunido em um quiosque na
areia (da praia? As Horas Vulgares não pode enxergar
ou mostrar o mar), fazendo um brinde. Ele salta aos olhos não
por sua composição – caso raro no filme em
que os elementos parecem atrapalhadamente jogados no centro do
quadro, como se a reunião de todas aquelas pessoas jogasse
contra os planos (com duplo sentido) do próprio filme –
mas por vir completamente sem som. Em um filme tão insistentemente
falado, declamado até, o silêncio (e, em última
instância, a morte – uma morte, um sacrifício)
é ao que todos ali aspiram. Ao longo de As Horas Vulgares,
os planos de conjunto parecerão poucos, marcando breves
ínterins de encontro (mas não exatamente de harmonia,
de parceria) entre aqueles rostos luminosos isolados em closes
sobre fundo negro.
Mas por cinema, enfim, refiro-me ao todo de uma produção
de filmes e ao redor dos filmes – todo do qual As Horas
Vulgares é apenas uma pequeníssima parte, mas
no qual o filme se insere com clareza e consciência, mesmo
que compartimentado em um nicho específico. Pois ele não
se furta a contemplar e comentar essa relação com
alguns novos dados, sem com isso se tornar um filme de resposta,
um filme de crítico (uma vez que Rodrigo de Oliveira, que
dirige o filme com Vitor Graize, se apresentou antes do filme
como crítico, sobretudo, “antes mesmo de ser pessoa”).
Se, por um lado, temos aqui também uma tendência
ao gueto, ao círculo fechado de amigos que se amam e precisam
uns dos outros, recurso que se tornou bastante presente no cinema
brasileiro dos últimos anos (Os Residentes, A
Alegria, Estrada para Ythaca, Os Monstros),
em As Horas Vulgares há uma consciência,
ou mais propriamente um olhar crítico, dos limites desse
grupo. O grupo será sempre confrontado à inevitabilidade
da cidade, de um mundo que urge silenciosamente fora do plano
e que cinde o próprio grupo. O grupo é também
um close aspirando ao plano de conjunto, de reintegração
com a própria cidade.
Em uma experiência como a da Mostra de Tiradentes, filmes
se misturam a conversas, se explicando e comentando mutuamente.
No segundo seminário Panorama Crítico da Crítica,
o próprio Rodrigo de Oliveira comentava da inevitabilidade
do Novíssimo Cinema Brasileiro (tão inevitável
em sua fala quanto Vitória é no filme), e sobre
um espírito de grupo geracional que conecta filmes díspares.
As Horas Vulgares parece, por meio dessa relação
entre o rosto e o conjunto, estender uma vontade de conversa com
esse grupo, mas reconhece sua impossibilidade de adequação,
de adesão a ele, sem que um sacrifício – a
morte de um indivíduo, de fato, mesmo se não carnal
– seja necessário. As Horas Vulgares busca
fazer a distinção, talvez impossível, entre
o espírito de grupo e o espírito de bando, tendo
aí, no sacrifício do sujeito, a passagem de um (o
grupo) para o outro (o bando). Por essa distinção,
o filme se sacrifica em praça pública, como o mortal
tomado por messias - que sabe, porém, que não há
redenção ou ascensão possível nesse
sacrifício. Há apenas a necessidade de morte, de
se queimar como filme, de preto e branco e figurino demodé,
levando consigo os planos (com duplo sentido) que, sem ter pra
onde ir, pesavam sobre a tela. As Horas Vulgares é
um filme tão mais interessante quanto seu deslocamento
em relação ao todo – deslocamento que não
é buscado, mas reconhecido – o permite ser.
Em
dado momento, Lauro (João Gabriel Vasconcellos) faz uma
profecia (afinal, é aquele que o grupo reconhece como Jesus,
como messias), da qual hoje me parece difícil nos desvencilharmos:
“existem meios para a fuga, mas será que existem
lugares para onde se possa fugir?” Vitória, essa
ilha, essa mesa de bar cercada de areia por todos os lados, é
a promessa de expansão sem possibilidade de fuga: se ali,
praqueles rostos, ela é todo, para o resto (o Brasil, o
mundo, o cinema), ela é apenas uma pequeníssima
parte, não mais que um rosto perdido em closes sobre fundo
negro. O que sobra é um cansaço profundo, mas que
encontra, ali no pacto de amor forçado que a personagem
de Raphael Sil oferece (também em sacrifício - no
caso, o de sua namorada) a Lauro, um momento de força digno
de antologia. Ao final daquele doloroso ritual, a montagem corta
para o plano geral e inclui Fra, personagem que assistia a toda
a cena sem que suspeitássemos, vivendo momento de choque
e incompreensão com aquele ritual; momento que é
só dele, ao qual o filme e os espectadores não têm
acesso.
O movimento do close para o plano de conjunto talvez seja exatamente
esse: reconhecer que, fora da cena e do filme, há alguém
que olha. E mais do que a compreensão do ritual, há
o impacto da crença de quem se envolve em sua latente gratuidade,
e se entrega a ele sabendo que ele não só lhe custará
a vida, mas que também não a merece. As
Horas Vulgares capta essa paralisia, esse cansaço
e essa imobilidade, distante das festividades meta-linguísticas,
do elogio do movimento e da jornada, de uma vontade de fluxo no
cinema quando ele não está sequer esboçado
na vida, que vai de esquina a outra sem conseguir realmente sair
do lugar. O cinema brasileiro talvez nunca tenha tido para onde
ir, mas ele encontra uma dor e uma gravidade necessárias
quando reconhece que precisa ficar.
Janeiro de 2011
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